Com a idade, tornei-me desconfiado. Daquele miúdo ingénuo e crédulo, que acreditava em tudo o que via e ouvia, já quase nada resta. As caneladas da vida arrefeceram o meu entusiasmo e fazem-me analisar os factos com mais frieza. Questiono e tendo a duvidar. Perante a atitude ou ação de alguém, pergunto-me muitas vezes “quais as intenções reais” que não as aparentes?
Ao longo da vida encontrei gente muito boa, solidária, capaz de dar a camisa pelo outro. Pessoas dispostas a ajudar, prontas a fazer um favor ou a contribuir para uma causa. Vi até gente admirável e sinto-me honrado por ter conhecido pessoas assim. No entanto, também vi muito “gato por lebre”, de “beneméritos”, gente disponível para ajudar, mas que não deixaram de “apresentar a factura” ao exigir reconhecimento público dos seus “atos de benemerência”, na divulgação do seu gesto de boa vontade, chegando a impor a presença da imprensa para assegurar a ostentação. Em suma, o espetáculo da bondade… E já excluo os políticos que nos habituaram a essas tristes representações de “dar o que não é deles” para cobrarem os dividendos do costume em imagem e… votos Ora, “isso” de dar esperando em troca a recompensa pela publicidade, reconhecimento público ou elogio, não pode ser tido como um ato de bondade a sério, mas um mero negócio de que se espera tirar ganhos superiores ao investimento. É falsa bondade, falsa solidariedade, humanidade a fingir. Só o que é conveniente. Quem realmente “DÁ”, não quer contrapartida, é espontâneo, discreto, anónimo. A recompensa chega-lhe na alegria do coração, na paz interior e no sentir que foi útil ao outro, sem importar quem.
Se fazer o bem sem ostentação é muito digno, esconder a mão que dá ainda o é mais. Indica uma elevada superioridade moral só possível aos que conseguem apagar em si a vaidade pessoal e interesses, muitas vezes inconfessáveis. Quantos há que praticam o bem à espera que o beneficiado o proclame aos quatro ventos? Dão grande contributo à frente da multidão e das luzes, mas nem um cêntimo na discreta caixa de esmolas. O recato do contributo evita a vergonha ao beneficiado, fazendo-o aceitar a ajuda sem humilhação, sem ferir a sua sensibilidade e dignidade. E isso é fundamental, especialmente na pobreza envergonhada, onde se aceita um serviço mas é-se capaz de recusar a esmola. Daí que a ajuda muitas vezes tem de ser bem dissimulada para evitar melindres e sofrimento moral inútil.
Mas não é fácil sobrepor a discrição da benemerência à vontade de a exibir, de a anunciar com megafone. É a tentação de a tornar um negócio, nada mais que um negócio. Até algumas empresas já viram nisso uma forma de retirar dividendos junto dos clientes…
E tudo isto para falar de Manuel Peixoto de Sousa Freire, um homem que terá levado à letra o que Jesus disse no Sermão da Montanha, esse importante discurso que definiu o código de conduta que ainda hoje é a base da moralidade ocidental. Fez parte do grupo de “cavalheiros do concelho” de Lousada que estiveram presentes na reunião que ocorreu na Câmara Municipal de Lousada no dia 30 de Maio de 1896 a convite do Conde de Alentém (não se sabe se terá sido mesmo o mentor de tal reunião), de onde sairia a decisão da fundação da Misericórdia de Lousada, com o objetivo de assumir a propriedade e administração do Templo do Senhor dos Aflitos concluído alguns anos antes e de construir um hospital “para abrigo dos doentes pobres”.
Comemoram-se dentro de dias 121 anos dessa reunião… A Misericórdia veria os seus estatutos consagrados em 1897, vão 120 anos, sendo ele eleito como primeiro provedor. Estranhamente, durante os mandatos que exerceu até à sua morte em 1902, não promoveu qualquer diligência para a construção do hospital, uma das razões da fundação da instituição, sendo ainda mais estranho pelo facto dele ser um dos grandes entusiastas da sua criação. Isso viria a compreender-se na abertura do seu testamento, ao deixar uma verba avultada à Santa Casa da Misericórdia de Lousada para a construção do hospital, com indicações precisas e quem seriam as pessoas que deveriam integrar a comissão que levaria a efeito tal tarefa. Mas, o mais interessante, é que o seu testamento fora efetuado em 1895, no ano anterior à referida reunião na Câmara de Lousada onde foi deliberada a fundação da Misericórdia e da qual ele participaria, sendo ainda de assinalar que, provavelmente para o manter “no segredo dos deuses”, foi escrito e lacrado num cartório notarial do Porto… Despiu-se da vaidade e da ostentação para fazer o bem, que manteve escondido do domínio público até se ter “retirado” discretamente do palco da vida, quando o poderia ter feito durante os seus mandatos à frente da Instituição e assim colher pessoalmente os louros de grande benemérito, como muitos outros o fizeram por esse país fora.
Os seus contemporâneos reconheceram nele “o protótipo do benemérito, um homem caridoso sem ostentação, afável, humilde, sem laivos de falsa modéstia, apelidado de apóstolo da caridade”. Um exemplo vivo de quem seguiu à risca o Sermão da Montanha, quando Jesus disse: “Mas, quando tu deres esmola, não saiba a mão esquerda o que fez a tua direita”. O que não é para todos…