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Tem a certeza que é o melhor preço?

Aconteceu comigo como já aconteceu a toda a gente: Fui comprar uma calculadora para o meu filho na casa que ele me indicou. Saio da loja de saco na mão, desço a rua e, ao virar da esquina, dou de caras com uma montra onde o raio da mesma máquina estava anunciada com 30% de desconto. “Que imbecil que sou”, penso cá com os meus botões, revoltado comigo por não ter procurado saber o preço noutras lojas, especialmente naquela, onde só faltava um letreiro a chamar-me “BURRO” ou “OTÁRIO”. Apeteceu-me partir a maquineta para ter o prazer de comprar outra mais barata…

Mas não foi a primeira vez nem será a última e vai continuar a repetir-se enquanto for comprar o que quer que seja, especialmente agora, com as lojas em saldos quase constantes e os supermercados num sobe e desce de preços nas suas promoções semanais, diárias, quando não por instantes.

Como é que se sentem se comprarem bacalhau e, antes de chegarem a casa, dão de caras com a vizinha vangloriando-se de acabar de comprar o mesmo, noutro lado, a menos 25%? Com certeza não fazem como um conhecido meu que ao descobrir que o atum que trazia estava com 50% de desconto noutro lado, foi lá adquirir vinte latas. Resultado: Andou a comer atum um mês seguido porque o prazo de validade estava quase a terminar… E esta sensação de que fomos “levados” incomoda, estraga-nos o dia, fazendo com que, na próxima, fiquemos com a dúvida se devemos ou não adquirir um determinado produto na primeira loja, com receio de voltarmos a ser “BURROS” ou “OTÁRIOS”.

Para os bens essenciais, a solução está em correr os supermercados (sim porque, infelizmente, as mercearias já se foram), fazer uma relação de produtos e preços para comparar e depois ir comprar onde for mais económico. Bolas, mas isso dá trabalho e despesa e exige disponibilidade que a gente não tem. Será que compensa ir atrás dos ovos mais baratos vinte cêntimos se tiver de ir de Lousada a Penafiel para aproveitar o desconto? Embora haja quem o faça, o bom senso diz-me que não.

Para resolver o problema fui ver os sites mas, apesar de haver alguns comparativos, não estão atualizados, não acompanham as promoções e ofertas, não têm os produtos que eu quero e não se referem às lojas locais. Não me interessam para nada os preços no Porto.

Eu nem moro lá… Bom, se não resolvo o problema desta maneira como é que me devo desenrascar? Pedir aos amigos que, se encontrarem promoções interessantes, me telefonem? Ou arranjar um funcionário em cada loja que me dê uma dica? É que não quero perder os descontos de 50%, quanto mais os de 75%, apesar de ter de pagar por inteiro e ficar com o crédito no cartão…

Encontrei há dias num supermercado uma senhora muito nervosa. E porquê? Ao saber que a carne estava a metade do preço, foi a correr mas encontrou uma fila com setenta “felizardos” à sua frente e o seu receio era que… a carne não chegasse para ela… Houve tempo em que os folhetos com que nos enchiam a caixa do correio eram um incómodo, até para encontrar a correspondência normal.

Mas agora, é literatura obrigatória, procurando-se os descontos maiores porque “ESSES” são os produtos que interessam (mesmo que não precisemos deles). No entanto, é necessária muita atenção, porque são muitos os truques para nos induzir em erro, para nos fazer crer que um produto é muito barato quando afinal não é, desde reduzir o peso normal das embalagens, as quantidades e tamanhos, etc… E, atenção, porque há os descontos diretos ou em cartão, além dos cupões, dos bónus e outras ilusões, que nos obrigam quase a tirar um curso de gestão.

Se há cursos de marketing para nos levar a comprar, porque é que não há cursos de como resistir às tentações, que nos ensinem a levar só, mas mesmo só, o que precisamos? É que vamos ao supermercado comprar um sabonete que está em promoção a metade do preço e saímos com o carrinho cheio e… a carteira vazia. Talvez devêssemos aprender com esta história da vida real de um presidente dos Estados Unidos.

Entrou numa loja de calçado, pegou num par de botas, observou-o e perguntou quanto custava. Depois fez o mesmo com outras botas, admirando-as, fazendo perguntas, interessando-se pelo preço e materiais de que eram fabricadas e outras ainda para, finalmente, pedir um par de atacadores, pagar e sair. Alguém que assistiu à cena, abeirou-se e perguntou-lhe porque é que tinha estado na loja a apreciar alguns pares de botas e acabou por comprar um simples par de atacadores. Com muita tranquilidade, respondeu-lhe: “Sabe, eu gosto muito de botas, gosto mesmo muito de admirar umas boas botas, mas aquilo de que realmente precisava… era de atacadores. É por isso que os comprei”.

Temos de aprender com este presidente a cuidar da nossa carteira, especialmente agora que o tempo é de crise, usando dois truques para contrariar os muitos truques deles: Levar a lista só do que precisamos não comprando mais nada e pagar a dinheiro para “o sentir” a sair. E não nos esqueçamos: Os preços são o contrário das montanhas. Enquanto nestas, atrás de uma há sempre outra montanha maior, nos preços, atrás de um há sempre outro preço inferior. Saibamos conviver com isso.

As lições do milho. Saibamos lê-las…

Diz-se que “na vida estamos sempre a aprender e nunca sabemos nada”. Aliás, viver é aprender e a aprendizagem faz parte da evolução da humanidade. Quando não estamos preparados para aprender, não estamos preparados para viver. Até mesmo no silêncio temos oportunidade de aprender.

Aprendemos com os mais velhos, que têm muito para ensinar, aprendemos com as crianças nas verdades da sua inocência, aprendemos com os sábios e com os simples. Porém, só aprende mesmo aquele que está aberto a aprender, aquele que está de olho posto na vida, analisando-a a cada momento.

E é muito curioso que há lições de outros seres vivos, incluindo plantas como é o caso, com as quais poderemos aprender, se tivermos a humildade e a sabedoria para colher tais ensinamentos e aplicá-los na nossa vida.

Todos nós seres humanos, somos professores e alunos, ensinando e aprendendo uns com os outros, constantemente. Durante duas décadas estive ligado à agricultura como técnico de uma empresa nacional, desenvolvendo ações junto dos agricultores, promovendo novas tecnologias, novas culturas, novos produtos. Com eles aprendi mais do que ensinei, das coisas mais simples às mais complicadas, ficando eternamente em dívida para com essas muitas pessoas para quem fui mais aluno que professor. Sendo o milho uma das culturas tradicionais, um dos conselhos técnicos mais comuns que dava aos agricultores era o de que não o deviam regar nem adubar enquanto fosse pequeno.

É necessário aguardar até estar “joelheiro” ou seja, ter a altura dos joelhos, esperando mesmo que ele “torça as orelhas” (dar sinal nas folhas de que precisa de água). É que, ao regar e adubar o milho cedo demais, este fica preguiçoso pois não tem necessidade de procurar a água que lhe está à mão, desenvolvendo raízes muito pequenas pelo que, se vier uma seca, morre de sede e, com vento um pouco mais forte, “acama”, tombando, por não ter raízes que o sustentem. Pelo contrário, se o regarmos o mais tarde possível, o milho “obriga-se” a procurar água e alimento, fazendo crescer as raízes de tal forma que chegam a atingir dois metros e mais, aguentando bem a seca e a fome, com um bolo muito maior onde comer, e resistindo bem ao vento já que as grandes raízes funcionam como espias.

Curiosamente, quando estava neste ponto do artigo, encontrei uma pequena história de autor anónimo que reforça o que atrás afirmei. Nessa história o autor tinha um vizinho médico que, nas horas vagas, plantava árvores no terreno atrás de sua casa, mas nunca as regava. Estranhando tal facto, um dia perguntou-lhe se não receava que as árvores não crescessem. Então o médico descreveu-lhe a sua teoria: “Se regar as plantas, as raízes ficam à superfície esperando a água fácil vinda de cima. Não regando, demoram a crescer mas as raízes vão para o fundo em busca de água e nutrientes nas camadas inferiores do solo”, disse-lhe ele orgulhoso.

Entretanto o autor foi viver para longe e só anos mais tarde voltou em romagem à sua antiga casa, encontrando um bosque frondoso nos terrenos do médico que entretanto falecera e não chegara a observar o resultado da sua teoria. E, apesar do vento forte que se fazia sentir, que arrancara várias árvores e fazia vergar outras, naquele bosque mantinham-se sólidas, quase não se moviam, resistindo à ventania implacável. Percebeu então que as adversidades por que passaram, privadas de água, tinham-nas beneficiado mais do que o conforto de um bom tratamento. Todos nós, pais, queremos sempre o melhor para os nossos filhos e ao longo de algumas décadas de euforia económica demos-lhe tudo o que nos pediram (e o que não pediram…), num facilitismo da vida que a vida não aconselha, retirando-lhes a necessidade de terem de procurar e confrontarem-se com os problemas do dia a dia e de os preparar para o futuro.

Mais ainda, ao vê-los crescer, nas nossas orações pedimos para que as suas vidas fossem fáceis, dizendo mesmo: “Meu Deus, livrai os meus filhos das dificuldades da vida”. E a que é que isso nos conduziu? Está na hora de mudarmos o teor das preces, pois a vida já nos provou ser inevitável que os ventos fortes e frios nos atinjam mais cedo ou mais tarde, tal como atingirão os nossos filhos.

Será grande ingenuidade continuarmos a pedir a Deus para que não tenham dificuldades já que, ao longo das suas vidas, vão (e estão) a confrontar-se com inúmeros problemas e sempre haverá uma tempestade que os vai atingir. Quer queiramos quer não, a vida não é fácil. E, ao contrário dos facilitismos que lhes temos dado, devemos antes orar para que enfrentem e aprendam com as vicissitudes, ultrapassando-as e desenvolvendo bases sólidas, suficientemente fortes para resistirem às adversidades que os esperam ao virar da esquina. E nessas orações, não nos esqueçamos de pedir-Lhe sabedoria suficiente e capaz para os sabermos “regar e adubar quanto baste”, mantendo a exigência do esforço e do trabalho como escola de crescimento.

Só assim estarão aptos para atravessarem o rigor dos tempos, em vez de serem frágeis e facilmente arrancados ou varridos à mínima ventania. Como é que um pé de milho ou as árvores de um bosque nos podem dar tamanha lição? Saibamos apreender e praticar…

Na crise sem festa, as festas sem crise

Ao acaso Na Crise sem festa, as festas sem crise Bessa Machado Da minha passagem por Angola há décadas atrás, uma das imagens que retenho é a dos funerais dos nativos.

Reuniam a família que vinha de todos os lados e passavam o dia a cantar, a beber vinho de garrafão de “capacete”, resultando sempre em bebedeira coletiva. Seria para festejar a vida do defunto ou por ter ele ido “d’esta para melhor”? A bebedeira era para esquecer a morte ou a morte o motivo para a bebedeira? Nunca o soube.

Anos mais tarde nas minhas andanças pelo desporto automóvel, desloquei-me à Bélgica para assistir a uma prova de ralicrosse. No domingo fui a um restaurante local e, ao lado da sala onde almoçava, havia um grande salão cheio de gente em traje de cerimónia, num grande banquete fervilhando de alegria e boa disposição. Por mera curiosidade perguntei ao organizador que me acompanhava, se aquilo era um casamento. “ Não, não, é o funeral de uma pessoa importante cá da cidade”, respondeu-me ele.

Já não havia muita coisa que me surpreendesse, mas achei estranho que a vigília da morte fosse motivo de festa. A minha cultura dizia-me que era um momento de tristeza pela partida de alguém, um silêncio de respeito pelo falecido. Quem estaria errado?

Reza a lenda que em 1245 o castelo de Celorico da Beira foi cercado por D. Afonso III, cerco esse que se mantinha há muitos dias na tentativa de que se rendessem pela fome. Quando os sitiados já quase nada tinham para comer, uma águia, ao sobrevoar o castelo, deixou cair uma truta que apanhara no rio Mondego. Ao ver na truta uma dádiva do céu, o alcaide mandou cozinhá-la, prepará-la com esmero e, quando todos pensavam que a ia comer, enviou-a aos inimigos que o cercavam, com o recado de que além de bons guerreiros também tinha bons mantimentos como aquele que lhe estava a oferecer. Perante truta tão apetitosa, os soldados do rei convenceram-se que lá dentro estavam bem abastecidos e levantaram o cerco. Como é que o alcaide, com o último manjar que lhe restava, conseguiu iludir os inimigos?

No Porto não se festejou a passagem do milénio com fogo de artifício como o fez a Câmara de Lisboa e um coro de críticas levantou-se na cidade contra o presidente de então. Face a esse descontentamento popular, na noite de reis houve uma sessão de fogo que terá custado uma fortuna, passando então o presidente de besta a bestial. Esqueceram-se os portuenses de um pormenor: Ele só queimou o dinheiro dos munícipes, não o dele.

Tenho acompanhado o fulgor e brilhantismo das festas da região, sabido dos orçamentos record de algumas e assistido às prolongadas sessões de fogo de que a minha cadela não gosta nada.

As Festas de Lousada são disso exemplo e não me recordo de um programa tão arrojado, completo, mobilizador e caro como nas deste ano, pelo que são devidos elogios à Organização, cujo empenho foi excepcional, elevando a fasquia a um nível muito alto, provavelmente demasiado alto. “Mas em que é que tudo isto está relacionado”, pergunta o leitor já aborrecido? É que, por mero acaso, enquanto decorriam algumas das longas sessões de fogo, estava eu a ver na TV debates, comentários ou mesas redondas sobre a grave situação económica do país, sobre as medidas de austeridade a que estamos sujeitos e as que ainda estão para vir, e dei comigo a pensar em como reagiria um “troikano” (habitante do planeta Troika) ao assistir a uma destas romarias.

Parece que o estou a ver de boca aberta e olhos arregalados, meio zonzo como quem não acredita no que vê, interrogando-se se este é mesmo o país que está à beira da falência e que só consegue pagar pensões e salários a funcionários públicos com o dinheiro do cheque vindo do seu “planeta”, que tem de continuar a fazer cortes de milhares de milhões de euros, enviar mais gente para o desemprego, com mais austeridade e pior nível de vida.

E, saindo do torpor em que se encontra, deve perguntar-se: “Mas será que estes patuscos estão mesmo em crise”? Sem beliscar o trabalho e a vontade de ir mais longe dos festeiros, a pergunta impõe-se: Estando nós já com o estatuto de “falidos”, numa espécie de “morte económica”, as festas não serão como que uma “grande almoçarada”, como no funeral na Bélgica, num hino à vida na vigília da morte? Ou então uma “bebedeira geral” para esquecer (com muitos jovens realmente bêbados) como nos funerais em Angola? Ou a “truta cozinhada com esmero” enviada a credores e mercados, para os convencer que estamos bem de vida e, por isso, podem levantar o cerco dos juros altos e dormir descansados porque lhes vamos pagar (se não for nesta vida é noutra)? Ou ainda uma “anestesia geral”, para não termos qualquer tipo de reação ao empobrecimento diário? Ou será que é mesmo assim que o povo quer, como no caso do fogo de artifício no Porto, pois com crise ou sem crise, como é ele sempre quem paga, pelo menos que haja festa?

Devemos manter as tradições a todo o custo, porque são parte da nossa cultura, aquilo que nos distingue neste mundo fotocopiado. No entanto, percebendo o bairrismo, orgulho e vontade dos festeiros em querer ir sempre mais além e vendo a continuada generosidade do “Zé”, o bom senso exige moderação e contenção nos gastos para sermos coerentes, devendo o esforço festivo ser proporcional à situação real do país e de cada um de nós. Senão, depois da “almoçarada”, um dia destes adormecemos todos com a “bebedeira” e não acordaremos mais, nem sequer com “as sessões de fogo”, por maiores que sejam as “girândolas”…

Os meus Heróis… do nosso dia a dia

Consideramos herói alguém que tem uma dimensão semidivina, algo entre os deuses e os humanos, e que representa a transcendência da condição humana com facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir – determinação, coragem, fé, força de vontade, paciência, etc..

Desde sempre as sociedades tiveram e criaram os seus heróis, nas suas múltiplas variedades, como os “super-heróis”, os heróis bíblicos, os heróis de guerra, os heróis olímpicos, os heróis populares, os heróis do acaso e tantos outros, até os anti-heróis e os “heróis” fabricados do tipo “big-brother”.

Também tive os meus, que foram mudando com a idade. Se em criança eram os “super-heróis” que me faziam sonhar, personagens de ficção dotados de atributos físicos e poderes extraordinários, desde o Mandrake ao Zorro, do Super-Homem ao Tintim, já na adolescência passei a idolatrar o Pelé e o Elvis, já para não falar de alguns jogadores do meu clube.

Mas, à medida que os anos foram passando, os meus olhos (e o coração) foram encontrando novos heróis, pessoas anónimas do dia a dia que foram capazes de atos de heroísmo enormes, de grande dimensão humana, só alcançáveis por quem realmente era extraordinário. Esses anónimos não eram nem são dotados de superpoderes, nem de invencibilidade, não usam armaduras nem capa nem espada. Não voam, não atravessam paredes, não disparam raios nem teias de aranha. Não são estrelas de futebol ou de qualquer outro desporto, nem do mundo do entretenimento, simplesmente gente em toda a sua humanidade, invisíveis aos olhos de quem só olha para muito longe ou para muito alto sem ver quem lhe está próximo.

A senhora Emília saiu da sua aldeia com a família para acompanhar o marido que foi trabalhar na barragem de Picote, em Miranda do Douro, no início dos anos sessenta. E por ali foi ficando, ali teve mais uma filha e gerou uma outra, até ao dia em que o seu marido foi à pesca, como lhe era habitual nos dias de descanso, e não voltou, sendo encontrado mais tarde afogado, entalado entre duas rochas onde teria caído. E, de repente, a senhora Emília vê-se com seis filhos e um sétimo na barriga, longe da sua aldeia e sem emprego nem condição económica.

Uma senhora amiga ofereceu-se para lhe ficar com a filha mais nova, mas ela respondeu com convicção: “Muito obrigado, mas quero que todos os meus filhos cresçam juntos e tudo farei para que não passem fome”. Na sua humanidade fez a coisa mais corajosa que uma mãe pode fazer: Amar seus filhos e dar-se-lhes por inteiro. A camioneta que carregou os seus parcos haveres de regresso a Lousada também carregou os filhos, a dor, a incerteza do futuro e o corpo do marido, clandestinamente, por não ter dinheiro para o fazer segundo as normas legais, já que quis que fosse a enterrar no cemitério da sua aldeia, próximo de si e das flores que iria colher e levar-lhe até ao fim dos seus dias.

Cumpriu o que disse àquela senhora que queria ficar-lhe com uma filha, trabalhando duramente como criada doméstica primeiro e empregada fabril depois, abdicando de si a favor dos filhos a quem se devotou, mas a quem nunca deixou passar fome, apesar dos tempos muito difíceis que atravessou. As dificuldades que teve de enfrentar sem qualquer apoio social e sem a ajuda do marido, que partiu prematuramente, foram bem mais difíceis e bem mais longas que as de qualquer atleta olímpico num jogo ou corrida contra o tempo, nunca tendo desistido daquilo a que se propusera, perdendo só a última das suas lutas, contra um cancro, já depois de ver todos os filhos criados e “arrumados”.

E a vida tem coisas muito curiosas, aquilo a que chamamos acasos ou coincidências, como aquela que viria a acontecer com a senhora Emília. Desde que se manifestou a doença, quem não foi mais trabalhar para poder estar junto dela a tempo inteiro, prestar-lhe todos os cuidados, fazer-lhe companhia no momento da partida desta vida e fechar-lhe os olhos, foi a filha que ela se recusou a dar à guarda da outra senhora, apesar do momento terrível e difícil que estava então a viver.

Acaso? Coincidência? Com toda a certeza foi um ato de gratidão de um coração reconhecido, quiçá um toque de algo muito mais sublime. A senhora Emília foi sem dúvida uma mulher extraordinária, com as tais facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir, alguém que deveria servir de modelo (e não podia ter maior atualidade) para tantas jovens mães de hoje que nem sempre aceitam as responsabilidades inerentes a essa condição, mas permanecerá anónima como muitos outros e outras que se transcenderam e de que a história não falará nunca.

Uma lição de vida excepcional, de coragem, de força de vontade, de abnegação, de espírito de sacrifício e, acima de tudo, um exemplo perfeito de Amor de MÃE. Um dos meus heróis (neste caso, heroína) anónimos do nosso dia a dia…

A Loja do Tio Peixoto

O Bernardo, meu primo e amigo, todos os anos tem a amabilidade de me convidar para ir a sua casa comer cerejas, com a intenção de me satisfazer um prazer que me vem do tempo de criança: comê-las diretamente da árvore.

No telefonema que me fez este ano teve o cuidado de me avisar que “andasse depressa”, antes que os pássaros comessem a parte a que tinham direito e a parte dele, enquanto dono. Por isso, nesse dia vigiava o seu quinhão. Assim, sem ir a voar mas tentando chegar antes da passarada, fui comer a minha (pequena) parte e aproveitar para pôr a conversa em dia, sendo as cerejas o motivo. Ao estar naquele quintal vieram-me à memória recordações do meu tio Peixoto, pai do Bernardo e figura incontornável da minha infância, que ali viveu e criou um rancho de filhos com a tia Miquinhas, o sol em torno do qual girava o mundo da família.

E essas memórias levaram-me à “Loja” (mercearia e tasca, com ramo de loureiro à porta) do tio Peixoto, que ficava um pouco acima da casa dos meus pais. Parece que ainda estou a estou a ver: À entrada, um balcão tosco em madeira de pinho, com uma balança e uma broa ao lado para vender aos nacos; ainda em cima do balcão, um cartão publicitário para furar a troco de dois tostões por furo, de onde caía uma pequena bola que, em função da cor, dava direito a um chocolate da Regina; noutras ocasiões, era uma caixa de rebuçados com cromos de futebolistas e uma bola de couro no cartaz, prémio para quem completasse a caderneta, um sonho para nós crianças que jogávamos com bolas feitas com meias velhas cheias de trapos.

Era ali que eu gastava a moeda que o meu pai me dava ou a coroa (cinco tostões) que recebia por ir na “cruzada” nos funerais. Havia um bidão de petróleo para os candeeiros e carboneto em latas estanques, para os gasómetros, porque a maioria das casas não tinha eletricidade, que faltava muitas vezes; o azeite estava em vasilhas de lata e era medido sem esbordar; o arroz (que eu fiquei a detestar por ter muitas pedras), a massa e o feijão, estavam em caixas de madeira debaixo do balcão de onde eram tirados com um “corredor” para cartuchos de papel grosso; um pouco ao lado os garrafões de aguardente, vendida a copo pela manhã como “mata-bicho”, às vezes para regar um naco de broa; os “luxos” eram a bola de queijo flamengo vendido à fatia, a manteiga num pote de barro e pouco mais; para os fumadores, os cigarros Português Suave, Fortes, Provisórios e o tabaco a granel com as caixas de mortalhas para enrolar o cigarro; e de lado, duas pipas de vinho tinto assentes em vigas de madeira, para vender ao garrafão e à garrafa, ou servido ali mesmo, em canecas de porcelana ou ao copo.

À tarde e ao domingo, jogava-se à malha e ao fito, no caminho em frente à loja e, a cada jogo, os perdedores pagavam um copo de litro. E havia dias em que estavam ali a tarde inteira… Bebia-se muito vinho pelo que, semanalmente, havia troca de pipa vazia por cheia, uma cena digna registo.

A pipa era transportada em carro de bois pelo caminho de terra cheio de buracos, fazendo-se anunciar pela chiadeira do rolar da madeira contra a madeira. Para a descarregar, o carreteiro colocava o carro com a traseira virada para a porta da loja, ficando um rapaz a segurar os bois enquanto os homens colocavam duas pranchas de madeira do carro ao interior da loja, entaladas contra a pipa e seguras aos “fueiros”.

Então, colocava-se um homem de cada lado da pipa e outro por trás e, usando as trancas como alavancas e ao som ritmado de um “Ôpa, ôpa, ôpa…” entoado por um deles, faziam deslizar aquela “meia tonelada de vinho” pelas vigas abaixo até dentro da loja e para cima das vigas ao lado da outra, com toda a perícia.

O serviço ficava completo quando o meu tio metia a torneira de madeira na pipa com uma pancada seca de mascoto, depois de aparar o batoque com uma faca. Feito isto, servia broa, azeitonas e vinho num copo de litro, que rodava de mão em mão. Em frente à loja todos os anos montava uma cascata em honra de S. João, seu homónimo e santo favorito, povoada de um sem número de figuras, água e até um chafariz, em que eu colaborava carregando pedras, ramos de carvalho e musgo, e angariando “fundos”, sempre com a mesma lengalenga para quem passasse por ali: “Dê um tostãozinho para a cascata do S. João”.

Tinha o prazer da leitura e dedicava-se à escultura de santos, trabalhando a madeira com um canivete. Para autodidata, executou um número considerável de peças de belo recorte, de que guardo uma bonita imagem de S. José que me ofereceu anos mais tarde. Ao ver os supermercados de hoje e pensar naquela “Loja” do antes, só posso colocar-lhes um rótulo: O Excesso e o Essencial. A “Loja” era a antítese do supermercado, um serviço de proximidade e de confiança nos clientes (e vizinhos), com muitas vendas a “fiado” registado num livro grosso, numa relação comunitária própria desse tempo de coisas simples.

E todos eram confiáveis, por mais pobres que fossem (e como eram pobres!!!), porque existiam bens inestimáveis que queriam preservar a todo o custo: A DIGNIDADE, A HONRA E O BOM NOME. E ao relembrar a importância que se dava a esses bens, hoje só me apetece perguntar: Como é que mudamos tanto???…

Quando o céu nos cai em cima

Acabara de almoçar e estava sentado no sofá da sala a relaxar um pouco antes de voltar ao trabalho, quando tocou o meu telemóvel. Olho e vejo no mostrador o nome da minha mulher: LUISA. “Mas o que é que se passa? Porque será que me está a telefonar se ela está cá em casa?” Carrego na tecla verde e digo “Estou?” mas do outro lado ninguém me responde. Intrigado, dirijo-me apressadamente à casa de banho para onde fora e encontro-a sentada mas tombada sobre o lado direito, sem dar acordo de si. Seguro-a nos braços e chamo por ela mas não reage, não dá sinal de me reconhecer nem de perceber que estou a falar com ela.

Peço ajuda à Dita que vem logo a correr e ainda conseguimos levantá-la e vesti-la, mas continua ausente. Na emergência, chamo os Bombeiros de Lousada, que são rápidos a chegar, a transferi-la para a maca e a meterem-na na ambulância. A Teresa acompanha-a na viagem até ao Hospital Padre Américo, enquanto agarro roupas e documentos, seguindo logo atrás. Pela cabeça passa-me um mundo de pensamentos, mas empurro os negativos e construo a esperança de que não é nada de grave e que depressa a Luísa estará novamente em casa.

Já no hospital retiram-na da ambulância e empurram a maca para as portas da Urgência, por onde desaparece, enquanto acompanho um bombeiro ao guichet da recepção para fazer a ficha de admissão. Retiro do bolso os seus documentos e dou as indicações que me pedem, um tanto perdido, como se me visse no meio de um filme a que não pertenço. Dizem-me para esperar na sala de acompanhantes mas, dado o estado em que se encontra, peço e autorizam-me a ficar junto dela na zona de triagem, onde lhe colocam uma braçadeira laranja, quando eu esperava uma vermelha por me parecer que a situação era grave.

Não reclamo, até porque acho que todos consideramos que os nossos casos são sempre os mais urgentes (costumo dizer que as maiores dores são sempre as nossas, porque as nossas nós sentimo-las e as dores dos outros sentimo-las no momento mas, afastados, depressa as esquecemos). Pouco depois levam-na para dentro mas não me é permitido ir mais além e tenho de ficar cá fora, confrontando-me com uma sensação de impotência, de nada poder fazer senão esperar. Dou comigo a pensar que hoje eu faço parte “dos outros”, porque costumamos pensar que estas coisas só acontecem aos outros (mas, para os outros, nós somos os outros).

Telefono ao filho que está em viagem e que se apressa a regressar para acompanhar a mãe, e a outros familiares e amigos, informando-os do ocorrido, procurando alguém que consiga chegar até ela dentro do hospital para ter informações permanentes. Esperar sem notícias é motivo de angústia pois, mesmo que não digam o que queremos ouvir, qualquer informação sempre nos alimenta a esperança na espera.

O diagnóstico foi derrame cerebral que fez com que fosse transferida para o Hospital de S. João. Ao outro dia parecia que não tivera nada mas, quinze dias depois e ainda dentro do hospital, repetir-se-ia o derrame de uma forma mais violenta que a levou para os cuidados intensivos, a um coma induzido durante vários dias, a infeções hospitalares e não sei quantas coisas mais ao longo de três longos meses, seguidos de muitos mais em convalescença noutros hospitais, com duas pernas partidas durante a recuperação, fazendo dela uma sobrevivente.

Passei a conhecer a rotina das visitas hospitalares, os dramas de doentes e familiares, o sofrimento contido e a solidão, a incerteza da espera, alguns excelentes profissionais de saúde e a qualidade do nosso SNS, a solidariedade que é mais forte no sofrimento do que na alegria, o conforto de ter família e amigos, o valor de uma simples palavra ou de um gesto silencioso mas significativo. Moldei-me a novos ritmos de vida, novas rotinas, às certezas da incerteza, à cedência nas prioridades, a abdicar de mim tornando-me um cuidador atento às necessidades de quem tem dependência quase total e vive noutra realidade, noutro mundo.

Foi no mês de Agosto de há uns longos cinco anos e a vida da Luísa mudou completamente e com ela a minha. Devo revoltar-me? Perguntar “porque é que isto lhe aconteceu”? “Mas porquê a nós”? “Porquê, meu Deus”? “Que mal fizemos”? Não, não tenho razões para me revoltar contra quem quer que seja, muito menos contra Deus.

A doença, os acidentes, a morte, chegam todos os dias a casa de milhões de pessoas que não conhecemos, ocasionando imenso sofrimento, dor e todo o tipo de dramas que nos passam ao lado, numa roleta interminável do acaso. E esse acaso ditou agora a nossa vez e só tenho de me conformar, de aceitar com humildade colando os cacos que for possível colar, dando graças a Deus pelas preciosas ajudas que ainda tenho, pensando que há sempre quem esteja muito pior que nós, e por nos ter dado tantos anos de bónus, livres deste sofrimento. Até porque nunca me esqueço que o Sofrimento é parte integrante da vida, embora nós passássemos muito bem… sem ele.

O dinheiro não é de quem o ganha…

Há um ditado que diz que “devagar se vai ao longe” e um outro que o completa com “quem tem pressa vai andando”, porque “depressa e bem há pouco quem”.

Sem pressa ia um alentejano montado no seu burro, estrada fora, naquele ritmo pachorrento de quem não tem de correr para coisa nenhuma mas que chega sempre onde deseja, quando por ele passa um grande carrão. Ouve o chiar de pneus, uma travagem brusca e o carro encosta à berma, dele saindo um conterrâneo que há um bom par de anos fora para Lisboa, subira na vida e voltara rico. “Oh compadre, como é que vai isso”, pergunta-lhe-lhe o recém chegado. “Devagar, mas vamos indo”, responde-lhe sentado no burro, parado na borda da estrada.

Um pouco de conversa e o dono do carrão puxa pela vaidade: “Oh compadre, o que vossemecê devia era comprar um carro como o meu, em vez de andar montado nesse burrito. Tem mais de duzentos cavalos e uma força que só visto”. “Oh compadre, isso é para si, eu não tenho jeito para guiar” responde-lhe ele na sua simplicidade. E o regressado amigo entra no carrão, arranca fazendo chiar os pneus, e desaparece estrada fora.

Picando o burro, o nosso homem volta a fazer-se ao caminho no seu ritmo habitual e, um quilómetro à frente, numa curva apertada da estrada, vê o carrão despistado com a frente enfiada numa grande poça de água. Desmonta do burro para ver o que se passa e encontra o dono do automóvel sentado numa pedra, com as calças molhadas. Olha para o carro, do carro para o amigo, e diz-lhe: “Com que então, a dar de beber aos cavalos”? Ao lembrar-me desta história/anedota, relacionei-a, talvez de forma aligeirada, com as nossas histórias de vida nas últimas três décadas, mas em que vale a pena refletir.

Tal como o alentejano, houve portugueses que se pautaram pela segurança, pelo rigor e disciplina, que não embarcaram em euforias nem em consumismos desenfreados, ao longo dessas décadas de fulgor económico. Fizeram a sua casa, gastaram em função das suas necessidades e não dos seus ganhos, souberam amealhar para acautelar o futuro. Não se deixaram iludir pelo dinheiro fácil nem pelos ganhos acima do normal, continuaram a viver as suas vidas ao ritmo habitual, tal como o alentejano da nossa história.

Tenho falado com alguns deles, que ainda hoje agradecem aos pais as lições de vida e a contenção como exemplo. Essas três décadas foram, sem dúvida, uma época de ouro, como nunca mais viveremos outra em Portugal.

A atividade económica acelerou, o dinheiro fluía e muitas foram as áreas onde era fácil crescer, ganhar dinheiro, fazer um bom pé de meia. Mas, de todas elas, destaco uma com especial relevo: A construção civil. Quem durante esse período esteve ligado a este sector , teve a obrigação de fazer fortuna porque tudo no sector deu muito dinheiro, demasiado dinheiro, com um bónus extra: Facilidades de fuga ao fisco. E por ser tão lucrativo, fez com que muita gente se tornasse de repente construtor, subempreiteiro, mediador imobiliário, vendedor de materiais, de equipamentos, de terrenos, de serviços e tudo o mais ligado à construção, quer fosse verdadeiro empresário ou golpista, inteligente ou imbecil, homem sério ou vigarista.

Não era necessário determinar custos porque a procura era muito superior à oferta, fazendo disparar os preços, ao ponto de proporcionar margens de lucro obscenas. Só que tantas facilidades em ganhar dinheiro ( dinheiro esse que, somado ao muito que os bancos faziam questão de emprestar, parecia infinito) criaram a ilusão de que era uma mina inesgotável, que o livro de cheques não tinha fim e, por isso, havia que gastá-lo em casarões e palacetes, apartamentos na cidade e moradias na praia, exibi-lo em carrões trocados à mesma velocidade (ou quase) com que se trocava de roupa, e usufruir dele, destrocando-o em fichas no casino e com mulheres (estão sempre presentes quando os homens querem gastá-lo) de casa posta e alimentadas com adornos de ouro, joias, roupas e todo o tipo de luxos, ou arrebatadas de cabarés entre banhos de champanhe, aquelas coisas próprias de “conquistador a pronto pagamento”.

Só que, tal como na história do alentejano, em que a exibição do carrão terminou na curva apertada da estrada com o focinho na água, também aqui, o abuso no gastar, no exibir e no usufruir do dinheiro, terminou muitas vezes em despiste na curva apertada da crise, com “buracos” de milhões e fugas para nenhures ou para o estrangeiro, falsos divórcios (às vezes dão jeito), falências e encerramento de empresas, arrastando para a miséria uma legião de fornecedores, subempreiteiros e trabalhadores, inocentes que não tinham qualquer responsabilidade pelas irresponsabilidades de quem os puxou para o fundo.

E aqueles que ao longo desses anos dourados não se deixaram atrair pelo canto da sereia e prosseguiram montados no seu “burrito”, cultivando a árvore da “POUPANÇA” (quase desconhecida nos dias de hoje), passaram a curva apertada da crise com tranquilidade, se bem que com cuidado, sem darem com o “focinho na água” nem terem de recorrer a esquemas e lesar terceiros. É que, o ditado é velho: “O DINHEIRO NÃO É DE QUEM O GANHA, É DE QUEM O GUARDA”.

Hans Isler – O Homem que fez uma Empresa, uma Universidade e uma Revolução

“E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando Cantando espalharei por toda a parte Se a tanto me ajudar o engenho e a arte… Foi assim que Camões começou, tão brilhantemente, a cantar o “peito ilustre Lusitano”. Mas eu nem sou poeta, nem sou Camões, e nem sequer tenho “engenho e arte” porque, se tivesse, iria cantar o Homem, a personalidade maior de Lousada no século XX, senão mesmo da história do concelho: HANS ISLER.

Esteve para ser técnico de máquinas de costura em terras lusas fugindo de problemas que lhe criaram no seu país, a Suíça, mas o interesse de uma empresa nacional em encontrar um sócio para alargar a atividade industrial e um mero acaso, fizeram dele esse parceiro, passando de potencial trabalhador emigrante a empresário (de sucesso), com a criação de uma empresa que ficaria localizada em Lousada: A Fabinter.

Esta empresa de confecções, começou em instalações provisórias diversas, entre as quais no antigo edifício dos Bombeiros de Lousada e no velho hospital da Misericórdia, até construírem um primeiro pavilhão naquela que viria a ser a sua localização definitiva, em Cristelos.

Ao crescer, mais parecia que nesse pavilhão existiam duas empresas, uma de calças, gerida pelo sócio, e outra de anoraques, da sua responsabilidade. Daí à rotura foi um ápice, acabando ele por controlar a sociedade com o apoio de outros conterrâneos. A partir de então a Empresa adquiriu uma dinâmica de sucesso impressionante, com ampliação das instalações e um aumento vertiginoso do volume de negócios, assente na promoção e desenvolvimento da sua marca de referência: A KISPO.

Esta marca teve uma evolução tal que rapidamente os clientes passaram a chamar “Kispos” a tudo o que fosse anoraques, sobrepondo a marca ao produto, sinal de um êxito publicitário e mais valia da marca excepcionais. Depressa se impôs e dominou totalmente o mercado interno, vindo também a expandir-se na Europa a partir da Suíça, onde Hans Isler tinha uma empresa de distribuição.

O apogeu da empresa deu-se de 77 a 85, altura em que a Fabinter tinha quase uma centena de pequenas e médias empresas a produzir para si no regime de subcontratação, com mais de doze mil pessoas a trabalharem, direta ou indiretamente, para ela.

Como empresário Hans Isler teve sempre grande sensibilidade social, (dizia ele “que difícil é ser-se empresário com preocupações sociais”), dotando a empresa de condições adequadas ao bem estar dos trabalhadores e pagando salários acima da média, algo invulgar à época. E essa preocupação atingiu um ponto tal que, dispondo de uma grande área de terreno em frente da sua fábrica e em local privilegiado da vila, mandou fazer na Suíça um projeto para ali implantar cerca de seiscentas habitações destinadas aos seus trabalhadores, com um edifício central para atividades sociais, a consumar através de uma Cooperativa de Habitação, projeto esse que deu entrada nos serviços da autarquia local. Mas, a impossibilidade de conseguir o consenso interno entre (alguns) trabalhadores e as dificuldades em fazer aprovar o projeto nas instâncias municipais pela burocracia, esse monstro que devora sonhos e vontades, tornaria a sua luta inglória em prol dos que o serviam.

Cansado de lutar, acabou por doar o terreno para outro fim também muito meritório, o da construção do Bairro Social que ali está implantado. Como Empresário e cidadão, foi um Mecenas no apoio a instituições, associações e eventos, tais como os Bombeiro Voluntários e a Associação de Cultura Musical, dois grandes beneficiários da sua benemerência.

Se a sua Empresa foi obra de sucesso, este Homem deu a Lousada, ao Norte e mesmo a Portugal algo muito mais valioso para o nosso futuro coletivo, que foi o Conhecimento, o saber que nos trouxe sobre a confecção, a tecnologia, o design, o marketing e tudo o mais relacionado com a inovação desta indústria, que fizeram da unidade fabril, no dizer de um seu colaborador muito próximo, uma verdadeira UNIVERSIDADE.

É um facto que, até aí, só existiam alfaiatarias tradicionais fazendo fatos por medida e nada mais, sendo Hans Isler pioneiro na inovação tecnológica, nos métodos e sistemas de produção, na criação do “pronto a vestir”.

A Fabinter tornou-se rapidamente uma referência, uma escola que formou centenas de futuros empresários e onde foram beber o conhecimento todas as empresas de confecção nacionais (repito, todas), tornando-se no modelo a seguir e com quem aprender, sendo assim que Lousada se tornou num polo desta indústria.

Se fosse hoje, em que os créditos contam para a atribuição de licenciaturas como aconteceu recentemente com um certo ministro, aqueles que souberam aproveitar os conhecimentos ali ministrados, com certeza tinham direito à licenciatura completa porque a KISPO fez escola e foi, efetivamente, uma UNIVERSIDADE.

Mas este Homem conseguiu fazer algo impensável, algo ainda mais grandioso: Uma REVOLUÇÃO na forma de vestir dos portugueses, e não só.

Viajemos no tempo e regressemos à década de sessenta e aos hábitos e roupas dessa altura. Os homens usavam normalmente o fato escuro tradicional e, como agasalhos, o sobretudo, a gabardine ou a samarra. Quase não havia blusões, para além de alguns raros de cabedal ou camurça. Nas senhoras eram os vestidos ou conjuntos de saia e casaco clássicos, igualmente conservadores e escuros e, para o frio, o recurso ia para o casaco comprido tradicional.

Quando chegou o “KISPO” tudo isso mudou: Despiu-se o casaco para dar lugar ao anoraque comprido ou curto, simples ou acolchoado, impermeável ou não, de inverno ou de verão, clássico ou desportivo, com muitas cores vivas e variadas. A KISPO libertou as pessoas da forma de vestir e do peso da tradição, dando lugar à moda informal, alegre, desportiva. Usar “KISPO” passou a ser sinónimo de modernidade, de bom gosto e jovialidade, uma lufada de ar fresco, uma alteração radical no visual dos portugueses, no trabalho ou no lazer.

Uma grande REVOLUÇÃO. Hans Isler transformou Lousada de zona rural em polo industrial de confecções, criou e distribuiu riqueza, deixou herança para décadas, senão séculos, nesta terra que, não sendo a sua, adotou e amou, a ponto de deixar indicações para ser enterrado no cemitério mais próximo da fábrica que sonhou e construiu, em Cristelos.

Sendo certo que Lousada não soube aproveitar todo o potencial por ele criado, também é certo que não soube reconhecer, nem homenagear e honrar a sua grandeza ao nível que merecia, e dar-lhe um lugar de destaque na terra que tanto lhe deve, uma ingratidão coletiva incompreensível e uma ingratidão particular de alguns que dele tanto beneficiaram.

E é da gente simples e anónima que surgem as manifestações de agradecimento e homenagem ao Homem, como testemunham as flores depositadas regularmente na sua campa, sinal de que o guardam no coração. E é a esses que, pela grande alegria que ele tinha de viver, custa muito a acreditar na forma como dizem que nos deixou.

A antecipação do seu fim de forma tão brutal, acabou por evitar-lhe o desgosto de ter de assistir a algo de inimaginável: O Bairro Social, cuja existência só foi possível graças a ele e à sua dádiva, foi batizado com o nome de… outra pessoa, que nada fez por isso. Como foi possível cometer-se uma injustiça e uma ingratidão desta dimensão, de forma leviana e aligeirada, algo que não passaria pela cabeça de ninguém? Mas, afinal, passou!!!…

Espero que um dia no Município de Lousada, alguém de bom coração, se eleve ao nível dos justos e “dê a César o que é de César”, rebatizando aquele complexo habitacional social de “BAIRRO HANS ISLER”, dando o seu a seu dono, e erigindo ali, não um busto mas uma estátua de corpo inteiro, de um HOMEM que foi muito grande, se calhar grande demais para a terra onde “fez uma EMPRESA, uma UNIVERSIDADE e uma REVOLUÇÃO”, sem que para ser grande precise que também lhe meçam o pedestal.

A fuga dos porcos

Um canal televisivo nacional noticiou que informadores jornalísticos disfarçados de sobreiros na planície alentejana observaram milhares de porcos a atravessar a fronteira, longe do controle do pessoal do SEF (Serviço de Emigração e Fronteiras) que estava a dormir nos postos de controle (como é habitual), fugindo para Espanha pela calada da noite.

Os informadores não conseguiram saber a razão de tal fuga porque os porcos seguiam de boca fechada mas, um agente infiltrado, seguiu um porco cansado e sequioso da longa viagem “à pata” até este, para matar a sede, emborcar algumas “pias” de suco de bolota, ficando de tal maneira grogue que saiu a correr em direção ao escuro da noite e, não se apercebendo do obstáculo, bateu com o focinho num “chaparro”, estatelando-se no chão zonzo e a grunhir.

Só assim, tonto e desbocado, é que o jornalista lhe arrancou a informação de que a debandada dos porcos para o estrangeiro era para salvar as suas vidas, devido à aproximação das eleições autárquicas de Setembro e das inevitáveis campanhas eleitorais. “Mas porque é que fogem se vocês nem sequer são do governo” quis saber o jornalista?

O porco, ainda com a cabeça a andar à roda da “focinhada”, revelou que a maioria dos candidatos autárquicos a estas eleições se tinham reunido em plenário e decidido substituir as promessas habituais (em que o povo já não acreditaria devido à crise) por festas/comício, onde irão oferecer ao povo (com o dinheiro deste) grandes patuscadas de “porco assado no espeto” regado a tinto carrascão.

Como a partir de agora abriu a “caça ao voto do Zé Povinho” em que todos os meios são válidos para atingir o fim, eles (porcos), antes que comecem as patuscadas prometidas, resolveram “dar à sola” que é como quem diz “dar à pata”, antes que o lume lhes chegue ao rabo. Mesmo zonzo, ainda lhe disse que o sindicato dos porcos, para evitar este massacre da espécie, andou em negociações com representantes dos candidatos, mediadas pelos ministérios da agricultura e da administração interna, propondo que os putativos autarcas continuassem a prometer novas estradas, pavilhões, rotundas e fontes luminosas, bem como empregos nas próprias autarquias (de lado ficou a oferta de televisões, máquinas de lavar, frigoríficos, secadores e outros artigos por serem importados), uma solução bem menos carniceira mas não aceite pelos negociadores. “Ora, ora, são boatos e vocês porcos ficaram logo à rasca” diz-lhe ele. “Pois não, será que você gostaria que lhe enfiassem um pau pelo rabo a cima até sair pela boca, e o pendurassem ao lume ?” perguntou-lhe o porco. “Não responde? Se calhar até gosta…”

Informações posteriores dizem que quase todos levavam consigo as ninhadas para evitar que, na falta de porco para as patuscadas, os candidatos alterassem a ementa para “leitão à Bairrada”.

Em nenhum ponto do país foram vistos porcos pretos em fuga, mas isso foi justificado pelo seu elevado valor nos mercados, que lhes confere o privilégio de ocuparem grandes herdades no Alentejo e de serem tratados com um estatuto especial.

Observadores estranharam a presença de grande número de burros, quase todos de óculos escuros e bem amanhados, tentando passar despercebidos entre os porcos. Mas um agente astuto, deu dois zurros a uma burra tão bem dados que esta lhe confessou que estavam a fugir porque, se ficassem no país, seriam agarrados para ministros ou outros lugares de responsabilidade.

Todos os porcos iam carregados de bolota que levavam escondida nos alforges, com medo dos assaltos. Sabe-se que, durante a fuga dos porcos através das matas, sempre que eram obrigados a atravessar alguma estrada nacional, tinham muita dificuldade em fazê-lo sem serem vistos, por esbarrarem com frequência com comboios de todo o tipo de viaturas, carregadas de artistas e cantores “Pimba” que regressavam a Portugal para as festas/comício. Nisto de festas/comício, os cantores mais requisitados são aqueles que estão no palco rodeados de bailarinas, rebolando tudo o que há para rebolar, fazendo com que os potenciais votantes parem de dar a dentada na febra do porco manco que não conseguiu fugir, de olhos esbugalhados e baba a sair pelos cantos da boca, não pela febra que estão a comer mas por aquela “franga” em cima do palco que “gostariam de comer”.

Patuscadas e promessas à parte, espero que nas próximas eleições os candidatos tenham noção clara do momento que o país atravessa, que não prometam o que não têm para dar e façam campanha pela positiva, evitando o “bota abaixo” e a guerra de acusações e de comunicados.

Que os munícipes não sejam vistos como patetas com um voto na mão que é preciso agarrar, mas como pessoas com rosto, com problemas para resolver. E se está lançado o debate nacional sobre as funções do estado, seria bom que pensássemos nas funções das autarquias e no peso da sua estrutura, se devem ser as sonhadas, com os custos inerentes, ou as possíveis, em função da nossa realidade económica. Porque, no final, com taxas, multas ou impostos diretos e indiretos, são os munícipes que as pagam. E a estes, mesmo sem lhe enfiarem um pau no rabo, para não morrerem “tesos como um carapau”, já só lhes resta fazer como os porcos: FUGIR. Entretanto chegaram “novas” das Terras de Castela” que nos dizem que muitos porcos só lá ficam transitoriamente, dado que a todo o momento também ali pode abrir a “caça ao voto”, que é como quem diz, a “corrida ao porco no espeto”, pelo que preferem instalar-se em países onde não haja eleições ou sejam ao “faz de conta” com um só candidato que não precisa de prometer nada nem de encher a pança de porco aos votantes para conseguir o seu voto.

Enquanto esperam por essa mudança de país, carregam as sacas de bolota que conseguiram levar na sua fuga de Portugal até ao jardim e enterram-nas no banco, isto é, sob o banco do jardim, por ser considerado um local de referência, como que à guarda deste, correndo o risco de um qualquer porco local ali se sentar, dar com as bolotas e meter o focinho abrindo-lhe um rombo enorme se ali ficarem por muito tempo, fazendo com que o banco se quebre ou afunde quando alguém de peso ali se sentar sem saber que está sobre um enorme buraco.

É por isso que outros mais precavidos preferem carregar a maior parte das suas bolotas para lugares que são autênticos paraísos, onde não se sabe quem tem bolota nem quanto bolota tem.

Uma vaca na varanda

Está decidido, vou comprar uma vaca e corresponder ao apelo da ministra da agricultura para produzirmos os produtos que consumimos.

Estive a pensar no que poderia fazer para reduzir a minha factura mensal de bens alimentares e acho que não vou seguir o exemplo da maioria fazendo uma horta social nem sequer a última versão da horta de varanda, como vi há dias na televisão, com uma espécie de sacos pendurados nas paredes onde se produzem diversos legumes pendurados, desde salsa, alface, pepinos, tomates (não é costume eles estarem sempre pendurados?…), beringelas e plantas aromáticas.

Como nos pedem para inovar e que o país só vai para a frente com ideias novas, resolvi comprar uma vaca que vou colocar na varanda, o que me traz múltiplas vantagens. Assim, ao colocar a vaca na varanda dou a esta uma função útil, dado que até agora a varanda tem sido um espaço perdido, que só serve para aparar as cagadelas dos pássaros e dar trabalho a limpar. E como as árvores do jardim estão altas, com os ramos sobre a casa, a vaca pode comer dali as folhas, poupando-me trabalho, tempo e dinheiro a arranjar erva, para além de não ter o trabalho de as podar nem de apanhar as folhas do chão no outono. Mas as vantagens não ficam por aqui, pois como tenho o caleiro e tubo de queda roto, a água cai ali diretamente, mata a sede ao animal e lava a varanda. E já agora, como o rabo da vaca ficará a cerca de quatro metros de altura, se colocar em baixo uma espécie de pequena nora onde caem os dejetos, estes acionam um mecanismo que, ligado a um gerador, é capaz de produzir energia necessária para o meu consumo (que bom será deixar de pagar eletricidade aos chineses).

Não me posso esquecer de, com a rotação da nora, criar um sistema de distribuição dos dejetos da vaca pelo jardim, aquilo a que vulgarmente chamamos um “espalhador de m… … matéria orgânica”. Todos os dias terei leite fresco por detrás da portada do quarto, sendo que no inverno poderá estar meio refrigerado, e para o conseguir, obrigo-me a fazer exercício todas as manhãs ao mugir a vaca ou posso fazer como os vitelos e mamar diretamente da teta.

No inverno posso ainda aproveitar o bafo do bicho para me aquecer o quarto, a chamada “eficiência energética”, para o que tenho só de abrir a janela, o suficiente para ela meter o focinho dentro, o que será útil mas não inovador pois este sistema já foi usado há pouco mais de dois mil anos, em Belém.

Já escolhi também a raça, pelo que vou comprar uma vaca barrosã, daquelas que têm uns grandes chifres que ajudarão a enfeitar a varanda, embora haja quem os use para enfeitar outro sítio…

Estava a comentar com pessoa amiga (e não digo o nome para ela não corar) sobre esta ideia luminosa que me tinha ocorrido de pôr uma vaca na varanda mas ela acabou-me depressa com as “peneiras”, dizendo-me: “Originalidade? Como é que é originalidade se não faltam vacas nas varandas???…” Apesar deste golpe nas minhas veleidades, não perdi o entusiasmo que me anima e já me imagino a chegar a casa e ver aquela cabeça engalanada a mirar-me da varanda, provavelmente a fazer um “Muuuu…… de satisfação (a não ser que esteja de costas e aí a imagem é mais arredondada (com enxota-moscas no meio).

Assim, ao contrário da grande maioria dos portugueses que se vão dedicar às hortas e à produção de legumes, eu fico com o meu problema de abastecimento de leite resolvido, diretamente do produtor e com controle de qualidade total, pois saberei de onde vem o produto. E, dado que a capacidade de produção leiteira da vaca barrosã será superior às necessidades lá de casa, vou ver se os investigadores me conseguem preparar uma geneticamente modificada que só dê leite em duas tetas e que, pelas outras, através dessa modificação, me consiga fornecer também manteiga, requeijão e iogurte, já que bolas de queijo seria muito complicado. Não podendo aproveitar a carne e o couro do animal enquanto vivo, posso recolher pelos das orelhas para fabricar pinceis artísticos e assim dedicar-me à pintura. E deu-me esta veia criativa porque a crise nos está a fazer voltar às origens, isto é, ao cultivo de legumes para consumo próprio, seja em varandas ou terraços nas cidades, seja no quintal aqui na região.

Quem conseguia arranjar um terreno para construir uma casa, antes de colocar uma pedra sequer, surribava o solo, plantava videiras e cultivava a horta nas horas vagas, numa agricultura complementar e de subsistência. Era assim que conseguia a maior parte dos legumes para consumo próprio (e dos vizinhos com quem permutava). Mas os tempos da euforia económica trouxeram o comodismo e a preguiça, a rejeição dos trabalhos agrícolas como se fossem coisa para inferiores, usando (e abusando) da facilidade de encontrar no supermercado tudo à medida sem ter de pegar na enxada, fazendo com que o terreno para além da casa fosse usado para jardim ou pavimentado, porque assim a relva estava sempre cortada, sem trabalho nenhum. Mas os escudos para os legumes no supermercado transformaram-se em euros, muitos euros que escasseiam, obrigando a reaprender ou aprender o que se rejeitou como peçonha, para evitar que essas áreas de tentação os levem.

Saibamos olhar o passado, corrigir os erros e ter a humildade de aprender para viver o futuro. Que eu vou continuar a pensar como colocar a vaca na varanda, já que fui dos que pavimentaram o quintal…