Monthly Archives: August 2022

A longínqua recordação do “carvoeiro”

A melhor forma de aprendermos a fazer uma coisa é fazendo, muito mais do que vendo fazer e, mais ainda do que lendo ou ouvindo dizer como se faz. E só quem passa pela situação de ter de fazer isto ou aquilo é capaz de valorizar o resultado desse trabalho seja ele qual for. Já Camões dizia “mais vale experimentá-lo que julgá-lo”. E se juntarmos a tudo isso o facto do produto obtido ser conseguido à custa de um grande esforço físico por não existirem máquinas como nos dias de hoje, mais difícil se torna avaliar o trabalho e sacrifício que está por detrás de algo a que tantas vezes nem damos valor. Foi a pensar nisso que me vieram à memória experiências de infância e que continuam bem nítidas no meu baú das recordações.   

Com nove ou dez anos de idade não fazia ideia de como era feito o carvão vegetal e vim a descobri-lo da melhor maneira. Um dia fui à “serra” – nome que dávamos às matas localizadas nas encostas a caminho de Barrosas – levado pela curiosidade de acompanhar um tio que por lá andava a cortar “madeira de pinho” para si próprio. À época, todas as matas da região eram povoadas de pinheiros e alguns carvalhos e, como ele precisava de madeira para a construção de uma casa, andava a cortar pinheiros para fazer as tábuas de soalho e forro, além das ripas que eram usadas na construção do “tabique” com que eram feitas as divisórias no interior da casa. Os pinheiros a cortar tinham sido marcados pois só se cortavam os grandes e grossos, os que eram precisos dois homens ou mais para abraçá-los. Tal escolha tinha uma razão de ser: essas árvores tinham muito “cerne”, aquela zona central mais dura e acastanhada, garantia de durabilidade já que, no dizer do meu tio “o caruncho não lhe pegava”.  Além do abate das árvores, feito à força do machado e dum “serrão” puxado por um homem de cada lado, era lá na mata que os pinheiros eram cortados em toros e serrados em tábuas ou vigas. 

Para serrar o toro era preciso colocá-lo numa posição inclinada, com uma das pontas apoiada no chão e a outra levantada a cerca de dois metros de altura e apoiada num tripé improvisado de madeira, tudo feito à força de braços pois não existia qualquer meio mecânico para o fazer. E estamos a falar de troncos grossos e muito pesados. Com o toro assim posicionado, parecendo um canhão apontado ao longe, um homem subia pelo tronco até ao ponto mais alto em equilíbrio muito precário e o outro colocava-se por debaixo numa posição difícil. Ora, assim colocados, cada um deles agarrava com as duas mãos um dos lados de uma grande serra presa numa armação de madeira e tensa com cordas e, só por si, era um espetáculo de equilíbrio, segurança, força e precisão ver os dois homens puxar a serra para cima e para baixo, serrando o toro lenta e continuamente, num automatismo mecânico e dele fazendo “nascer” lentamente tábuas de soalho ou vigas.

Mas dessa visita à “serra” o que mais retive na memória foi a figura de um homem que seguia atrás dos lenhadores. Era o “carvoeiro”. A sua matéria-prima era a madeira dos ramos, mais ou menos grossos e da “carucha” do pinheiro, depois de limpar os ramos finos e folhas, como subproduto já que os toros eram sempre usados para fabricar tábuas e vigas. Cortados com cerca de um metro de comprimento, os pedaços de madeira eram empilhados de um e de outro lado de um grande buraco retangular com alguns metros de comprimento e cerca de três de largura que o carvoeiro escavava na própria mata, formando duas pilhas homogéneas com uma altura de dois metros ou mais e com um “corredor” estreito no meio. Depois, cobria tudo com ramos, tanto a madeira como o “corredor”, e sobre estes colocava terra por forma a que ficasse totalmente isolado e transformado num enorme forno. Ficava somente uma entrada para incendiar a madeira e no ponto mais alto um buraco que servia de “chaminé” por cima do “corredor”. Já com a madeira enterrada, o “carvoeiro” pegava fogo à pilha de lenha, tapava a entrada e regulava a ventilação na “chaminé”, fazendo com que a madeira ficasse a arder lentamente durante cerca de duas semanas, tempo necessário para a transformar em excelente carvão vegetal, num processo de combustão prolongada. Dias depois já ele andava pelas portas da aldeia a vender carvão. Entusiasmado pela aventura, acabei por ir várias vezes à “serra” enquanto o meu tio teve de andar por lá.

Hoje, desde o corte das árvores à serragem em tábuas ou vigas, todo o processo é mecânico sem grande intervenção da força humana, ao contrário desse tempo. Além disso, tendo desaparecido essa figura que era o carvoeiro, a maioria de nós nem sabe como nem onde é feito esse carvão vegetal que compramos no supermercado e vamos queimando quando queremos fazer uma sardinhada ou churrasco, se bem que deve haver quem pense que o carvão vegetal existe por aí, sobretudo depois dos muitos incêndios que têm assolado as matas de Portugal. Mas aí, só sobram cinzas, sofrimento e perdas avultadas de bens. 

Hoje continua a existir a figura do “carvoeiro” nalgumas regiões deste país, embora com fornos de queima modernos e permanentes, além de toda a maquinaria conveniente para facilitar o trabalho, coisa que não existia antigamente, apesar de que muito do carvão vendido em Portugal provenha de outros países onde o preço de fabrico é mais barato. E percebe-se o porquê pois, se virmos bem, em quase tudo que compramos o que verdadeiramente importa é o preço … mais barato. Não é disso que todos andamos sempre à procura? 

Afinal, o que precisamos de mudar?

Há textos que devíamos ler, reler e gravar na nossa mente para nos servir de linha orientadora e conduta das nossas vidas e fazer com que deixemos de criticar tanto exigindo mudanças nos outros quando devíamos começar por mudarmos nós próprios. É o caso da reflexão que Eduardo Prado Coelho teve a lucidez de nos deixar pouco antes de falecer em 2007 e diz respeito a todos nós, portugueses, e tendo como título “Precisa-se de matéria-prima para construir um país”. Nessa crónica ele dizia que a crença geral no país era de que Cavaco não serviu, tal como Durão Barroso, Santana Lopes e Guterres, além da farsa que foi Sócrates. Se fosse vivo, diria também que não serviu Passos Coelho como não serve atualmente António Costa. Por isso, ele começou a suspeitar muito bem que o problema podia não estar só nessa gente, mas estar em nós, enquanto povo. Nós, como matéria-prima de um país, que exigimos uma coisa, mas praticamos outra. E fartamo-nos de dizer mal da sua falta de transparência e compadrio, do desgoverno e rotura de serviços, mas somos os primeiros a fazer o mesmo porque, lá bem no fundo, somos um povo de Chico-Espertos.

“Porque pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito pelos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO OS DEMAIS ONDE ESTÃO. 

Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos … e para eles mesmos.

Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito, onde os diretores de empresas não valorizam o capital humano, onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e, depois, reclamam do governo por não limpar os esgotos. 

Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é “muito chato ter que ler”) e não há consciência nem memória política, histórica nem económica.

Onde os nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projetos de leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar alguns.

Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser “compradas”, sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não lhe dar o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes.

Quanto mais analiso os defeitos de Santana Lopes e de Sócrates, melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem corrompi um guarda de trânsito para não ser multado.

Quanto mais digo o quanto o Cavaco é culpado, melhor sou eu como português, apesar de que ainda hoje pela manhã explorei um cliente que confiava em mim, o que me ajudou a pagar algumas dívidas.

Não. Não. Não. Já basta.

Como “matéria-prima” de um país, temos muitas coisas boas, mas falta muito para sermos os homens e mulheres que o nosso país precisa. Esses defeitos, essa “CHICO-ESPERTICE PORTUGUESA” congénita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até se converter em casos escandalosos na política, essa falta de qualidade humana, mais do que Santana, Guterres, Cavaco ou Sócrates, é que é real e honestamente má, porque todos eles são portugueses como nós, ELEITOS POR NÓS. Nascidos aqui, não noutra parte …

Fico triste. Porque, ainda que Sócrates se fosse embora hoje, o próximo que o suceder terá de continuar a trabalhar com a mesma matéria-prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada … Não tenho nenhuma garantia de que alguém possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, nunca ninguém servirá. Nem serviu Santana, nem serviu Cavaco, nem serve Sócrates e nem servirá o que vier a seguir.

Qual a alternativa? Precisamos de mais um ditador que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa “outra coisa” não comece a surgir debaixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados … igualmente abusados!

É muito bom ser português. Mas quando essa portugalidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como Nação, então tudo muda …

Não esperemos acender uma vela a todos os santos, a ver se nos mandam um messias. Nós temos que mudar. Um novo governante com os mesmos portugueses nada poderá fazer.

Está muito claro … somos nós que temos de mudar. Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda a acontecer-nos:

Desculpamos a mediocridade de programas de televisão nefastos e, francamente, somos tolerantes com o fracasso. É a indústria da desculpa e da estupidez.

Agora, depois desta mensagem, francamente, decidi procurar o responsável, não para o castigar, mas para lhe exigir (sim, exigir) que melhore o seu comportamento e que não se faça de mouco, de desentendido. Sim, decidi procurar o responsável e ESTOU SEGURO DE QUE O ENCONTRAREI QUANDO ME OLHAR AO ESPELHO. AÍ ESTÁ. NÃO PRECISO PROCURAR NOUTRO LADO.

E você, o que pensa? … MEDITE”!

Esta autêntica aula e lição de vida é direcionada a todos nós, gente deste país, que corrompe e se deixa corromper, mas exige seriedade aos governantes; que faz do não cumprimento da lei um estilo de vida apoiado na falta de eficácia do sistema judicial, mas quer o país justo, moderno, organizado e seguro; que vive do expediente e do “jeitinho” para conseguir o que deve pertencer ao mérito; que vende a alma ao diabo ao tornar-se “mercenário da política”, mas que só se serve sem sequer servir o país nem é exemplo de integridade e honradez para ninguém; que atirou para a valeta os valores de sempre, mas que os exige dos outros quando lhe convém; que vai “parindo” governantes atrás de governantes, mas mais não são que a imagem da sociedade refletida no espelho com todos os seus vícios e defeitos, pelo que só temos os governantes que merecemos e são o nosso reflexo …

Obrigado Eduardo Prado Coelho pela lição, que caiu em saco roto …

As maiores necessidades de hoje …

Para qualquer animal, a sua maior prioridade é conseguir alimento necessário para sobreviver e evitar ser comido pelos predadores que lhe estão acima na cadeia alimentar através da fuga. Para isso precisa de ser bom corredor, voar depressa, saber esconder-se, nadar bem e ter sempre um olho a vigiar os perigos. É o instinto de sobrevivência a determinar os comportamentos que favorecem a conservação da espécie, onde ainda se inclui o acasalamento e construção de ninhos. Mas para nós, seres humanos, depois de satisfeitas as necessidades básicas de sobrevivência, que são semelhantes às dos outros animais, temos necessidades complementares que são próprias da evolução mental, tais como ser reconhecido, valorizado e sentir-se importante. Diz-se mesmo que a necessidade humana de ser importante é mais forte do que qualquer das necessidades fisiológicas, como alimentar- se ou receber amor. Com os outros animais não há essa preocupação pois o instinto de sobrevivência é-lhes suficiente. Mas, já nos seres humanos, o “sentir-se importante” é uma necessidade que nasce e morre connosco. Foi esse desejo que levou um pobre iletrado que trabalhava num armazém, a estudar livros de direito que encontrou no fundo de um barril de coisas descartadas e que havia comprado por 50 centavos, por boas razões. Seu nome era Lincoln e tornou-se no maior presidente dos Estados Unidos da América. 

A história está repleta de pessoas que lutaram para ser importantes: George Washington queria ser chamado “O poderoso presidente dos Estados Unidos”; Cristóvão Colombo pediu o título de “Almirante do Oceano e Vice-Rei da Índia”; A rainha Catarina, a Grande, recusava-se a abrir cartas que não a referissem como “Sua Majestade Imperial”; e o escritor Vítor Hugo aspirava ver a cidade de Paris a receber o seu próprio nome, para o homenagear. 

Nos dias de hoje, a importância de “sentir-se importante” é o que, em geral, move as pessoas, define os objetivos e redefine o encanto dos relacionamentos. A importância passou a estar mais no “ter” do que no “ser”. Porque é que que ela precisa ter o telemóvel melhor do que o seu? E o carro mais novo e maior? De ter o filho mais inteligente e o marido mais bem-sucedido, rico e apaixonado? Porquê? Para você perceber o quanto ela é melhor que você? E para quê? Para que é que alguém está sempre à procura de provar a sua superioridade, quase sempre em coisas fúteis? Essa necessidade de sentir-se importante é o que faz com que as pessoas comprem artigos de luxo, carros de marcas consagradas e exclusivos, joias únicas e caras, telemóveis de última geração e casas de luxo com tanta divisão que uma boa parte não chega a ser utilizada. Tudo isso não passa de manifestação de superioridade e afirmação perante os outros, expressa nas roupas que vestem, nos sapatos que calçam, nos restaurantes onde comem (e no que comem), em tantas coisas onde pretendem ser exclusivos, únicos, com acesso a bens, serviços e locais de uso e entrada só para alguns. E há quem faça mesmo tudo e de tudo para ser um deles …

Todos querem receber atenção e, se possível, atenções especiais que os ponham em destaque em relação à multidão. Os estabelecimentos comerciais e industriais, dos restaurantes às lojas de roupa e calçado, dos standes de automóveis às perfumarias ou joalharias, para terem sucesso tratam os clientes pelo nome próprio, elogiam-lhe o gosto e as escolhas, fazem-no crer o cliente mais importante informando-o “em primeira mão” do novo modelo que chegou e sobre o qual ele vai ter prioridade na aquisição. O cliente que sai da loja a sorrir e com o ego em alta, nunca vai de mãos vazias. Quem pode ir embora vazia é a carteira, mas o “banho de autoestima” vale bem o preço que se paga. É que, o ser tratado como importante, reconhecido como pessoa de bom gosto e valorizado pelo que faz, usa ou diz não tem preço, pois satisfaz uma necessidade básica de (quase) todo o ser humano deste tempo.

Está provado que até para a formação de gangues de rua o principal fator de motivação é a necessidade de se sentir importante. E apesar de isso acontecer de forma negativa, não deixa de ser uma afirmação de quem quer ver-se reconhecido e valorizado, ainda que seja por ser o maior bandido do bairro ou da cidade, algo que é designado pelos especialistas como “reconhecimento negativo”. Já alguém dizia que, “bem ou mal, o que é preciso é que falem de mim”.

Provavelmente, é essa necessidade de querer ficar na História em grande ainda que por razões negativas, que move Putin.

Tanto a compra como a venda de reconhecimento estão disponíveis no mercado em milhentos produtos e formas de vida, mas cada um de nós tem o poder de escolher se quer entrar nessa corrida à fama (boa ou má) a qualquer preço, seja nas redes sociais ou através de colunistas sedutores, seja por se ter o automóvel mais exclusivo – e caro do mercado – ou a vivenda mais luxuosa, vista e badalada nas revistas da especialidade, seja no acesso ao poder que transforma rapidamente a pessoa humilde em convencida e arrogante e que lhe confere quase sempre uma “auréola de divindade” para viver uma notoriedade transitória, que tantas vezes tem um custo financeiro e emocional demasiado pesado. Mas, já alguém disse que “mais vale viver um dia governando do que toda uma vida servindo” e há quem aposte nisso a todo o custo.

Buda avisou-nos sobre tudo isso: “Um homem será tolo se alimentar desejos pelos privilégios, promoções, lucros ou pela honra, pois tais desejos nunca trazem felicidade e, pelo contrário, só podem trazer sofrimento”. Mas uma coisa são estes e outros conselhos de uma vida simples e desprendida e outra coisa é essa atração terrível de se ser o mais badalado do bairro, cidade ou país, adulado (e nem sempre com a melhor das intenções) e idolatrado pelo maior número de fãs como se isso fosse durar para sempre e possa colocar alguém num pedestal bem acima do cidadão comum, onde ganha o direito exclusivo e único de apanhar em cima umas “cagadelas dos pássaros”. E os cemitérios fazem o resto, “enterrando” toda essa importância com “o corpo do delito” …