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Ladroagem, os valores que (já) eram

Era eu miúdo quando um comerciante de Lousada foi a França encontrar-se com um amigo mas, como não estava em casa, uma criança francesa foi indicar-lhe onde ele se encontrava. No caminho, ao passar num pomar, apanhou uma das muitas maçãs caídas no chão e comeu-a mas, a partir daí, o garoto passou a dizer em voz alta uma palavra em francês de que ele só soube o significado quando o amigo traduziu: LADRÃO.

Àquela criança ensinaram a “Não Roubar”, mesmo uma simples maçã caída no chão. Questão de princípios e de educação. Nessa época, apesar dos bens de consumo por cá serem infinitamente menos e da pobreza ser muitíssimo mais que hoje, quase não havia roubos, pois a honestidade e o bom nome eram valores a preservar.

Como isso está tão distante e como tudo mudou… A crise é para muitos o (falso) argumento para que em Portugal se multiplicassem os roubos, e nada, mas mesmo nada, está a salvo da praga de ladrões que nos assola. Rouba-se tudo aquilo a que podem deitar a mão, dos computadores às galinhas, dos automóveis ao ouro, dos materiais de construção ao vestuário, das redes elétricas aos postos de transformação, dos produtos agrícolas às registadoras, leve ou pesado, pequeno ou grande, perigoso ou não, fácil ou difícil, vai tudo.

A um viticultor que acabara de plantar uma vinha, roubaram os paus, os arames e… as videiras. Num roubo em Lousada utilizaram um semireboque e um empilhador e noutro uma retroescavadora e um camião. Isto diz-nos que já não é só o “pilha galinhas” que anda por aí, mas autênticas “empresas de ladroagem”, provavelmente com escritórios e estatuto legal. Será que já estão no “ranking” das melhores empresas nacionais? E contam nas exportações?

Conheci recentemente um brasileiro, hoje bem de vida mas que teve uma infância difícil. Era engraxador no parque do Joquei Clube de S. Paulo e até aos dez anos andou sempre descalço. Um dia um cliente deu-lhe uns sapatos do filho, pelo que foi logo para casa mostrá-los à mãe. Mas esta não acreditou e, convencida que ele os roubara, não só lhe bateu como o obrigou a devolvê-los ao dono. Só quando o cliente lá foi a casa confirmar a oferta é que ela acreditou.

Num meio hostil, ela defendia princípios a todo o custo e, apesar do castigo injusto, hoje agradece à mãe os valores que lhe transmitiu. Será que entre nós ainda é comum esta defesa de princípios?

Olho para trás no tempo e vejo as casas da aldeia de portas abertas, de onde nada desaparecia, todos eram confiáveis. Hoje a minha mãe tem sempre a porta trancada à chave e até colocou uma porteira exterior com trinco elétrico… Mais, faz-se aquilo que outrora seria um sacrilégio, como roubar igrejas e santos, escolas e cemitérios (um dia destes desenterram mortos para lhes tirarem os dentes e o fato), hospitais e instituições sociais (há dias roubaram uma viatura e os alimentos que eram para distribuir pelos pobres), velhos e indefesos. Até na cascata de S. João, no Porto, roubaram a imagem de Cristo e… a caixa das esmolas, claro.

Mas estes “artistas do gamanço” têm nos (muitos) políticos, gestores públicos e figuras mediáticas, e até mesmo instituições bancárias e não só, (maus) exemplos na arte dos “desvios” de dinheiro (eles não roubam…), e que arte… Se aqueles que são tidos como “oficiais e cavalheiros” não passam de “ladrões de gravata”, que se pode esperar do cidadão comum, senão seguir-lhes os exemplos? E é cada exemplo!!!… Mas se os “desvios” dos “cartolas” são graves, mais preocupante já é a opinião pública aceitá-los como um sinal de esperteza e não como ladroagem, dizendo-se mesmo que “aquele é que foi fino”. Faz o “ Elogio do Ladrão” quem o deveria condenar… E quando algum ladrão é apanhado pelas autoridades, que lá vão fazendo o que podem, se for levado a tribunal sai deste mais depressa que o agente que o apanhou.

Mas afinal quem violou a lei, o ladrão ou o polícia? Estará a lei de pernas para o ar e ninguém notou? Se culturalmente já lá não vamos e se a justiça já não consegue travar a escalada de roubos, restam-nos algumas soluções pouco ortodoxas, a referendar talvez entre os adeptos de um dos clubes grandes do futebol no dia em que a sua equipa perder o jogo decisivo com dois penáltis roubados pelo árbitro: Uma, dos pacifistas, que aos ladrões se devem atirar… flores e serem “catequizados” por psicólogos pois, se não deixarem de roubar, pelo menos que passem a ter boas maneiras ao fazê-lo. Para os radicais, há três soluções: “à lei da bala”, com o Zé de revolver à cintura e de carabina a tiracolo como no faroeste, “dormindo acordado” e podendo disparar primeiro e perguntar depois, ou aplicando a lei de talião conforme o Código de Hamurabi, expresso na máxima “olho por olho, dente por dente”, ou usando a lei islâmica com a amputação das mãos que roubarem. Cá para mim devemos é ser “fixes” e fazer “O Elogio do Ladrão”, legalizar o roubo e a “profissão” para que esta possa ser exercida por qualquer um de nós, até ensinada nas escolas pois “professores qualificados” não faltam por aí.

Assim, não haverá discriminação entre os que roubam e os que são roubados pois passaremos todos a ser ladrões, iguais entre iguais, com os mesmos direitos, cumprindo-se a democracia. E roubando-nos uns aos outros todos estaremos em “pé de igualdade” e até seremos perdoados porque, “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”.

D. Branca, esqueceram-na? Já voltou…

Quem não sabe o que é o “conto do vigário”? Pouca gente, presumo, pois é cada vez mais difícil encontrar alguém que não tenha caído nesse logro.

O “conto do vigário é um golpe usado para enganar pessoas, umas vezes ingénuas (normalmente idosas) outras vezes gananciosas, e conseguir o seu dinheiro oferecendo-lhe falsas vantagens em negócios duvidosos ou encerrando uma situação complexa que leva a pessoa a entregar o dinheiro sem desconfiar do engodo. É um embuste preparado com má-fé, para aproveitar-se de alguém menos prevenido.

Quanto à origem do nome “conto do vigário”, os brasileiros atribuem-no a uma disputa entre dois vigários (padres), em que um levou a melhor sobre o outro através de um estratagema.

Já Fernando Pessoa tem a sua versão do conto, no qual Manuel Vigário, pequeno lavrador ribatejano, ludibria dois negociantes de gado fazendo um pagamento com notas falsas, só possível porque os negociantes se focaram em enganar o Manuel e acabaram … “vigarizados”.

Nos anos setenta/oitenta existia no Porto uma mulher que “livrava” da tropa qualquer mancebo. Ficava-lhes com os papéis da chamada, metia-os numa gaveta e dava-os logo como livres do serviço militar. Eles ó se aperceberam que eram refratários anos mais tarde, quando precisaram de algum documento militar. A polícia viria a identificar mais de três mil jovens dados por essa senhora como “livres”… de sessenta contos cada um… Há muita variedade de golpes nos “contos do vigário”, desde o bilhete premiado que se deixa ao incauto a troco de algumas notas para fazer qualquer coisa, o volume de notas embrulhado em papel de jornal que entregam como salvaguarda por algum dinheiro adiantado, uma herança desconhecida de alguém que faleceu e que é necessário massa para desbloqueá-la, etc., etc..

Na maioria dos golpes a ganância é o denominador comum nas vítimas, pois a pessoa enganada procura tirar vantagem sobre o outro. E essa ilusão da vantagem fácil numa transação cega pela ambição, impede o incauto de enxergar que algo está errado. Há por isso até quem defenda que sempre que isso acontece, não deva ser considerado crime porque fica a dúvida sobre quem é o desonesto.

Existem as chamadas “burlas institucionais”, feitas por ou ao abrigo de instituições da maior “respeitabilidade”, de que são exemplo dois bancos portugueses, o BPP e o BPN, sendo no primeiro burlados os clientes enquanto no segundo, por decisão do governo de então, os burlados passaram a ser todos os portugueses (mesmo os que nunca tiveram nada a ver com o banco), em substituição dos clientes.

Na história das maiores burlas em Portugal está a Dona Branca, que viria a ficar conhecida pela “Banqueira do Povo”. Começou a sua atividade no final dos anos 50, recebendo depósitos de clientes a quem pagava juros de 10% ao mês. Era o chamado “esquema da pirâmide” (conhecido nos Estados Unidos por Esquema Ponzi, um italiano que ali deu esse golpe), em que o dinheiro dos novos depositantes é usado para pagar os juros aos mais antigos. Acabou por ser presa, julgada e condenada por burla agravada, depois de lesar muitos incautos em vários milhões de contos.

Como foi possível uma mulher tão simples burlar tanta e tão variada gente? Como foi possível atuar ao longo de tantos anos, sem que a justiça agisse? Porque havia gente responsável que lá meteu o seu dinheiro à espera do milagre da multiplicação? A resposta está na ganância dos investidores que não se questionaram se havia algum negócio que pudesse gerar tantos lucros para pagar juros tão obscenos.

Só para conforto da consciência, alguns acreditavam que eram minas de ouro e negócios de armas… A verdade é que não se aprende nada com a história pois nisto, tal como na moda, “só é novo o que está esquecido”. E é por a D. Branca estar esquecida que poderemos estar perante um novo caso na região, com outra roupagem mas com o mesmo esquema, aliciando investidores com a promessa (também) de juros de 10% ao mês, repito, DEZ POR CENTO AO MÊS. E, ao que se sabe, não faltam clientes!!!

Mas, por quanto tempo? Será que estes incautos, alimentados pela ganância de ganharem uma pipa de massa, não veem que lhes vai acontecer o mesmo que aconteceu aos depositantes da Dona Branca? Enquanto entrarem novos investidores e as autoridades não agirem, o esquema funciona, e depois? Vão ser depenados como patos, pois alguém vai ficar com o seu rico dinheirinho… Um dos clientes dizia a um vizinho que até tem medo de tanto dinheiro que tem ganho… Quem é que está a querer enganar quem? A ambição cega e não permite que se raciocine para perceber que NÃO É POSSÍVEL, que não há petróleo, nem ouro, nem tráfico de armas que rendam tanto, e que a história vai ter um final triste… para uns quantos. É só uma questão de tempo e não gostava de estar aqui um dia destes a dizer: Eu bem dizia… Há uma expressão popular que exprime bem o que lhes vai acontecer: “Vão buscar lã, mas vão sair tosqueados”…

A (in)gratidão: A herança rejeitada

A gratidão é o ato de reconhecimento a alguém de quem se recebeu um favor, uma ajuda, um benefício. É o não esquecer uma dívida para com outro e a forma de o demonstrar. Sendo fácil de compreender este sentimento tão nobre, torna-se raro executá-lo e retribui-lo pela vida fora.

Diz-se que a gratidão tem memória curta, que envelhece rapidamente e morre. Daí o ditado “O dia do benefício é a véspera da ingratidão”, completado com “Faz o bem e não olhes a quem”, filosofia acertada mas difícil de praticar pela fraqueza humana que olha mais para os interesses imediatos, o materialismo.

É verdade que a gratidão de alguns não passa de uma forma de continuar a receber favores, situando-se a meio caminho entre um favor recebido e um favor esperado. Pitigrilli dizia que “agradecidos são aqueles que ainda têm algo a pedir”. Já tive experiências do género e chegam a ser convincentes.

Quando pretendemos um favor parece-nos que não o esquecemos mais mas, quando o alcançamos, desaparece da nossa mente. É que a vaidade tem horror a tudo o que desperta lembrança da nossa indigência, pois aborrecemo-nos de quem nos faz bem porque ficou a saber das nossas necessidades. São poucos os que reconhecem que só se paga um benefício com outro ainda maior e que, quando não se pode pagar, ficaremos sempre a dever.

Quem faz um favor não pode ficar à espera de que lhe sejam gratos senão, “bem pode esperar sentado”. É que, se recolheres um cachorro faminto e lhe deres comida, água fresca e carinho, ele não te morderá, mas se o fizeres com os homens, não podes ter essa certeza. Nunca se agradece com tanto fervor como quando se espera um novo favor, pelo que os homens estimam-se não pelos favores que tenham prestado, mas pelos que possam vir a prestar. Daí o esquecimento, a desconsideração e a ingratidão por tantos que tanto deram, como é o caso dos aposentados, dos idosos e outros que já não podem ser úteis nem fazer mais jeitos.

Dizia Tácito que “os homens apressam-se mais a retribuir um dano que um benefício, porque a gratidão é um peso e a vingança um prazer”. Se é certo que quem recebe um favor não o deve esquecer, também quem o faz nunca o deve lembrar. O gesto de agradecimento está muito mais nos pobres e nos humildes enquanto a ingratidão é dos soberbos e ambiciosos.

Ser-se grato é uma virtude das almas boas, é uma medida do caráter de alguém com quem se pode contar e confiar, é um pouco de humildade que nos faz reconhecer o outro como parte da nossa alegria, sem bajulação, servilismo ou lisonjas.

O simples ato de dizer “Obrigado” a alguém pode ser importante, não só para essa pessoa como para quem o diz. E tão poucas vezes se diz essa palavra com o coração… Costumo dizer que tenho de dar graças a Deus pelo que tenho em vez de me lamentar pelo que não tenho. Apesar disso, não manifesto esse agradecimento vezes suficientes pelos bens que Ele me concede, mas recorro vezes demais à Sua bondade nos males que me afetam. Penso até que devemos estar-Lhe gratos por não nos dar tudo o que lhe pedimos.

A gratidão é prática que se recomenda até porque, não sendo natural no ser humano, precisa de ser cultivada, sobretudo entre os mais novos, na sua formação. A sua prática não tem contra indicações, dado que ser-se grato não é uma manifestação de submissão nem de inferioridade, pelo contrário, tem um toque de nobreza e de grandeza da alma. E ao longo da nossa viagem há tanta gente que nos deu a mão, matou a sede, nos levantou quando caímos, atos e gestos que tantas vezes olvidamos com sinais de ingratidão. De entre todos, os nossos pais são aqueles a quem mais devemos estar agradecidos em regra geral, pelos sacrifícios por que passaram para nos criar, educar e ajudar, abdicando de si mesmos para nos colocar sempre em primeiro lugar.

Por isso, de nós filhos exige-se respeito, carinho, reconhecimento e gratidão para com eles, muito especialmente na sua velhice, para compensar a debilidade física e mental. E que vemos nós? Pais espoliados pelos próprios filhos dos bens de uma vida e rejeitados ou abandonados à caridade; idosos recolhidos em instituições sociais mas esquecidos pelos seus, onde a verdadeira família passa a ser o pessoal do lar; falta de tempo para os velhos (se nem tempo têm para os filhos…); maus tratos físicos e psíquicos (mas não se esquecem de lhes ficar com o dinheiro da reforma…); vergonha da sua condição de humildes (mas a quem devem o ser “grandes”…); etc., etc..

Um dia disseram-me que “os filhos esperam receber sempre alguma coisa dos pais mas estes não podem esperar nada dos filhos”. Talvez por isso, a gratidão seja uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário (é a parte da herança que rejeitam). E se esquecem os pais em vida, com certeza não os esquecem na morte, aparecendo como necrófagos, sem vergonha nem remorsos, litigando pelos restos. E diz-se que a gratidão é a virtude das almas nobres e a memória do coração!!!… Quando o coração quer ter memória…

‘Tou? ‘Tou xim… É p´ra mim!!!…

A cena passa-se junto de uma loja de telemóveis num centro comercial no Porto: À entrada, um adolescente está encostado à porta com cara de “poucos amigos”. Lá de dentro sai a mãe para tentar que o seu filho aceite o telemóvel que o pai lhe quer comprar, mas ele rejeita, responde torto e diz que “então não quero nenhum”.

Pelos sinais que me chegam percebo que o rapaz quer um “Iphone não sei quantos” mas os pais pretendem dar-lhe um telemóvel normal. A cara de zangado fica, a mãe continua a tentar apaziguar e eu sigo o meu caminho sem chegar a saber se ele consegue o seu objetivo, usando a chantagem emocional sobre a frágil senhora. Mas acredito que sim, é o habitual…

O primeiro telemóvel lançado pela Motorola em 1973 era grande, pesado e com poucas funções, mas rapidamente diminui de peso e tamanho, crescendo em capacidades. Se nos primeiros tempos era um elemento de afirmação social, com o passar dos anos e da proliferação de marcas e modelos, banalizou-se a sua utilização e tornou-se um produto de consumo corrente.

À volta deste pequeno aparelho que invadiu a nossa privacidade, se tornou ferramenta de negócios, trabalho, estudo e tanto mais, gira um mundo de tecnologia cada vez mais sofisticada, com capacidades muito para além do imaginável. E cada um de nós, em maior ou menor escala, acabou por aderir a este instrumento, que se tornou uma extensão do braço milhões de utilizadores.

Compreendo a sua importância na vida pessoal dos seres humanos, no mundo dos negócios e na nova dinâmica que criou ao eliminar vazios no serviço, na reorganização do tempo e espaço, em especial com a integração da computação, colocando-nos sempre disponíveis, reaproveitando e ressuscitando os tempos mortos das filas de espera aos transportes. Mas, ao observar o exagero do uso do telemóvel, pergunto-me como é que a humanidade conseguiu viver e sobreviver sem ele durante tantos anos e, ao que parece, mais feliz?

Para a geração que já cresceu com ele, dispensá-lo é impensável, pois tornou-se parte integrante da pessoa e da vida e a sua perda é comparável à perda de um membro, porque seria ficar desligado dos amigos, da informação e do conhecimento. São os jovens os maiores consumidores deste produto, especialmente nas tecnologias que lhe estão associadas, e os pais dão-lhe os meios para tal, cada vez mais cedo, de tal forma que, a continuar assim, qualquer dia ao “encomendar-se” um filho é melhor pedi-lo com telemóvel “incorporado”, como acontece com os automóveis…

Começam cedo a consumir minutos, a usarem o telemóvel como consola para jogos, a comprar aplicações e novos modelos de aparelhos, dominando as funções com um à vontade impressionante e adquirindo uma prática tal no envio de mensagens que nem sequer precisam de olhar para as escrever. São consumidores natos que o marketing das empresas explora bem e que os paizinhos financiam para além do aceitável.

O telemóvel teve um impacto profundo na forma como vivemos e interagimos, tornando-se um meio de comunicação interpessoal e de massas, também olhado como uma tecnologia de afetos, uma forma de comunicar sentimentos e emoções. Mas não deixa de ser menos verdade que perdemos a privacidade, nos deixamos interromper pelo seu chamamento, nos tornamos dependentes do seu uso com os custos inerentes.

Eu aderi contrariado, tendo começado por um simples só para fazer ou receber chamadas mas, a sua utilidade profissional fez com que, pouco a pouco, se tornasse parte integrante do meu vestuário. Recentemente evoluí para um modelo mais avançado que me permite falar à borla com o meu filho que vive no estrangeiro, embora aproveite muito pouco das suas outras capacidades, mas por incapacidade minha.

Acompanha-me desde que acordo até que me deito e, ao deixá-lo ligado no modo “silêncio” à noite, tenho uma porta aberta ao mundo a pensar nos que me são afetos e estão mais ou menos distantes. Não seria mais racional desligar o “animal” às refeições, aos fins de semana, durante a noite, etc., e enfiá-lo numa gaveta para nem sequer cedermos à tentação? Mas pensamos que pode haver uma notícia urgente, se calhar triste. E se for? Não pode esperar como sempre esperaram? E se for triste, não será melhor recebê-la mais tarde?

Confesso um pecado: Como estou sempre contactável, só raramente o coloco no modo silêncio. Isso leva a que muitas vezes toque durante uma reunião, seja interrompido e, instintivamente, atenda. Até parece que o que se passa lá fora é mais importante do que o que se passa dentro da sala, um sinal de mau gosto, de falta de educação e consideração pelos presentes. E sinto-o quando me vejo do outro lado… Mas dizem que é a chamada “atenção de baixo para cima” que nos provoca uma reação instintiva quando toca, fazendo-nos agarrar no sacana do aparelho e dizer automaticamente: ‘TOU? TOU XIM… É P´RA MIM!!!…”

A praga de usurários! Quem nos acode?

A ambição é o desejo de se ter dinheiro, poder, honrarias e tantas outras coisas. Se contida e controlada, pode ser saudável, digna, uma ferramenta para atingir um ideal que se anseia. Mas por mais digno que seja esse ideal, se quem o persegue usar meios miseráveis para o atingir, será sempre um miserável.

Pode dizer-se que toda a ambição é legítima, um direito de qualquer ser humano, excepto as que são construídas sobre as necessidades e as misérias da humanidade. E essa barreira é ultrapassada tantas vezes, demasiadas vezes, por gente sem escrúpulos que só vê o fim em si sem se preocupar nem com os meios nem com a sua legalidade, pois o objetivo desculpa a ilegitimidade dos meios para o atingir.

Nesses desejos incontidos, o desejo de possuir dinheiro, muito dinheiro, é o mais comum, e o aumento de dinheiro é quase sempre proporcional à vontade de possui-lo. Sendo o dinheiro um dos meios para se ser feliz, há quem o tenha transformado no único meio, quando não no fim em si mesmo, Para esses, quando sem dinheiro, até a honra é considerada uma doença.

Toda a gente tem sonhos, divagações, espera ganhar a lotaria, o euro milhões, encontrar ouro e dinheiro fácil, ser rico de um momento para o outro. Por isso são cada vez mais os apostadores nos jogos (ditos) sociais, algo que normalmente também está associado aos tempos de crise, sonhando, esperando que chegue o seu dia da sorte na roda dos números. Mas há os que não querem sonhar, que querem chegar lá e depressa sem olharem a meios, contornando as leis, atropelando, explorando e depenando todos os que se lhe atravessam no caminho.

Vem isto a propósito dos tempos difíceis que vivemos, em que tanta gente passa por momentos de aflição, fruto da cabeça que não soube gerir a vida, dos azares do negócio ou jogo, vítima dos profissionais das falências fraudulentas, atingido pelo desemprego e apanhado com o empréstimo da casa, do carro ou de milhentas coisas dignas e sonhadas mas que as circunstâncias do momento puseram em causa.

Confrontados com a necessidade, tentam recorrer ao banco que já não empresta a (quase) ninguém e, fechados estes, restam as empresas e consultores de crédito, espalhadas por aí ou apregoadas nos jornais em anúncios de “empréstimo fácil”, “dinheiro para fazer o que quiser”, “empréstimos urgentes e sem burocracia” e outros mais. A verdade é que, com tanta publicidade e facilidades para conseguir empréstimos, esquecemo-nos do ditado de que “quando a esmola é grande o pobre desconfia” e até nos convencemos que é verdade. E quem está endividado e precisa, não percebe que vai contrair mais uma dívida, quebrando uma regra de ouro: “Não pedir créditos para pagar créditos”. Só que é uma solução cara, regra geral demasiado cara, que as pessoas aceitam silenciosamente, às escondidas, envergonhados para o dizerem sequer ao melhor amigo, ficando totalmente indefesos nas mãos de agiotas, de especuladores sem escrúpulos, com os olhos e as garras cravadas na frágil vítima.

O João (nome fictício) foi parar a uma dessas empresas, pedindo dez mil euros. Tudo foi fácil mas deixou logo dois mil e quinhentos para as despesas da empresa (33% de juros à cabeça) pelo que só trouxe sete mil e quinhentos, e passou cheques da dívida e dos juros (dez mil e quatro mil e quinhentos euros) para os financiadores, gente que está por detrás da empresa e nada tem a ver com ela, homens “Bons” da sociedade local, pagando assim no total mais de 60% ao ano.

Como é possível? Como podem estes especuladores agirem por aí impunemente? Uns (os consultores) e outros (os investidores), duas espécies de agiotas que a justiça não controla? Quem nos acode e protege estas vítimas indefesas, quais carneiros a caminho do matadouro? Mas ainda há pior, muito pior, pois pastam por aí particulares a cobrarem 10% e até 12% ao mês, o que ultrapassa os 300% ao ano. Inacreditável, inconcebível… A lei prevê os empréstimos particulares, limitando os juros ao máximo de 7% ou 9% ao ano. Acima disto é crime de usura, mas a verdade é que a lei é burlada ao máximo, contornada impunemente.

Pagam-se juros abusivos e extorsivos de forma ilícita, criminosa, praticada por gente que leva a ambição e a ganância ao extremo, aproveitando-se da necessidade e miséria de outros homens. E ao que se sabe, à nossa volta e com muita frequência, que a necessidade é muita.

Ouço as retóricas de revolta contra os credores do país por cobrarem juros de mercado e ao fim de 38 anos dizerem “BASTA”, sem críticas a quem criminosamente (e impunemente) criou o monstro da dívida, de um lado ao outro do arco do poder, mas não ouço vozes contra a especulação à nossa porta, essa sim a juros de bradar ao céu, que a vergonha da necessidade não dá a conhecer, mas que tem de ser denunciada e deve ser condenada (se bem que já não sei onde nem por quem…).

Alguém disse que há homens que são como porcos insaciáveis que se alimentam de dinheiro, mas muitos transformam-se em abutres para comerem até as carcaças dos “mortos-vivos”, os desgraçados, as vítimas frágeis e indefesas da sociedade de hoje. E por todos essas vítimas dos agiotas, temos o dever de alertar e ainda mais, de os denunciar. Em nome da dignidade humana.

Primavera, dos cantos e dos encantos

Estamos a meio de Maio e pensei que estávamos na Primavera, mas parece que me enganei. Lá fora chove que se farta e faz frio e, em diversos pontos do país, até cai neve. Isto vai lindo… Se eu fosse velho diria: ”O tempo já não é o que era, porque no meu tempo”… Mas não digo, até porque no meu tempo na Primavera eu estava mais preocupado com a mudança de brincadeiras, deixando de jogar ao “espeto” e ao “pica” para jogar o “peão”, a “bilharda”, ir às cerejas e aos ninhos de fisga no bolso.

Sempre foi a época do ano minha preferida, não só pelo rejuvenescer das árvores, pelas flores e, sobretudo, pelos pássaros, a quem me dedicava muito. E com a melhoria das condições climáticas, já tinha mais liberdade para percorrer campos e montes, um passatempo que me dava muito prazer.

Cedo aprendi a subir às árvores, copiando o jeito de uma rapariga que o fazia com extrema habilidade: A Ana, da Albertina (Albertina era a mãe), essa maria/rapaz que não teve tempo de ser menina por ter de ser responsável antes do tempo. A necessidade de quem nada tem e para quem o pouco já era muito, fez com que ela cedo fosse apanhar sacos de pinhas para acender o lume em casa dos pais e para vender, para o que ia quase todos os dias ao monte, quando muitos proprietários nem sequer deixavam apanhar as “tonas” dos eucaliptos ou o “pinho”. Envolvia as pernas num saco de serapilheira para se proteger da casca áspera dos pinheiros (e dos olhares indiscretos dos rapazes) e, com uma ligeireza invulgar, trepava até aos mais altos – e nessa altura havia-os bem grandes .

Enquanto ela subia à procura das pinhas, eu subia atrás dos ninhos de pega, do tamanho de um cesto, ou de rola, essa preguiçosa que põe tão poucos gravetos que ás vezes as ovas até caem pelos buracos, ou de gaio, esse pássaro de cores bonitas. E arrisquei a subir também a alguns em que os meus bracitos não conseguiam envolver todo o tronco, só o suficiente para cravar as mãos na casca e conseguir segurar-me. Aprendi a conviver com todos os pássaros da região, a conhecê-los bem e a conhecer-lhes os hábitos, o canto e até o voo.

Era um prazer descobrir os ninhos dos “chascos” no meio do mato, uma espécie de quebra cabeças, de encontrar um ninho de ferreirinho nos poços ou de poupa em casas velhas, feito de trampa.

Gostava de observar através da janela do meu quarto os bandos de pintassilgos com canários à mistura pendurados nos cosmos, as flores que a minha mãe semeava atrás de casa, ou localizar os ninhos de tantas outras aves como as toldeias nos carvalhos, os tanjarros nos pinheiros, as “cerejinhas” nas ramadas, os petos em buracos escavados nas árvores, das andorinhas, das lavercas, dos pintarroxos, dos piscos, etc., etc..

Se eram as carriças e os rouxinóis os mestres do canto, eram os melros que mais me atraíam. A sua coloração preta e o bico amarelo dão-lhes um ar de solenidade, mas a sua variedade de cantos, desde a fase do namoro, mais requintado e complexo, à fase em que já têm filhotes, um som quase gutural, permitia-me conhecer pormenores da sua evolução.

E era a partir da cerejeira da Emilinha “Séria”, onde iam apanhar os frutos mais maduros, que os seguia para descobrir o ninho algures num silvado ou entre os rebentos de um lodo. Não havendo dinheiro nem mercado para comprar aves exóticas, o melro era o pássaro mais criado em gaiolas (eu nunca o consegui fazer) e o Tónio “Riço”, o empregado da minha avó, era especialista nessa criação, chegando mesmo a ensinar um a assobiar a música do “Avé”, de Fátima.

Ao observar os ninhos, às vezes era surpreendido ao dar com um filhote diferente da ninhada, geralmente maior, Era o preguiçoso cuco que ia aos ninhos dos outros comer um dos ovos e pôr um seu, deixando a terceiros o trabalho de chocar e criar o seu sucessor. Já adulto, viria a descobrir que entre os humanos também existe essa prática de pôr ovo em ninho alheio…

Mas tudo isto porque há dias voltei a ouvir uma notícia que já ouvira por diversas vezes: A de crianças que desenham o frango conforme o veem no supermercado, porque não o conhecem vivo.

E isso levou-me a refletir nesta tristeza de educar crianças desligadas da natureza de que fazem parte. É curioso que até lhe serão familiares através da TV aves exóticas como o flamingo e outras, mas não sabem nada sobre as “vidas” das que as rodeiam, vidas de seres que embelezam o cenário do seu dia a dia e que fazem parte do seu mundo, aliás, seres que fazem parte do mesmo ecossistema a que elas próprias pertencem, mas que lhes são invisíveis. Mas pensando bem, porque é que me devo admirar se nós mesmos hoje já não conhecemos a maioria dos nossos vizinhos?

Acaba por confirmar-se que “santos da casa” continuam a “não fazer milagres”. Mas seria bom que nos lembrássemos de que “antes de querermos conhecer os outros, devemos começar por nós”, neste caso, pelo pequeno mundo que nos rodeia e do qual somos parte integrante.

A evolução da retrete… (ou, da estrumeira à sala de banho)

Estava à dias sentado na sanita de uma casa de banho ultra moderna, com assento almofadado e tão macio que até me apetecia continuar ali para além do tempo necessário à função quando, face a tantos luxos para assentar o rabo, me vi a rever todo o tipo de instalações que conheci ao longo da vida, usadas para esse fim.

O rebobinar desse filme levou-me ao princípio, isto é, à infância, quando a maioria das casas da aldeia nem sequer tinha retrete. Só havia a “estrumeira”, um grande buraco feito em frente da porta da cozinha, cheio de fetos, pinho ou mato, e para onde se atirava tudo o que eram despejos, dejetos ou lixo. Ali eram feitas as necessidades de cada um dos moradores, diretamente na “estrumeira”, em pé ou agachado, ou indiretamente através do “penico”, que se usava debaixo da cama para utilização noturna.

Ao fim de alguns meses, normalmente a quando das sementeiras, a “estrumeira” era esvaziada, sendo o estrume utilizado como fertilizante orgânico no quintal da casa. E voltava a encher-se o buraco com fetos, pinho ou mato…

Na casa dos meus pais havia retrete, um espaço próprio fora da habitação mas com porta para o pátio e junto à porta da cozinha, o que já era tido como um privilégio. Lá estava aquela caixa de madeira com um buraco redondo, tapado por uma tampa com pega. Só tinha de levantar a tampa, sentar-me no buraco e “puxar”, sentindo as moscas e varejas a esvoaçar lá por baixo. E no final do serviço, dava-me ao luxo de me limpar a papel de jornal cortado aos bocados, coisa que só existia em muito poucas casas. Mas por ali, nunca consegui ler nada…

Na escola de Macieira, construída no Plano Centenário, já havia a sanita turca, uma que tem sítio para se colocarem os pés para nos agacharmos depois de descer as calças e tentar acertar no buraco estreito que está no chão, o que nem sempre acontecia. E até já tinha um cadeado para puxar o autoclismo, instalado lá no alto. Mas, quando fora da escola e na brincadeira no monte ou pelos campos, se a vontade chegava, era só procurar um qualquer recanto, fazer o serviço e limpar o dito com folhas de videira ou de couve, quando não com uma mão cheia de fetos (como são ásperos!!!…).

Já a estudar em Coimbra passei a dispor de sanitas em porcelana, mas sem tampa, “por razões higiénicas” diziam, desagradavelmente frias ao sentar. Encafuadas em cubículos estreitos, as paredes e porta estavam todas riscadas, com versos e todo o tipo de frases. A que me ficou gravada para memória futura dizia: “Neste lugar solitário, onde a vaidade se apaga, todo o fraco faz força e até o valente se c…”

No entretanto, as “estrumeiras” foram sendo substituídas por retretes colocadas num qualquer espaço exterior da casa, em geral no quintal, o que já era uma evolução.

O uso da sanita generalizou-se, democratizou-se, a retrete foi dando lugar ao WC, privado ou público, espaço de todo o tipo de leitura (não como quando o jornal era posto à frente do olho, nessa altura tinha outra função) e de escrita (nas paredes e portas)reveladoras do génio de grandes escritores e poetas, intelectuais que se terão perdido a “fazer força”. E, pela sua comodidade (e para matar o tempo de espera, que é variável de pessoa para pessoa), a sanita passou a ser um local privilegiado para ler o jornal, a revista ou o livro que se não quer perder, mesmo nesses momentos de “aperto”…

Com a melhoria das condições de vida a casa de banho passou a substituir o WC, uma designação mais abrangente, refletiva de um certo grau de desafogo financeiro, ainda mais expressivo nas salas de banho, sinal de opulência e prosperidade, crescendo em dimensão, na qualidade dos materiais de revestimentos (do azulejo ao mármore mais raro, da madeira ao cabedal), no tipo de louças sanitárias (das simples às mais rebuscadas ou até com assinatura).

As banheiras simples deram lugar aos jacúzis, que na maior parte dos casos ninguém usa mas que é bonito dizer que se tem. As casas de banho passaram assim a ser também uma exibição do luxo, da vaidade (e do dinheiro), apresentadas quase como monumentos à m……odernidade, um desperdício do vil metal ao querer-se que elas vão para além da sua função. Espalharam-se por toda a casa, muitas vezes em número superior ao dos quartos, prático para quem as usa, nada prático para quem as limpa.

Mas toda esta reflexão sobre a evolução da retrete, que foi mais extensa (embora nem sempre muito limpa…) mas que tive de resumir para a direção do jornal não me sanear, levou-me a uma questão que considero muito importante relativamente à nossa condição de seres humanos: Por mais rico ou poderoso que seja, por mais alto que suba ou mais longe que vá, por mais importante que se julgue ou mais arrogante que se mostre, todo o ser humano é colocado no mesmo nível quando sentado numa sanita, seja ela a estrumeira, a retrete, o WC, a casa de banho ou a sala de banho, numa posição de absoluta igualdade, independentemente da maior ou menor “força” que tenha de fazer, pela simples razão de que, QUANDO FAZEMOS, TODOS CHEIRAMOS IGUALMENTE MUITO MAL.

Sem uma única exceção… E será bom que nos lembremos disso, no dia a dia das nossas vidas, sobretudo quando temos a tentação de nos julgarmos superiores, diferentes ou “mais bem cheirosos” que os outros…

Só vemos o que eles querem

Ir à feira de Lousada nos anos cinquenta era entrar num mundo mágico, visto pelos olhos de uma criança. Para além de pequenas guloseimas, ficava encantado com os vendedores da banha da cobra e os propagandistas que começavam por atirar pentes ao povo para atrair a sua atenção, no meio de uma multiplicidade de sons e ruídos, pregões e chamadas pelo freguês.

Entre a multidão de compradores ou simples moçoilas – de cordão de ouro ao pescoço e faces rosadas (das papas quentes que comiam antes de irem para a feira atrair namorado) – eram os jogadores da “vermelhinha” que me despertavam mais curiosidade. Metido entre o círculo de homens à volta do jogador, ficava como que hipnotizado pela sua perícia a manusear as três cartas sobre o guarda chuva aberto e pousado no chão, tentando adivinhar onde estava a das pintas vermelhas. E se nas primeiras jogadas a descoberta era fácil e intuitiva, truque usado para convencer os basbaques de que era fácil ganhar, quando as apostas subiam ao nível pretendido a ilusão era tão bem feita que nunca acertava. Nem eu nem os “patos” que ali eram depenados.

Uma das formas que os ilusionistas usam para praticarem os seus truques é fazerem com que nos concentremos numa mão, como se fosse ali que tudo vai acontecer(focar a atenção), para fazerem o que pretendem com a outra, sem vermos nada. E foi isso que me aconteceu há dias.

Um miúdo chegou junto de mim e colocou-me o seguinte enigma: “Tu conduzes um autocarro, na primeira paragem entram 30 passageiros, na segunda entram 20 e saem 10, na terceira entram 10 e saem 5 e na quarta entram 5 e saem 8. Que idade tem o condutor?” A minha resposta foi tão rápida quanto a velocidade a que fiz as contas de cabeça: “42”, respondi eu. O miúdo deu uma gargalhada de quem apanhou um incauto: “Eu disse, Tu conduzes um autocarro…” Lembrei-me então de ter usado há uns anos atrás este estratagema, colocando a verdade à frente dos olhos para não ser vista. Eis a história.

Era diretor da ACML e tinha de organizar eventos diversos para angariar fundos . Para além das provas de perícia, o António Avelino convenceu-me a realizar também torneios de tiro aos pratos, prestando-se a dar-me apoio técnico e logístico para as provas.

Começamos por organizar um primeiro Torneio no campo de futebol de Lousada, de relativo sucesso financeiro, para a qual ele emprestou uma máquina de lançar pratos. Após o segundo torneio, aconselhou-me a comprar uma nova, tendo em conta que a que emprestara já avariara várias vezes e podia vir a ficar “pendurado” em plena prova.

Então fomos a Vigo, “onde as máquinas eram muito mais baratas” dizia ele. Acabamos por comprar uma por um bom preço no “El Corte Inglês” e regressamos em direção à fronteira depois de um almoço rápido. Colocou-se-nos então um problema: Como conseguir passar na alfândega? É que nessa época o controle fronteiriço era muito apertado e a guarda fiscal revistava tudo, não dando hipóteses de escapar. Paramos cerca de dois quilómetros antes da fronteira de Valença para pensar no que fazer. Sugeri então que a máquina deveria ser desmontada e as peças espalhadas no meio do furgão vazio em que viajamos, bem à vista, misturadas com as poucas ferramentas da viatura. Assim fizemos, mas ele fez questão de esconder a alavanca de armar a máquina debaixo do assento do condutor.

No controle fronteiriço o guarda fiscal mandou-nos sair e como dissemos que não tínhamos nada a declarar, revistou o furgão de ponta a ponta durante uns longos vinte minutos e… apanhou-nos. Foi assim que tive de pagar taxa e multa pela… … alavanca que ele descobrira debaixo do assento. É provável que a alavanca tenha sido importante neste caso pois serviu de “distração” , até porque esta é tida como uma forma elegante de controlar a atenção.

Se no jogador da “vermelhinha” é tudo uma questão de habilidade, onde o importante não é o que olhamos mas sim o que vemos (ou pensamos ver), já no caso da máquina confirmou-se que as pessoas são susceptíveis de cegueira por desatenção, neste caso por bloqueio ou focagem na alavanca debaixo do assento.

Os mágicos dominam perfeitamente a questão da atenção e sabem que o nosso cérebro só pode processar uma coisa de cada vez, por isso usam a cegueira por desatenção, isto é, a incapacidade de notar algo de inesperado quando a atenção está focada noutra coisa. Daí que muitas vezes não vemos algo que está mesmo à nossa frente. E ao pensar nisto, não deixo de me inquietar com a forma como as nossas vidas foram comandadas nas últimas décadas por “mágicos” de boas falas, ora mansas ora inflamadas, que nos distraíram com “palavreado barato e demagógico” enquanto faziam todo o tipo de “habilidades” diante dos nossos olhos, ao ponto de nos limparem a carteira, o emprego, os direitos e, pior… a própria esperança. E ao longo de todos estes anos, só vimos o que eles quiseram que víssemos…

O Pauseiro

Após a Segunda Guerra Mundial, num meio rural como era o de Lousada, os socos e as chancas eram o calçado habitual, sobretudo entre as gentes do campo, à alternativa que era andar descalço.

Era nos Eidos Novos que o meu avô tinha uma indústria artesanal para os produzir e na qual o pauseiro era parte importante. Perto de minha casa, em Macieira, morava e trabalhava o Avelino, pauseiro de profissão, um dos que produzia os “paus”, isto é, as peças (solas) de madeira necessárias ao fabrico dos socos e outros congéneres. Sentava-se num “banco”, uma espécie de tripé com uma tábua relativamente baixa a servir de assento, tendo na parte da frente um apoio firme e próprio para trabalhar a madeira.

Os toros de amieiro eram cortados em rolos e estes partidos em quatro e rebouçados. E era a partir destes “cavacos” que ele, sentado no seu “banco” e de enxó em punho, ia tirando lascas e dando o formato à palmilha onde assentaria o pé, socorrendo-se para isso de um molde. Com o formão fazia o entalhe para a fixação do couro à volta da peça de madeira e a folha de lixa eliminava as pequenas irregularidades que a enxó deixava, por forma a que a superfície da madeira ficasse lisa e com acabamento regular. Quando uma remessa estava pronta ia entrega-la aos Eidos Novos e na volta, trazia a paga do seu trabalho e outros tantos bocados de amieiro para continuar a trabalhar.

Passei muitas horas junto ao seu “banco”, com outros amigos mais velhos do que eu, não só a vê-lo trabalhar num ritmo cadenciado, tipo piloto automático, como a conversar ou a congeminar ação, desde o “cantar as janeiras” ou “cantar os reis” até às malandragens mais diversas.

Foi ali que o meu irmão António tirou uma fotografia ao grupo usando como “máquina fotográfica” uma simples lata de litro de óleo, limpa e pintada a preto. No centro de um dos topos fez um orifício redondo que tapava ou descobria com um bocado de cartolina colado de um lado, na prática um obturador arcaico. Depois, enfiado entre os cobertores da cama (a câmara escura mais à mão) colocou uma película virgem no fundo da lata, com a tampa e o orifício tapado. Reuniu o grupo, apontou-nos a “máquina fotográfica” e “disparou”, subindo e descendo a cartolina. Apesar da imagem ter ficado tremida, ainda guardo essa fotografia.

No tempo das cerejas íamos às Cepas, “acampávamos” em cima das cerejeiras (onde sabiam melhor) até encher a barriga, escondidos entre as folhas para não sermos vistos pelo dono. Não sei como, numa dessas investidas o Avelino caiu do alto da cerejeira, batendo de ramo em ramo até se estatelar no chão, todo amassado.

Jogávamos à bola no caminho de Recemonde e, apesar deles jogarem descalços e eu calçar umas botas grossas com sola de pneu feitas à mão pelo senhor Pereira da Coutada, era eu quem apanhava mais caneladas.

O Miro “Latas”, latoeiro de profissão, trabalhava na casa ao lado e andava sempre a pensar em malandragem. Um dia apareceu com uma cana comprida, furada por dentro. Só descobrimos para que servia tal apetrecho quando, já de noite, nos levou para o monte por detrás da adega da Quinta de Talhos e enfiou a cana através dum postigo, mergulhando-a no lagar que estava cheio. E, à vez, chupamos golfada atrás de golfada, até apanharmos uma “barrigada” de vinho doce…

Nas “visitas” aos meloais eu não ia por ser novo demais. Para os guardar, os donos colocavam uma barraca de madeira com quatro pegas, tipo padiola, onde o guarda ficava à noite. Numa ocasião, enquanto o guarda dormia, conseguiram rodar a barraca colocando a saída virada para uma “presa” de água. A seguir fizeram barulho e esconderam-se. Imagine-se o rapaz a saltar da barraca, cair diretamente na água e ficar como um pintainho, e ir a casa contar ao dono. Claro que era esse o objetivo… No meloal do Souto, com ratoeira a fogo e vigiado por um “criado” armado de caçadeira, a tática foi diferente: À noite, sorrateiramente, colocaram um molho de palha de milho no meio do meloal, amarrado com uma corda para puxarem de longe. Esconderam-se e fizeram ruído suficiente para acordar o desgraçado que, ao sair de arma em punho, com mais medo que coragem, berrou: “Quem anda aí?”. Ninguém lhe respondeu mas foram levantando e baixando o molho que, no escuro da noite, dava a sensação de ser alguém a escolher melões. Apontando a arma ao “ladrão”, perguntou várias vezes “quem está aí?” mas, não tendo resposta, puxou o gatilho e o “ladrão” caiu. E o guarda saiu a correr em direção à casa do Souto a gritar “ai que matei um homem, ai que matei um homem”… Com trabalho diário e “malandragem” ocasional, o Avelino viu morrer a profissão após a chegada da indústria de calçado, acabando por arrumar o “banco de pauseiro” e procurar outro ganha pão.

Assim acabou uma etapa desta minha viagem e não posso deixar de recordar e agradecer ao Avelino, que já partiu para a Terra onde não são precisos socos nem pauseiros, o companheirismo, a amizade e os ensinamentos que me deu, “calçado” necessário para me ajudar a vencer o “piso acidentado” do meu caminho.

“Chico-esperto” ou “Tanso”?

Li algures que uma mãe se interrogava se devia ensinar o seu filho a ser “Chico-esperto” ou, pelo contrário, se o devia instruir para que fosse “Tanso”. Eis uma boa questão.

O “Chico-esperto” é uma figura típica da nossa sociedade (e não só), que pode não ser inteligente, mas é esperto ou, mais que isso, é “chico-esperto”. É o indivíduo que procura tirar vantagem ou benefício, mesmo que para isso tenha de prejudicar alguém. Está convencido que é muito inteligente ao fazer determinado tipo de coisas, porque os outros são suficientemente “burros” para o não fazerem, não se apercebendo sequer que os outros o não fazem, não porque o não saibam fazer mas porque consideram que é errado.

Sobrevaloriza a sua esperteza e subestima a inteligência dos outros embora muitas vezes tenha a noção de que aquilo que faz é incorreto mas, como pensa com o umbigo, acha que o mundo é das pessoas como ele.

Há dias estava numa longa fila de uma repartição pública, a apanhar uma grande “seca”, quando entrou um personagem bem vestido que se dirigiu a uma senhora bem lá para a frente da fila. Meteu conversa “fiada” e ficou ali colado, acompanhando a senhora à medida que a fila avançava, talvez pensando que ninguém o via a penetrar, até ela ser atendida, posicionando-se de imediato para ser o seguinte, enquanto todos aqueles “tansos” continuavam à espera. Quando ia ocupar a cadeira para ser atendido um “não tanso”, com educação e firmeza, recambiou-o para o seu lugar no final da fila.

Existe muito “chico-esperto” espalhado pelos diversos sectores da sociedade e por todas as classes sociais. O mais vulgar é aquele que encontramos nas filas de trânsito, embora qualquer fila seja local próprio para eles se revelarem. Não gosta de esperar, tem uma espécie de fobia obsessiva de passar à frente dos outros de qualquer maneira, aproveitando uma distração de quem vai à frente, um pequeno intervalo entre duas viaturas mais adiante, a faixa da direita reservada a emergências, até aparecer um “tanso” armado em bom samaritano que o deixa entrar na fila.

Há dias fui ao Porto e na entrada da cidade o trânsito estava complicado, em filas compactas. Já perto da minha saída um “chico-esperto” meteu-se pela direita mas quando chegou perto de mim, “distraidamente” encostei-me também para a direita mantendo-me na fila mas não dando espaço para ele passar.

Não sou “chico-esperto” mas também não gosto de ser “tanso”. Para resolver este problema já alguém sugeriu que deviam existir filas próprias para os “tansos”, onde podem vingar os “chico-espertos”, e outras para os “não tansos”, onde todos se respeitam e não deixam vingar os ditos cujos.

Mas para além do trânsito eles aparecem em todo o tipo de filas, sejam públicas ou privadas e onde só o regime das senhas veio dar um golpe nos seus golpes. Nisto de filas, veja-se o caso do ex-ministro Vara que parece que não aprendeu nada nos corredores do poder (ou se calhar aprendeu demais…), quando no seu Centro de Saúde ultrapassou todos os utentes dirigindo-se diretamente ao médico para lhe passar um atestado. Já nada nos deve surpreender nestes “penetras” profissionais que subiram vertiginosamente as escadas do poder à custa de uma inteligência saloia que inunda o mundo dos políticos.

Portugal é um país de “chico-espertos”, com cultura alpinista barata, onde alcançar metas ou subir degraus, profissionais ou políticos, é mais obra de expedientes e atalhos ilegais do que de aprendizagem, de trabalho e esforço. Parece que o seu prazer é esse mesmo, o gozo de conseguir enganar os outros, fazer deles parvos e que não conseguem desenrascar-se, seja na fila, na carreira e até na fuga às responsabilidades, no desrespeito pelas regras e normas sociais.

E tudo isto para relatar uma cena deliciosa num balcão de um aeroporto no Brasil, uma lição de como lidar com um “chico-esperto”: A assistente do balcão estava a atender os clientes de uma grande fila quando um suposto cavalheiro, engravatado e com pasta de executivo, passou ao lado dessa fila, dirigindo-se-lhe diretamente para ser atendido. Com delicadeza e educação ela diz-lhe: “Desculpe, mas tem de ir para a fila”. “Sabe quem eu sou? A senhora sabe quem eu sou?” questiona-a ele com arrogância e alguma agressividade. Com tranquilidade, a assistente liga a aparelhagem de som e fala para o microfone: “Atenção por favor, encontra-se neste balcão um cavalheiro que não sabe quem é. Se alguém o conhecer, agradecemos o favor de o vir identificar ao balcão 34”. Ao ouvir isto o suposto cavalheiro corou de raiva e diz-lhe: “Espera minha p… … que eu vou-te f… …” Com a mesma tranquilidade a assistente responde-lhe: “Por favor, para isso também tem de ir para a fila, porque há muita gente à sua frente”.

É por isso que aconselharia aquela mãe a ensinar o filho a ser um “NÂO TANSO”.