Monthly Archives: April 2024

A nova “Protagonista” cá de casa …

Com a cadela deitada ao meu lado, estava sentado no sofá da sala e a ser massacrado pelas notícias deprimentes do telejornal. Noutro sofá à minha frente, com o olhar fixado na Becas e inspirada pela postura de tranquilidade dela, a minha mãe comentou: “O cão é o melhor amigo do homem, mas nem sempre o homem é o melhor amigo do cão. Há cães que têm sorte e são bem tratados pelo dono, mas há quem trate os cães a pontapé e, mesmo assim, os cães continuam a ser-lhe fiéis. Nunca vi um cão a morder o dono, mas já vi donos a fazer aos cães pior do que se os tivessem mordido”. Mais uma vez, em um momento de maior estabilidade emocional e lucidez, do alto dos seus 101 anos de idade completados há poucos dias, ela transmitiu-me alguma da sabedoria acumulada, conseguindo até surpreender-me. Se a “memória de curto prazo” a atraiçoa – diria que “o gravador deixou de gravar” – a memória do passado continua bem viva.

Ainda ontem, depois de alguém contar que uma determinada mulher nossa conhecida, apesar de casada há pouco tempo, deixara o marido, ela comentou: “Antes, havia mulheres que eram muito maltratadas pelos “homens” e nalguns casos levavam muita pancada. Mas aguentavam o “homem” porque “parecia mal sair de casa”. Agora está muito melhor pois quando não se dão bem, cada um segue o seu caminho. Mas hoje, muitas vezes também abusam e casam e descasam tão depressa que até parece que só o fazem pela festa, pelas prendas de casamento e para “fazer raiva às amigas”. E julgava eu que ela não era tão observadora …

Sem grande esforço de memória, relembra algumas das conversas com o sogro, o meu avô paterno, e dos seus relatos dramáticos sobre a sua participação na Primeira Guerra Mundial. Confirmou o que eu já sabia de que ele acabaria por morrer vítima dos “gases” a que tinha estado sujeito no campo de batalha, pois a partir de certa altura um dos grandes sofrimentos dos soldados nas trincheiras foi a guerra química, com o uso dos “gases” (cloro, fosgênio e mais tarde o “gás mostarda”), “gases” esses que provocavam vómitos, queimaduras e a morte. Como nota curiosa, disse-me que o meu avô, que mais tarde se dedicaria ao comércio, até na guerra fez negócios, pois comprava cigarros num determinado local e depois vendia-os aos camaradas de luta nas trincheiras.

Embora num ou outro momento de maior cansaço a memória a traia e lhe crie alguma confusão, em geral consegue recordar factos de há 90 anos e mais, com toda a clareza. Ao relembrar a infância contou que então, quase só os “fidalgos” sabiam ler e escrever. Por isso, o seu pai, como era filho de lavradores (caseiros), em situação normal não frequentaria a escola. No entanto, por ser “manquinho”, a mãe mandou-o para a escola da Vila, a única que havia, onde fez a quarta classe enquanto ia aprendendo a arte de “tamanqueiro”. Já as raparigas por norma não iam para a escola, pois “não precisavam de aprender a ler nem a escrever” (só se fosse para escrever cartas ao namoro?), porque estavam destinadas a ter filhos e fazer o serviço de casa. No entanto, a sua mãe, apesar de não saber ler nem escrever, achava que todos os seus filhos deveriam aprender, fossem rapazes ou raparigas, porque ao longo da vida poderia ser muito importante. E foi assim que, não havendo uma escola na freguesia de Pias onde moravam, andou com as irmãs a aprender a ler, escrever, bordar, fazer renda e outras artes na D. Virinha, uma senhora que morada na Vila, estudara no colégio de Bairros e, como o pai morrera de repente, teve de “fazer-se à vida” para se sustentar a si e à mãe, passando a tomar conta de crianças. Diz ela: “Agora que toda a gente pode estudar até onde quiser ir, há muitos que não aproveitam essa oportunidade que nós nunca tivemos”.                                                       No último mês temos passado bastante mais tempo juntos do que é habitual e dou comigo a observá-la de perto seja quando está de olhos fixos na televisão a ver o telejornal que não gosta de perder, seja a caminhar à minha frente – e temos andado uns bons bocados – seja a comer com apetite qualquer comida tradicional – e ninguém a convence a comer algo que nunca tenha comido. E admiro-me como é que mantém firmes as convicções, a disponibilidade para sair e ir a pé ou de carro e o gosto por tudo o que é doce porque “o doce nunca amargou”. Como a sua perda de audição está mais adiantada que a minha e já “encostou” os aparelhos auditivos há muito tempo, coisa que eu copiei, para me fazer ouvir melhor coloco-me de frente para os lábios ajudarem a entender o que digo. 

Devo confessar que tenho razões para estar preocupado, porque ela “retirou-me todo o protagonismo” que eu julgava ter. Eu que ia aqui ou ali e as pessoas me cumprimentavam e davam atenção, quando andamos juntos, esquecem-me, quase me ignoram e a atenção é toda voltada para ela: “Vejam lá como é que esta senhora com 101 anos anda tão direitinha”! “Posso tirar uma fotografia consigo”? “Vai ter de me dizer o que é que come para chegar a essa idade”. E quando ela responde que come muito carne de porco, às vezes vem a pergunta de espanto, como se fosse uma coisa de outro mundo: “Come carne de porco”? E repetem: “Carne de porco”? Muito simpaticamente, concentram nela as atenções fazendo muitas perguntas a que ela vai respondendo, quando não se refugia numa afirmação: “Já não vou há muito tempo ao médico, não me doi nada e não me queixo de nada”. Passou a ser a “protagonista cá de casa”!

Claro que não me preocupa a questão do protagonismo e atenção que lhe dedicam (merecidamente) e, pelo contrário, sinto muito orgulho em continuar a tê-la na minha vida. A grande preocupação que tenho neste momento é que, no seu entardecer, consiga cuidar dela como ela cuidou de mim …

O rio Sousa está à venda?

É verdade, pelo que vi com “estes olhos que a terra há-de comer”, o rio Sousa deve estar a ser vendido aos bocados, com água, peixes, amieiros e lixo. Como é que eu não soube? Logo eu, que até estou interessado num bocado. Já falei com um “amigo” para me arranjar o Amial, entre o açude de Moinhos e o “fojo do sr. Mário”. Mais para cima já não me interessa, nem me diz nada, porque são campos onde só lá ia para “arrear o calhau” no meio do milho… Ora, esse “amigo” está muito “bem colocado” e é homem para fazer uma boa negociata pela “porta do cavalo”. Como se sabe, é sempre mais rápido e barato…

Como é que o Estado pode vender um pedaço de rio? Ai isso não sei, nem me interessa. Quero é ser dono daquele trecho de rio e usufruir dele sozinho. Também tenho a minha vaidade e um prazer danado de provocar inveja a uns “armantes” que costumam picar-me com as suas compras faustosas. E não me admiro nada que o Estado venda, até porque está a vender tudo o que pode (e que dá dinheiro) para “abater ao prejuízo”, que é como quem diz, à dívida, esse monstro que não tem princípio, muito menos fim à vista, apesar do anterior governo dizer que a diminuiu, mas só foi manobra contabilística … 

Já há uns anitos que andava com esta ideia “ferrada” na cabeça, mas nunca me atrevi a falar a quem quer que fosse, pois tinha medo de ser gozado. “Comprar um pedaço de rio? Essa não lembra ao diabo” seria a resposta mais esperada. Mas ontem acabei por desabafar com o tal amigo e, quando esperava uma resposta do gênero, fui surpreendido com uma pergunta: “E em que parte do rio Sousa estás interessado”? “Estás a brincar”, perguntei eu? “Não, nada disso. Não és o primeiro e já há partes ocupadas”. “Não acredito”, disse eu. “Então vem comigo e verás”, retorquiu. E lá fui eu no seu “Jeep todo terreno”, qual S. Tomé à espera de “ver para crer”.

Começou por mostrar um troço de rio ocupado em S. Fins do Torno e depois desceu e parou junto de uma ponte, em Cernadelo, para ver mais uma zona totalmente vedada. “Como vês aqui, este novo “dono” já tomou posse, vedou e está a usufruir por completo do seu pedaço”.

A seguir levou-me à ponte da Amieira, entre Macieira e Vilar, onde vi o melhor com que podia sonhar: Uma quinta com terreno dos dois lados do rio, rodeada com muros e grandes portões de ferro, onde nem sequer os cães entram para mijar, muito menos o povo. Há um muro sobre o rio com gradeamento de proteção, uma área com total exclusividade, sem a intromissão dessa praga de “intrometidos” ditos pescadores, que só querem ir às uvas e aos melões. “E o que é aquilo ali, mesmo em cima do muro do rio”? – Ah, aquela construção junto ao rio? É uma vacaria para muito gado”, disse ele. E fiquei a ver uma enorme barreira de betão (talvez para os peixes praticarem o salto em altura), construída ao longo do rio sem qualquer afastamento deste e numa zona que, em termos de PDM, é “reserva ecológica” e o mesmo é dizer que é “proibido qualquer tipo de construção”. Como foi possível construir uma coisa assim e logo em cima do rio?

E continuou rio abaixo até parar em Pias, junto dos moinhos. Lá estava mais uma parcela de rio fechada de um dos lados, com acesso exclusivo ao dono do terreno. “Chega, não quero ver mais”, disse eu. “se calhar, daqui até à Foz, há bocados de rio que já desapareceram, vendidos aos bocados a turistas como recordação ou despachados lá para fora nesta febre de exportações” …

“Estás a ver como é possível ter um bocado do rio?” – “Desculpa-me mas, eles compraram-no” perguntei eu? “E que te interessa isso? Não vedaram o terreno e o acesso ao rio? Não são eles que estão na sua posse? Alguém entra lá? Que importa a escritura? Queres ou não queres um pedaço só para ti? Mas também te posso mostrar um outro que até foi coberto. Neste país, tudo é possível …”

Pensando bem, até aceito que o dono daquela quinta tenha vedado tudo e considere o rio seu porque, quando o rio passou … a terra já lá estava. Ora, se ele é dono da terra, é natural que também seja dono do rio que se meteu lá, com “tudo incluído” (como nas férias). Para não ser assim, o rio devia ter “andado” à volta da propriedade!

Até me deste uma ideia. Devo tomar posse de um bocado de estrada que passa entre dois terrenos meus? Se calhar devo fechá-la, não?” perguntei eu.

“Estás a ver? Já vi que percebeste como tudo isto funciona!!!”

Ora, a verdade é que eu não percebi nada. Ou pior: com muita tristeza apercebi-me de mais algumas coisas que não abonam nada a favor do estado de direito onde pensamos e até dizemos que vivemos. E que é uma miragem. Dizemos estar num estado de direito, mas cada um faz o que quer e lhe apetece, com total impunidade, sem que quem tem a obrigação de defender o que a todos pertence, o faça. Perante a lei, dizem-nos que “somos todos iguais”. Mas a realidade é que “somos todos iguais, mas há alguns que são mais iguais do que os outros”. 

É caso para perguntar, como é possível vedar-se o acesso a um curso de água natural quando a lei diz o contrário? Como é possível fazer-se um estábulo em cima da margem de um rio, em zona onde é proibido construir o que quer que seja? Quem licencia ou “fecha os olhos”? Sei que todos dizem: “Não é da nossa responsabilidade”. Mas então quem é responsável e finge que não o é? Por amor de Deus, há muros que parecem muralhas! E ninguém os vê? Quem os licenciou? Se não têm licença, quem os embarga? E os muros em cima do rio. Ninguém os impede? E os direitos de livre circulação junto ao rio que são devidos a todos nós enquanto cidadãos deste país? Quem os e nos defende?

Aquela muralha de betão em cima do rio é uma grande construção, o que se diz ser uma “VACARIA”, provavelmente com um acordo: Os peixes podem “mamar” nas vacas à vontade, enquanto elas se estão, literalmente, “a cagar” para os peixes, direta e livremente no rio, tendo eles de aguentar a poluição e o mau cheiro, senão a morte. E é assim que morrem os rios, património indispensável à nossa vida e sobrevivência. O que se segue?

Não, apesar de ter boas recordações do Amial, não estou interessado em comprar aquele bocado de rio, porque é pertença de todos nós. E como o rio Sousa me diz muito, tenho o direito à indignação e o dever de clamar contra estas violações da lei, estes atropelos aos direitos de todos, deixando um alerta que importa ter em conta: Se as entidades e autoridades que têm a responsabilidade e obrigação de zelar pelo cumprimento da lei se demitem dos seus deveres (e não me importa porquê), apesar de sustentadas pelo nosso dinheiro, cabe-nos a nós mover uma ação popular a quem de direito para defender o que a todos pertence. Ou amanhã não teremos moral para nos queixarmos de que alguém se veio a apoderar indevidamente do ar que pertence a todos nós e que nos obrigue a pagar se quisermos respirar, o que até já nem parece ser uma “miragem” …

Investir, com o dinheiro dos outros …

O gostar e ter algum jeito para as cadeiras de desenho e topografia serviu não só para me facilitar a tarefa de concluir o meu curso, como para ganhar alguma “massa” com os colegas mais endinheirados e de mesada mais “abonada”, melhorando a minha que, por sinal, era bem pequena. Foi essa a razão por que fiz os trabalhos práticos das duas cadeiras a mais de meia turma… Talvez por essa “prática” excessiva me ter proporcionado algum traquejo no desenho de construção civil e sem nunca ter percebido bem como é que isso transpirou para o conhecimento de alguns conterrâneos, acabei por ser solicitado por alguns deles para lhes fazer os projetos de construção que a Câmara Municipal passara a exigir no licenciamento das obras de construção, embora os processos fossem muitíssimo simples se comparados com tudo o que hoje se exige. Foi assim que dei comigo a desenhar casas em papel vegetal, a lápis e com régua e esquadro, depois passadas a tinta nanquim com um estojo de desenho manual, a troco de nada, pois fiz questão de fazer disso um serviço à comunidade rural em que estava inserido. 

Desse tempo tenho gratas recordações de muito boa gente sobretudo pela sua simplicidade e humildade. A maioria não tinha meios para construir a casa, sendo que às vezes um ou outro conseguia amealhar algum para fazer o rés do chão onde se abrigavam e o resto logo se veria. Muitos iam levantando a casa no sistema de autoconstrução, quase sempre ao fim de semana com a ajuda de familiares e amigos, alguns deles em troca de favores: “Hoje ajudo-te a ti e amanhã serás tu a ajudar-me a mim”. E, nesse sistema, só era preciso ter dinheiro para os materiais porque a mão de obra era “da casa”. O contributo que dei a uns quantos foi o projeto para “meter na Câmara”. 

Mas a memória e respeito que tenho dessa gente que se sacrificou imenso para ter uma casa, por mais humilde que fosse, perdura intacta e viva, embora muitos dos seus descendentes, que deviam ser os primeiros a sentir orgulho neles, ignoram, desvalorizam, quando não menosprezam o resultado do seu sacrifício.

Uma das recordações mais interessantes que guardei como uma lição de vida diz respeito a um homem de Caíde que um dia, sem eu saber como, apareceu em casa dos meus pais à minha procura. De aspeto muito humilde, pediu-me “se lhe podia fazer o projeto de uma casa de habitação”. E, ao contrário do habitual, ele sabia o que queria e até já adiantara serviço: “Quero uma casa de dez metros por oito e já tenho contrato com um pedreiro lá da terra para a fazer por oito contos” – nessa altura o pedreiro era o construtor civil e bastava dizer-lhe quais as dimensões pretendidas para a casa e nada mais. Não havia caderno de encargos nem escolha de materiais pois eram sempre os mesmos: Paredes em granito, pavimento do rés do chão em terra, para loja, andar com soalho de pinho sobre armação de eucalipto, divisórias em tabique e cobertura em telha Marselha sobre armação de eucalipto. Não havia casa de banho. Como aquele valor nessa época já não era para qualquer um, perguntei-lhe: “E você tem os oito contos para fazer a casa”? Ele respondeu logo: “Não, só tenho três contos, mas tenho uma vizinha que me empresta os outros cinco”. Fiz o desenho de graça como era habitual e entreguei-lho uma semana depois. Só o voltei a ver passados três ou quatro anos quando me apareceu novamente à porta. E, para minha surpresa, voltou a pedir-me para lhe fazer outro projeto de uma habitação. Dessa vez teria duas diferenças: o tamanho e o preço acordado com o pedreiro. “Quero que me faça o projeto de uma casa com doze metros por dez pois já a contratei com o pedreiro por doze contos”. Na minha cabeça os doze contos eram uma pequena fortuna e estranhei que aquela pessoa, aparentemente humilde, que já investira oito contos há três ou quatro anos numa casa, pudesse aventurar-se a construir outra e logo com um orçamento mais alto. E repeti a pergunta que lhe fizera quando ele me apareceu pela primeiro vez: “E o senhor tem os doze contos?” “Quem me dera. Não, não tenho. Só tenho quatro contos, mas a minha vizinha vai-me emprestar oito”, respondeu ele com um breve sorriso. 

Fiquei intrigado e não resisti: “A sua vizinha deve ser muito rica para lhe emprestar a maior parte do dinheiro que precisa para fazer as suas casas!!!…” Mas ele, sorrindo novamente, concluiu: “Não, não é. Tem algum e anda a ver se consegue juntar o suficiente para construir uma casa, porque só avança para a construção quando tiver o dinheiro todo. Assim, enquanto isso não acontecer, eu vou trabalhando e fazendo as minhas casas com o dinheiro dela”. Mas eu ainda não estava satisfeito e quis saber como é que ele ia amealhando dinheiro para pagar os juros e ainda amortizar a dívida à vizinha até à sua liquidação. Ele encostou-se à parede e falou num tom solene: “Quando juntei um bocadinho de dinheiro, decidi construir a minha casa de habitação. Como sabe, não tinha o suficiente, mas a minha vizinha emprestou-me cinco contos e eu comprometi-me comigo mesmo de que tinha de fazer tudo o que fosse preciso para cumprir com ela. Por isso, envolvi a família nesse objetivo e cortamos com todos os consumos desnecessários, poupando em tudo o que era possível. Nunca falhei com um único pagamento e saldei a dívida ainda antes do prazo previsto. Percebi que, quando temos dinheiro disponível, tendemos a gastar mais do que o necessário, a comprar o que não precisamos e até a desperdiçar. E, enquanto ela espera juntar dinheiro suficiente para pagar a casa, eu construí a minha e vou fazer outra, usando as suas economias. Parece absurdo, mas é a realidade. Só implica sacrifício e responsabilidade. Porém, é coisa que nem toda a gente está disposta a fazer” …  

Literalmente, foi uma viagem de …

Diz um proverbio árabe que “quem vive, vê muito, mas quem viaja, vê mais”. É que o mundo é um livro e aquele que não viaja lê sempre a mesma página. Dou graças a Deus por me ter dado a possibilidade de viajar bastante, de conhecer muitas outras gentes, culturas diferentes e correr o mundo, em trabalho, lazer, estudo e até em serviço militar. E aproveitei a maior parte das oportunidades que tive. Fiz viagens quase sempre acompanhado e aquelas de que guardo as recordações maiores são as que fiz em família, sem roteiro de viagem, um pouco ao ritmo dos dias e da disposição do momento, sem ter a pressão do cumprimento de horários, de seguir aquele trajeto custe o custar ou de ter de chegar onde quer que seja. Nas viagens programadas não há surpresas, somos meros peões ao ritmo do relógio, onde parece que tudo é mecanizado, sem desvios, sem novidades, como carneiros a seguir o pastor.

Viajar é partir à descoberta de novas paisagens, novos costumes, novas gentes, novas culturas e até a oportunidade para descobrir que muitas vezes estamos errados naquilo que pensamos sobre outros países e outros povos. A realidade é o que é e não a que imaginamos. Para além disso, viajar é colecionar histórias, sorrisos, fotografias e carimbos. Antigamente, os viajantes exibiam com alguma vaidade os autocolantes colados nas malas de viagem. Hoje, sãos os carimbos nos passaportes. 

Houve viagens em que me assombrei com cada quilómetro que viajei, com cada refeição que comi, com cada pessoa que conheci e cada local que visitei e, embora pareça um lugar-comum, houve momentos em que a realidade ultrapassou a minha imaginação. Mas lembramos quase sempre os momentos insólitos como o atravessar num Land Rover uma ponte em Angola feita com troncos de árvores soltos e ao chegar à outra margem ver a ponte ruir atrás de nós. Ou ter de viajar no cockpit do avião a caminho da Madeira ao lado e por convite do comandante, por ser o último passageiro a entrar no avião e não ter lugar. Ou numa caçada em África ver uma palanca atingida a tiro desferir um coice nos dentes do caçador como que por vingança quando ele se colocou por trás. Ou pior, ficar enterrado na lama e paralisado de medo ao ver uma manada de elefantes correr na nossa direção e desviar-se a tempo por um tiro disparado ao acaso. Estes e outros momentos, mais do que as paisagens, ficaram gravados na minha memória tanto mais quanto mais original foi o insólito.

Por diversas razões, nos últimos anos quase não tenho viajado apesar do prazer que isso normalmente me dá e só recentemente aceitei o empurrão que os meus filhos me deram para os acompanhar numa viagem ao Médio Oriente, num misto de lazer e trabalho. E, quando me perguntam como correu, normalmente confesso a verdade: Foi, literalmente, uma viagem de … trampa (para não dizer aquele palavrão). E explico porquê: Voamos do Porto para Lisboa e, ainda não tinha aterrado, senti umas cólicas ligeiras. Já no aeroporto, fui à casa de banho e confrontei-me com um certo incómodo: Diarreia. Pouco depois voamos para o Dubai, sem problemas, mas mal aterramos, não perdi tempo e corri para a primeira casa de banho que encontrei. A diarreia vinha acompanhada de cólicas. Apanhamos o táxi para o hotel e, enquanto o meu filho fazia o check in, eu voltei a procurar a sanita mais próxima para não chegar atrasdo. As cólicas e a diarreia eram piores. Permaneci no Dubai durante quatro dias e, apesar de tomar medicamentos como o “imodium” e “ultralevur”, só retardavam um pouco a chegada das cólicas e a visita à casa de banho mais próxima. Fosse para onde fosse, tinha de “estudar o terreno” e estar de olho na “saída de emergência” mais à mão. Tivemos no hall de entrada do hotel e por precaução, mal pressentia o princípio de uma cólica, caminhava para o elevador e subia ao quarto “em passo travado” e de nádegas apertadas, para evitar que a coisa rebentasse antes de descer as calças e sentar-me na sanita. Mas, apesar do “passo travado” e “apertos”, por duas vezes não consegui chegar a tempo de fazer a descarga onde deveria ser feita. Mas é a vida e foi mais um insólito para recordar nas memórias de viagens. Porém tenho de reconhecer que durante os 4 dias que passei no Dubai, conheci muitas, mas mesmo muitas e tão variadas … sanitas. Só não tive oportunidade, tempo, nem disposição para apreciar o design de cada modelo e a sua eficiência. No final do quarto dia voei para Mascat, capital de Omã e no dia seguinte obrigaram-me a ir ao Hospital Internacional de Omã, curiosamente gerido por uma empresa portuguesa de Coimbra, onde me puseram a antibiótico e soro, por desidratação, tendo por lá ficado durante dois dias. Foi ou não foi, literalmente, uma viagem de … ? 

Sejamos francos, viajar é ter histórias para contar e não coisas para mostrar, histórias de deslumbramento ou calças na mão, vivências marcantes, natureza selvagem, virgem e paisagens deslumbrantes. O gostoso não é a chegada ao destino, mas a viagem e os momentos desde a partida à chegada. E nada há como viajar para desenvolver a inteligência, evoluir, aprender e viver.  

O Dalai Lama diz-nos: “Uma vez por ano, vá a um lugar onde você nunca esteve antes”. Porque ver o mundo, é mais fantástico do que qualquer sonho. E está provado que viajar não é uma despesa, mas sim um investimento, porque é a única coisa que nós compramos e nos torna mais ricos. Muitas vezes deixa-nos sem palavras, mas é isso que nos torna contadores de histórias, ainda que sejam de calças na mão e “padaria” colada na sanita, como esta que foi, literalmente, uma viagem de …