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“Obrigado”. “Gosto de ti”. É tão fácil!

Vivemos a correr e não tomamos consciência sequer do quanto esta vida é transitória, “uma passagem para a outra margem”. Por isso, já nem damos tempo ao tempo, perdemos a paciência porque temos pressa e esquecemos a “arte de esperar”. Queremos tudo para ontem e, qualquer contrariedade, grande ou pequena, “é o fim do mundo”. Ficamos tristes com pequenas coisas e acabamos por perder tempo com o nada. Por nada. E não damos o abraço que desejamos e que o olhar do outro pede. Não nos aproximamos o quanto baste para não expor a nossa fragilidade emocional e nem sequer fazemos aquele carinho que tanto nos apetece, porque não estamos acostumados e nos sentimos retraídos. Nem dizemos vezes suficientes “gosto de ti”, porque achamos sempre que o outro sabe quanto isso é verdade. Mas reclamamos muito do que não temos, do que não é suficiente, do que chegou tarde, do que os outros têm a mais e nós não temos. Também consumimo-nos fazendo cobranças dos amigos, da família, dos que nos são alguma coisa ou coisa nenhuma, enfim, da vida. E, por fim, até de nós. Fazemos comparações, demasiadas comparações com outros, mas só com quem tem mais para nos podermos lamentar, achando injusto. Mas nunca nos comparamos com quem tem menos que nós, porque com esses deixamos de ter argumentos para reclamar.

A Luísa tinha muita vida e alegria de viver, saúde e relações, trabalho e preocupações. E perdeu (quase) tudo de um momento para o outro ao ficar presa a uma cadeira de rodas e a um mundo psíquico que é só seu e ao qual não temos acesso. A sua saúde virou-se por completo e deixou-a dependente da ajuda dos outros, do levantar ao deitar, para se vestir, cuidar, movimentar e tudo o mais. Mas, apesar da ausência e desorientação no espaço e no tempo, manifesta de onde em onde o seu sentido de humor oportuno e incisivo, como aconteceu depois da minha caminhada matinal com a Becas. Ao passar pelo barbeiro aqui perto de casa, vi que ele estava disponível. Por isso, disse à Luísa logo que cheguei cá: “Vou cortar o cabelo”. E ela, numa reação instantânea que lhe é tão característica e atrás dum sorriso irónico, questionou-me: “Que cabelo”? 

Mas o que é extraordinário e mais me impressiona e sensibiliza é que, no seu maior ou menor mutismo a que a falta de saúde a remete e na dificuldade que em certos momentos tem em expressar por palavras o que lhe vai na mente e no coração, há uma coisa de que raramente se esquece: “Agradecer”. Quando a ajudamos a levantar, agradece. Se a formos vestir, volta a agradecer. Se a ajudarmos a cuidar de si, claro que agradece. Se lhe servimos a refeição, lhe chegamos alguma coisa, a levamos de um lado para o outro ou o que quer que se lhe faça, a Luísa não deixa de manifestar a sua gratidão e da sua boca ouvimos muitas vezes ao dia um “muito obrigado”, independentemente de ser da família ou de alguma das pessoas que aqui trabalha. Mas não se fica pelo agradecimento. Não lhe é suficiente. E por isso, manifesta os seus sentimentos por cada um de nós, individualmente e com muita frequência, com um abraço, um beijo e, mais vezes ainda, com “gosto muito de ti”. Apesar dos seus diversos condicionamentos, a Luísa usa o coração para expressar em palavras de gratidão os sentimentos que nutre por nós, sem filtros, sem constrangimentos e sem inibições. E o quanto somos importantes para ela e por fazermos parte da sua vida, pelo abraço, pelo carinho, pela ajuda, pela atenção, pela companhia, pelo apoio, pela companhia. Até chega a expressar, com alegria e boa disposição, o “obrigado por existires, senão tinhas de ser inventado”.

A doença remete-a muitas vezes ao silêncio, parecendo estar ausente e fechada no seu mundo, como na noite em que no canal 1 da RTP decorria um programa do “Prós e Contras” dedicado à questão da redução do IVA que o governo propôs no orçamento de estado para uma parte dos espetáculos culturais assentando a discussão se essa redução devia ser também alargada aos espetáculos de tauromaquia, sob o tema de “Touradas – Cultura ou Tortura”. A Luísa quis assistir ao debate que acompanhou desde o princípio com muita atenção, até porque a discussão estava muito acalorada entre os dois lados em confronto. Quando o programa foi interrompido pela apresentadora e nos mandou para intervalo, impingindo a publicidade do costume, ela deu uma gargalhada e disse com ar de gozo: “Está visto que não vão chegar a conclusão nenhuma porque o maior interessado nesta discussão, nem está lá”. Como estava meio distraído, com um olho na televisão e outro no computador, acabei por fazer aquela pergunta inocente: “Quem”? E ela respondeu, como se já estivesse à espera da pergunta: “O Touro”.

Por norma, somos mal agradecidos pela vida que temos e que foi feita (quase) sempre por nós. Até no seio da família reclamamos do copo fora do sítio, das botas sujas, dos pelos que o cão larga, da luz acesa e de milhentas ninharias, as pequenas chatices que fazemos questão de transformar em problemas. Só quando temos problemas de verdade como as doenças é que esses nadas com que andamos entretidos são esquecidos para focarmos o olhar no que importa. Deixamos pouco por reclamar e muito por agradecer, de tal forma que W. Shakespeare dizia: “Aprendi que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo o que lhe pedimos”. 

Ora, não sei se pela doença, se pela sua índole, a Luísa agradece por todas as pequenas coisas e lembra-nos do quanto gosta de nós. Sempre. Estou longe de estar ao seu nível. Já para não falar no humor subtil. Já perto do Natal, o país foi assolado pela tempestade “Elsa”, com vento e chuva forte que provocou muitas inundações. Enquanto a minha cunhada lamentava a situação dos casos mais dramáticos, a Luísa tinha os olhos postos na televisão onde se sucediam imagens atrás de imagens, com inundações em prédios, ruas que até pareciam rios e rios saídos fora de margens que mais pareciam lagos. Depois de ver aqueles cenários de tragédia em que havia água por todo o lado como se fosse um mal geral, sem mais nem menos a Luísa comentou: “Estou a ver que tenho de comprar umas barbatanas” …

Não gosto de moda, nem de “apertos”…

“Parece impossível. Ainda usas esses calções velhos e rotos? Não tens vergonha”? É isto que ouço de vez em quando cá por casa sempre que me veem com os calções azul marinho, bastante puídos na parte dos “glúteos” (aquilo a que vulgarmente chamamos de “rabo”, “nádegas” ou “cu”), de tal forma que já começaram a romper. 

“Não vês que tem um buraco e parece mal”? Como sou dos que têm dificuldades em me separar de uma peça de roupa que uso regularmente e com que me sinto confortável, respondo: “O buraco é para deixar entrar o ar. É uma “área de serviço” que precisa de ser bem arejada. Também serve para se “esgueirarem” os gases que saem do “tubo de escape”. Já estou na fase da vida em que a capacidade de “produção de metano” está no máximo e não pode ser retida. Tem de sair por algum lado” … aliás, se estão na moda as calças rotas, algumas com tantos rasgões e tão grandes em que pergunto a mim mesmo se “as calças serão feitas de pano com buracos ou de buracos com pouco pano”. Ora, porque é que os meus calções não podem ser tidos como estando na moda, até porque não há grandes diferenças entre calças e calções, a não ser no tamanho das “pernas”? Assim, já não teria de ser chamado à atenção e, pelo contrário, talvez mesmo elogiado por “andar na moda”. É tudo uma questão de conceitos …  

Enfim, o que acontece com estes calções, repete-se ainda naquele par de sapatilhas – para quem não sabe o que são, devo esclarecer que há também quem as trate por “ténis” … – rotas de lado e com um grande buraco na sola que mais parece um olho de elefante; ou com o par de sapatos “vela” a que me habituei porque calçam tão bem, que tenho a sensação de andar descalços. Entre eles, que nunca os sinto quando caminho, e uns novos que me apertam os calos e fazem sofrer o dia todo, está bom de ver qual é a minha opção. A minha e a de muitos outros como eu, que trocam a apresentação pela comodidade. E nas calças de ganga, na camisa e no blusão tão coçado. É verdade, tenho mais roupa no armário, mas repito quase sempre as mesmas peças. “Coisa de homens”, dizem elas com ar crítico. “Mania de mulheres”, pensamos nós, já que não o podemos dizer … Admiro-me com a capacidade de sacrifício de muita gente, especialmente das mulheres, ao “aguentarem forte e feio” as dores nos pés com aqueles sapatos novos e com “ponta em bico”, que apertam de tal forma os dedos dos pés, que chegam a “encavalitar” porque o espaço não é suficiente para todos, num sofrimento continuado, e mesmo assim ficam com eles calçados até ao fim do casamento ou qualquer outra cerimónia, em nome do visual que eles lhe conferem. É obra. Cá por mim, prefiro usar sapatos velhos a ter de me submeter a tal sacrifício. Era o que faltava. Não há nada como andar calçado com a sensação de estar descalço …

Não sou um cliente de modas, muito menos fiel seguidor e escravo delas. No vestir e no calçar a minha prioridade vai para o confortável. E isso quer dizer “largo”, bem “à vontade”, por forma a não me sentir apertado em qualquer parte do corpo, da cabeça aos pés. É que, se há coisa que detesto é sentir-me “apertado”, seja a que título for. Não sei como é possível alguém “enfiar-se” numa daquelas calças tão justas, tão justas, que até se notam as “pregas da pele”. Devem fazer cá uma ginástica em cima da cama, com as pernas ao alto e a puxar bem para conseguir fazer entrar um corpo XL numas calças tamanho S. Tal só é possível pela elasticidade do tecido, que se sujeita a tudo. Se gosto de ver? Claro que sim … mas só nas mulheres. Especialmente naquelas em que as “ondulações do corpo merecem ser realçadas, pois é nelas que a palavra anatomia faz todo o sentido e (às vezes) dá gosto ver …  A moda é um dos instrumentos principais que a indústria usa para nos fazer consumir mais e mais. Por isso tem de mudar todos os anos por forma a “sermos obrigados” a trocar de roupa, calçado e muitas outras coisas com regularidade, mesmo que os artigos que possuímos ainda estejam novos. Para os “manipuladores” das nossas vidas (e do nosso bolso, porque tudo tem a ver com isso), de um dia para o outro tudo deixa de ser novo, apesar dos nossos olhos verem o contrário. Mudam rapidamente de estatuto e viram “desatualizados”. E nessas mudanças impostas pela ditadura da moda, umas veze as roupas alargam e outras apertam. Ora, como não me dou lá muito bem com os “apertos”, aproveito e vou usando as que me agradam (apesar de largas) e fico à espera, até porque, mais dia menos dia voltam a estar na moda … “Diz-se que na moda, só é novo o que já está esquecido” …

Sei que os que me estão próximos preocupam-se com o meu visual. E, como defendem o “estar na moda”, quando uso as calças mais largas nos ditos “glúteos” me vêm logo com uma crítica (intencionalmente boa), de algo como: “Já te viste ao espelho? Olha bem para as calças que trazes e diz-me lá se achas que é roupa que se use? Das duas uma: ou te falta rabo ou sobram calças” …

A indústria da moda mantem uma fórmula que combina consumo desenfreado com exploração de mão de obra. A roupa não fala, mas pode transmitir informações (certas ou erradas) de que quem a veste é alguém atualizado, com dinheiro, e dando a ideia de prestígio e até ascensão social. A moda tornou uma grande parte das pessoas suas escravas, fieis seguidoras, que se sentem infelizes se não puderem usar o que os estilistas ditaram como moda para aquela estação. E a moda não se fica pela roupa, pois estende-se ao calçado, acessórios, penteados, cortes de cabelo, relógios, telemóveis, óculos, automóveis e até casas para além de uma infinidade de produtos e serviços que crescem em número e variedade a cada minuto que passa. Mas o grande perigo da moda é o consumo exagerado e sem necessidade, puro consumismo por vaidade, quando não transformado em doença.

É que vivemos numa época em que o importante nem sempre é ter dinheiro, mas parecer rico …

Cuidado com o cão …

O primeiro cão que tive cá em casa foi um “Serra da Estrela”, grande e bonito, com um “vozeirão” que metia medo. Foi-me oferecido pela minha cunhada que vive junto à serra que lhe deu o nome a quando do nascimento do meu filho mais velho. Veio como cachorro pequeno e cresceu, cresceu, transformando-se num “canzarrão” peludo de que as visitas tinham medo. Ainda pensei colocar à entrada uma daquelas placas a avisar que tinha um cão, mas a verdade é que o bicho parecia mais um carneiro do que o canino guardador da casa de tão meigo e manso que era, apesar de, ao ouvir um ruído estranho lá ao fundo da rua, correr ao portão e ladrar feito trovão, o que poderia ser muito intimidador para quem ouvisse, mas não conhecesse. Pensando bem, desisti de a colocar porque seria enganar quem chegasse. 

No entanto, não posso deixar de me aperceber das placas colocadas por aí abaixo em paredes e portões de entrada de muitas casas, com o típico aviso: “Cuidado com o cão”. Encontro uma grande variedade de placas que tanto podem ser metálicas como compostas de um ou vários azulejos, mais ou menos artísticos, cravados no muro exterior junto à porteira ou portão, com letras vulgares ou rebuscadas e, quase sempre, tendo a pintura duma cabeça de cão, por norma com ar ameaçador. Sou um curioso deste tipo de avisos e até acho piada nalguns casos em tanto conheço os donos como os cães pois “a cara não bate com a careta”. É que os avisos são excessivos, ameaças falsas. Apesar do ar ameaçador da cabeça do cão utilizado para, de forma explícita, intimidar quem quer que se aproxime com boas ou más intenções, a mensagem pode ser real ou não passar de um enorme “bluff”. Por norma, a intenção é alertar para o facto de se ter um animal perigoso em casa, daqueles que, no mínimo, nos podem “agarrar pelos fundilhos das calças”. No entanto há quem se aproveite do cão e o “intitule” de perigoso para intimidar os intrusos quando, afinal, o cão que lá vive é igual à minha cadela Diana que só ladrava de “alegria”. A existir nessas casas algum “animal perigoso”, terá de ser outro e, para que faça sentido, há quem ache que a frase deve ser trocada por: “Cuidado com o dono do cão”. Recentemente, vi num desses avisos um acrescento pintado à mão, que me fez pensar ter sido escrito por alguém que, provavelmente, já teria sido ali “mordido” e que dizia: “Cuidado com a mulher do dono do cão” …

É verdade que, muitas vezes, quando entramos numa casa com o tal aviso pregado no muro da entrada onde o cão tem um ar ameaçador, acabamos por ser confrontados com um animal que mais parece um carneiro manso ou um gato que passa a vida a ronronar. Se ousarmos perguntar ao dono do bicho porque razão tem aquela placa no muro de entrada, ele vai pedir-nos para não dizermos nada a ninguém para não denunciarmos o embuste e ficar a “ameaça” de um cão perigoso, pois, como diz o ditado, “o medo guarda a vinha”. E basta constar que o animal é perigoso …

Mas há mais razões para se colocar o aviso. Ao entrar numa loja, o homem vê um cartaz pendurado na porta onde se lê: “Cuidado com o cão”. Enquanto faz as compras, olha para um lado e para o outro com receio, tentando precaver-se se o animal aparecer perto de si. Foi já quase a sair da loja que, para sua surpresa, encontrou um cão muito pequeno. Ao vê-lo, aproximou-se da senhora que estava na caixa e perguntou-lhe: “Este é o cachorro com que tenho de ter cuidado”? “Exatamente”, respondeu a empregada. “Mas não me parece que seja perigoso”, quis saber o cliente. “Na realidade, não é”, retorquiu a senhora. “Então, porque é que está ali o cartaz à entrada a dizer para termos cuidado com o cão?”, quis ele saber. E soube: “Porque antes, toda a gente o pisava” …

Os avisos entendem-se como preventivos para quem vai entrar numa propriedade onde o animal anda à solta, mas de nada servem para quem passa na rua, a não ser que, mal veja o cartaz à distância, “dê de frosques” que é como quem diz “se ponha a milhas”. E os que não têm cartaz? Há dias ao fazer a minha caminhada matinal atrás da Becas, ao passar junto de um grupo de vivendas, um cão de porte grande que estava na varanda do primeiro andar de uma das casas pregou-nos um susto ao atirar-se por cima da grade de varanda estatelando-se no passeio, para se levantar, atravessar o jardim e com outro salto passar o muro da rua. Num ápice, atacou e dominou a Becas. Estive tentado em dar-lhe um pontapé, mas acabei por o agarrar na parte de cima do pescoço e arrastar de cima dela, até aparecer um rapaz aflito para o levar. Qual deveria ser o cartaz desta casa?

Também já encontrei alguns em que o dono soube pôr uma pitada de humor para aligeirar o teor da mensagem. Pendurado no portão de ferro da entrada de uma quinta podia ler-se, numa letra irregular, o seguinte: “Cão – Cuidado. É proibida a entrada a doentes do coração, bêbados e cagões”. Naquela propriedade só podiam entrar “homens de barba rija”, que não ficassem com as calças molhadas ao primeiro sinal do cão … 

Se tivesse um desses locais onde se “encharca” gente com álcool, teria um letreiro igual a este: “Aqui não entra bêbedo … só sai. – Bar do Quim Latas”. Se tivesse um degrau perigoso, optaria por colocar um aviso igual àquele a que achei mais graça até hoje: “Cuidado com o degrau. O Joaquim quebrou o pé e o Manel t´á Manco”. Mas, como tenho uma cadela que se chama Becas, a colocar algum aviso no muro junto à entrada, seria assim: “Cuidado, com a Becas. Se ela fugir, você assusta. Deitando-se, coce-a. Se correr e ladrar, está feliz. De qualquer maneira, por favor, não a morda” …

Lembrar de quem nos diz muito …

Na pressa dos dias ficamos demasiado focados no (muito ou pouco) que temos para fazer e esquecemo-nos de muitas pessoas que fazem parte da nossa vida, amigos de longa data que deixamos escondidos pelo tempo que lhes não damos. E, longe ou perto, ausentes ou presentes, estando em contacto com regularidade ou muito esporadicamente, são parte de nós. Às vezes questiono-me como é possível deixar passar semanas, meses e até anos sem dizer um “Olá” sequer a familiares, amigos de infância, da escola, do liceu, da faculdade, do serviço militar, da comissão de serviço no ultramar, do trabalho ou mesmo do ginásio, alguns a viver na mesma rua ou localidade, mas que parecem tão “distantes”. Ocupados no corpo e na mente, deixamos que o tempo corra, voe e se nos escape das mãos ao ponto de ficarmos surpreendidos e muito admirados de como foi possível passar tanto tempo sem vermos este ou aquele de quem gostamos. Nesta estúpida corrida em que transformei a minha vida, lembrei-me há dias de um amigo com quem partilhei muito da minha adolescência e boa parte da vida de adulto. E, com quatro dias de atraso, telefonei-lhe para lhe dar os parabéns pelo seu aniversário, para lá dos oitenta anos. Não o vejo há alguns meses e por isso foi bom ouvi-lo. No entanto, apanhei um choque que me deixou triste e preocupado por sentir que ele começou a desistir de lutar para se conservar entre nós. É tramado ouvir alguém dizer que já “não ando cá a fazer nada” e que sente de forma avassaladora e terrível a solidão, apesar de ter mulher e filhos. Mas “não tem companhia”, diz ele. E as suas limitações físicas mais o deixam dependente e condicionado na mobilidade como refém solitário da disponibilidade, da vontade e querer dos que lhe estão por perto. Ou, pelo contrário, bem longe, apesar de ser “curta a distância que os separa. Aproveitei para falarmos desse “ontem” que já tem décadas, das festas e patuscadas, das alegrias e tristezas, dos convívios e ausências, dos sucessos e falhanços. Partilhamos memórias porque estamos naquela idade onde se vive muito de recordações, das histórias de vida. Sem querer, voltamos ao passado que vivemos juntos, olhando as aventuras da nossa juventude e falando das músicas desse tempo. Perguntamos pelos filhos e manifestamos as preocupações sobre eles que carregaremos sempre e de que não conseguimos libertar-nos.

Disse-me que, pior do que sentir-se doente, é estar com o sentimento de que já entrou num plano inclinado de onde não lhe parece ter escapatória, até porque nem forças tem para sair. Está a desistir de tudo, a começar de si mesmo, ele que adorava viver a vida, aproveitar cada momento como se fosse o último. Parece que já nada o motiva, que já não tem uma única razão para se levantar pela manhã. E nem o tempo triste e sombrio tem ajudado …

Não sei se é por estarmos no inverno, a estação do ano mais “inimiga” das pessoas de idade pela “ceifa” que faz em consequência do frio, das doenças da época ou da tristeza dos dias sem luz e sem companhia, mas é verdade que me falaram vários amigos “velhos” a quem a vida levou por outros “trilhos” e que se vão cruzando com o meu de vez em quando. E o filho de um desses “velhos amigos” fez-me chegar através de terceira pessoa uma daquelas mensagens que mexem connosco e não nos deixam indiferentes: o pai estava de cama muito doente e não parava de falar em mim, contando-lhe histórias com mais de seis décadas e manifestando o enorme desejo de me voltar a ver antes que o tempo lhe seja roubado e já não haja tempo para nos encontrarmos. Saber uma coisa destas provocou um misto de emoções e comoveu-me, especialmente porque se trata de alguém que é um pedaço da minha história e foi meu “professor” nessas pequenas coisas que a escola não ensina. 

Não demorei a ir visitá-lo no seu leito de doença e foi particularmente emotivo o reencontro, onde não faltou algum brilho de olhos húmidos. Naquela tarde deixei-me ali ficar sentado numa cadeira junto à cabeceira da cama onde passa os dias desde que veio do hospital, perdido no passado, ouvindo-o muito mais do que falando, porque ele estava muito entusiasmado e até orgulhoso de me ter ali. O momento era dele e não lho podia roubar. Precisava de desabafar e recordar as nossas vivências de crianças e adolescentes, aqueles tempos de pobreza e miséria porque foram muito duros. E, na verdade, tem nesse passado a difícil experiência de sobreviver. Porque, muito mais que viver, sobrevivia-se. Como eu e meu irmão tivemos a felicidade de termos um pouco mais, partilhávamos com ele e outros esse pouco que, nas palavras dele, era muito.

Falou muito, como se fosse uma necessidade. Recordou alguns dos seus trabalhos de “latoeiro”, a sua profissão de então e para a qual tinha jeito natural acima da média, que lhe permitia moldar a chapa como queria. E dos preços incríveis para os diversos tipos de vasilhas que fabricava na sua pequena oficina, dos regadores aos baldes, dos almudes aos cântaros e muitas outras. Mas, sobretudo, evocou esses tempos de miséria onde conseguir alguma coisa para comer era uma conquista, fosse o que fosse. E, para ajudar a suprir essa carência alimentar básica, na época da fruta recorria-se às cerejeiras, macieiras, castanheiros, pereiras e outras que bordejavam os campos feitas “tutores” das “videiras de enforcado” a par dos lodos e plátanos. Com ele aprendi que as melhores cerejas eram nas Cepas, as maçãs “Verdeal” só existiam na Quinta da Aldeia, os diospiros no Souto e os figos em casa da minha avó. Pensando bem, enquanto as aves comiam a fruta da extremidade dos ramos, nós éramos “as outras” que aproveitavam só aquelas onde podíamos chegar. Falou das incursões ao vinho doce da Quinta de Talhos “sugado” diretamente do lagar através de uma cana da Índia comprida que ele se deu ao trabalho de furar para usar como tubo de sucção. E recordou o grupo acantonado na mata por detrás da adega, “chupando” à vez através da gateira por cima do lagar … Lembrou ainda, sem compreender, como o meu irmão António tirou uma fotografia ao nosso grupo, usando para o efeito uma simples lata de óleo de litro com um furo no fundo, que abria e fechava imprimindo a película colocada previamente dentro da lata. Falou muito do passado, animado pela presença de alguém que vivera com ele muitos desses momentos, tendo de parar quando as dores eram mais fortes, até manifestar sinais de cansaço. 

Saí de lá com a convicção de que a visita ao meu amigo foi muitíssimo importante para ele por várias razões, mas especialmente por “validar” os relatos que costumava fazer aos seus sobre os tempos difíceis que passou, diria mesmo que a raiar a sobrevivência, e em que não é fácil acreditar, sobretudo por quem teve sempre comida na mesa à discrição, usufruiu dos comodismos e consumismos deste tempo e nunca passou fome nem privações …