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Clima temperado. E passamos frio…

“Está um frio de rachar”, dizem-me quando entro numa loja. Não sei o que é que ele “racha” mas, na realidade, esta manhã tive de colocar várias camadas de roupa para proteger este corpinho daquele vento gelado que parece atravessar-me os ossos. Não é tanto o frio que nos gela. O pior é quando ele aparece agarrado ao vento, uma dupla que mete medo. Até me faz crer que ando nu na rua, tal a facilidade com que trespassa a roupa e a carne.

Felizmente, hoje já temos vestuário adequado para as intempéries, coisa que não havia quando ia a pé para a escola primária. Nesse tempo, sim, havia mesmo frio, porque não havia com que o parar. A maioria ia descalça a pisar a terra levantada pela geada, com calças rotas (que nesse tempo eram sinal de pobreza e hoje estariam na moda) ou remendadas, uma camisa velha e, com sorte, camisola feita à mão lá em casa. Para proteger da chuva e do frio, uma “capa” com o saco de sarapilheira. E era preciso ter um saco de sarapilheira, o que não era para todos…

Mas o frio também se fazia sentir bem forte dentro das casas, sem condições de habitabilidade. A maior parte delas tinha o pavimento em terra batida. Húmidas e frias. O vento e o frio entravam pela cobertura em telha vã e pelas largas frinchas de portas e janelas. Só o peso dos cobertores (para quem os tivesse), enganava o corpo, que ficava dividido entre dois problemas: o peso dos cobertores e o frio. Para os que tinham mais posses, uma botija de água quente, feita em lata pelo latoeiro da terra, dava um grande conforto, a não ser que se rompesse a solda… Os pobres, como não tinham como comprar tais botijas, aqueciam um pedregulho na lareira e enfiavam-no entre os cobertores embrulhado em trapos…

Os “Kispos”, desse revolucionário do nosso modo de vestir conhecido pelo nome de Hans Isller, para além de nos darem um ar desportivo, descontraído e colorido (acabando com o cinzentão das roupas de então), também nos vieram dar proteção contra a chuva, o vento e o frio, de forma irreversível. Bem agasalhados, até passou a dar prazer andar ao arrepio dos elementos, como as crianças quando teimam em dar saltos numa poça de lama.

A riqueza trazida pela industrialização permitiu-nos ter casas novas, com outro aparato que não o da casa de pedra tradicional. Modelos importados da “estranja”, caixilhos de alumínio e outras modernices, ficavam bonitinhas depois de pintadas em cores garridas. E, para os mais abastados, nasceram casas maiores, casarões e outros que tais, que enchiam de orgulho os donos pelo aparato, pela beleza exterior, mas cuja comodidade pouco correspondia ao aspeto. A preocupação maior era sempre, e só, com a beleza da moradia e muito pouco com a comodidade. A qualidade do isolamento térmico e acústico não existia e, quando se começou a falar nisso, fingia-se, brincando aos isolamentos, ao colocar na caixa de ar das paredes exteriores placas de esferovite com um a dois centímetros de espessura, como se isso resolvesse alguma coisa. Resultado: as casas novas tinham problemas velhos: Frias, quando não, húmidas. Sem aquecimento a sério, enganava-se o inverno e o frio com o aquecedor a gás ou elétrico, a lareira ou uma salamandra na sala. E nos quartos?  Um montão de cobertores na cama e botijas de água quente, agora de borracha…

Há cerca de trinta anos fiz uma viagem a França com a família e quis visitar uma prima que morava em Lyon. Estávamos no mês de Agosto e, ao meio dia, a temperatura ultrapassava os trinta e cinco graus. Ao encontrar a casa de rés do chão, muito simples, disse à Luisa: “vamos assar lá dentro”. Mas nada disso aconteceu. Fui surpreendido por uma temperatura amena, onde se estava muito bem. Perguntei-lhe se tinham ar condicionado. “Não, o que temos é um bom isolamento térmico”. E, quando me referiu a espessura das placas de isolamento, tanto no interior das paredes como na cobertura, disse para comigo: “isto, é isolamento a sério”. Ainda hoje, apesar de obrigados pela lei, estamos longe de usar espessuras de isolamentos como eles o fizeram.

A verdade é que somos um país de clima temperado, onde se passa mais frio dentro de casa do que em qualquer casa de um país frio da Europa central ou norte. O que é um paradoxo. Até se compreende no caso das famílias que construíram a habitação com muito sacrifício e não disponham de meios para um sistema de aquecimento e a sua manutenção. Mas, para muitos outros, não faz sentido nenhum.

Nos países frios, o aquecimento é uma prioridade imprescindível, sejam ricos ou pobres. Os prédios de apartamentos têm aquecimento coletivo. E já vi isso na antiga Checoslováquia há mais de trinta anos…

Um amigo serralheiro, quando foi pela primeira vez a França colocar a caixilharia numa moradia, ficou muito admirado porque a casa só tinha os alicerces e as paredes exteriores em tosco, com os blocos à vista. Nem telhado. Nunca vira nada daquilo e disse ao empreiteiro que não a podia assentar. Naquelas paredes toscas, sem reboco, só havia os buracos para portas e janelas. O construtor disse-lhe para colocar a caixilharia porque os acabamentos viriam depois. E ele fez o que lhe mandaram. Mais tarde pode ver como se acabava a casa. Só precisaram de um quinto do cimento que nós gastamos e ficou com tal comodidade que, em pleno pico do inverno, andavam lá dentro descalços e em t-shirt, como se fosse verão. Porque a preocupação deles é a comodidade e o conforto.

O sistema construtivo conhecido por “capoto” melhorou muito o isolamento das casas que hoje construímos, mas ainda temos muito caminho a percorrer. Quanto a aquecimento? Ainda ficamos muito pela pré-instalação e depois usamos aquecedores elétricos ou o que calha, que consomem dinheiro, sem proporcionar comodidade e conforto. E nestes picos de frio, anda-se agasalhado em casa como na rua…

Temos um clima temperado. Mas, as nossas opções em relação à climatização caseira, nem sempre são temperadas… pelo bom senso. Questão de prioridades…

Já agora, para quê tanta pressa?

 

Apesar de gostar da comodidade do “meu canto”, quando preciso (e tem de ser), vou ao Porto. Aquele aglomerado de “pressas” já não me motiva a ser mais um “com pressa”. Na última ida à capital do Norte, foi uma confusão danada, porque só vi gente apressada. O trânsito estava caótico, as pessoas impacientes por chegarem a sítio nenhum, os carros, esforçados do “para e arranca”, continham os “cavalos de potência” que não lhes servia de nada naquela teia de desencontros. Mesmo os polícias, depressa se escaparam da confusão. Sem pressa, mas querendo chegar, feito observador em palanque, assisti ao vai e vem de grandes vagas de carros no mar agitado do trânsito, ao som febril de buzinas inquietas, pressionadas por condutores com pressa, irritados e impacientes por “marcar passo”, quando já queriam estar algures, mas atrasados para nenhures…

É nestes dias que mais nos apercebemos que anda toda a gente com pressa, essa doença da vida moderna. Já Fernando Pessoa há muito tempo identificou o problema: “Movemo-nos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz, para outro onde não há nada para fazer e chamamos a isto a pressa febril da vida moderna. Não é febre de pressa, mas sim pressa de febre. A vida moderna é um lazer agitado, uma fuga ao movimento ordenado por meio da agitação”. Se há mais de cem anos Pessoa já fez este diagnóstico, é caso para perguntar o que diria ele agora, em que tudo acelerou de forma descontrolada, como quem passa do passo de boi para a velocidade da luz?

A pressa é um dos grandes males das sociedades modernas e conduz as nossas vidas a uma agitação e preocupação permanentes. Somos por isso dominados pela ansiedade, apesar de usufruirmos de meios tecnológicos que deveriam facilitar-nos a vida, como os transportes rápidos, o computador, a internet, o telemóvel e tantos outros. Estranhamente, acabamos sempre por andar atrasados, correndo de um lado para o outro e sem ter tempo para nada.

A qualidade da nossa vida é afetada pela pressa constante, refém de agendas sobrecarregadas como se o dia tivesse mais de vinte e quatro horas. Aliás, estamos ligados e em serviço todas as horas do dia e até mesmo de noite. Onde fica o lazer, o descanso e, mais que isso, o “viver”? Relegados para o canto do “mais tarde” ou “quando for possível” ou ainda “quando me reformar”, como se a felicidade só vá chegar na velhice… Mas não vai.

Já pouco ou nada usamos o relógio que trazemos no pulso, talvez por estarmos em conflito com ele. É tempo de fazer as pazes com o ritmo de vida e usufruir das coisas boas, simples e calmas. Não fomos feitos para andar sempre acelerados, nem viver “a cem à hora”. Não temos paciência, esperar irrita-nos e achamos que a espera é só para quem não tem nada que fazer. Queremos tudo agora, agora mesmo. Porque temos urgência de chegar, como se tivéssemos urgência de chegar ao fim, como se no fim estivesse a felicidade…

Manuel Barros é um poeta brasileiro. Na sua filosofia, valoriza as insignificâncias e questiona as opulências. Dava mais importância aos passarinhos do que aos senadores. Tinha cisma com lesma, por achar que ela andava muito depressa. Dizia uma verdade que deveríamos guardar e até seguir: “A gente só chega ao fim, quando o fim chega! Então, para quê atropelar”?

Apesar do homem ter trocado os braços pelas asas, as pernas pelas rodas, a calma pela pressa e o perto pelo longe, está sempre atrasado, não conseguindo cumprir a agenda e os horários. Incapaz até de ter tempo para os filhos, para a família, para os amigos. Já não se dá tempo ao tempo, porque tudo tem de ser feito antes do tempo, como se o tempo não tivesse um tempo. Mas tem o seu tempo…

No supermercado, zangamo-nos connosco porque escolhemos a fila errada, fulminamos o cliente à nossa frente, porque é lento e não tem o dinheiro à mão para pagar logo e encaramos mal o caixa, porque não é despachado. Como se ninguém visse que temos pressa… Toda a semente tem um tempo para germinar, crescer, dar flor, frutificar e amadurecer o fruto. No ciclo da vida vegetal, ainda não há forma de saltar etapas, de fazer florir antes de germinar ou de colher antes sequer de se semear. E não adianta ter pressa. Apesar de recusarmos fazer da vida como no ciclo do reino vegetal: semear, regar, adubar e cuidar para colher.

Conta-se que o célebre pintor francês Renoir, já em idade avançada, foi procurado por um jovem admirador, muito interessado em aprender a arte do desenho. Porém, alegando ter pouco tempo para a tarefa da aprendizagem, o apressado discípulo queria saber quanto tempo demoraria a empreitada, pois ficara assombrado ao ver que o mestre fez uma bela pintura com uma rapidez espantosa. Perante tanta pressa, Renoir disse-lhe: fiz este desenho em cinco minutos, mas demorei sessenta anos para consegui-lo”.

Todas as últimas descobertas vão no sentido de acelerar a nossa vida e os nossos atos. Comunicamos à velocidade da luz, voamos acima da velocidade do som, inventamos o computador para nos resolver em segundos problemas que demoravam anos e inventamos máquinas para nos substituírem no trabalho. Mas estamos mais escravos da pressa, do ter de fazer mais ainda e mais rápido, porque não basta fazer. E nessa pressa, despachamos à pressa as coisas importantes da vida, porque temos pressa do resto, de ter o que não temos antes mesmo de usufruirmos daquilo que já temos.

Até temos pressa de chegar ao amanhã. De o antecipar. Como se fosse o que mais importa. A tal ponto, que até nos esquecemos de viver o presente, o dia de hoje, o agora. Bem vistas as coisas, no fundo, no fundo, até nos esquecemos de viver…

Te quero, Bem. Não te quero, Mal…

Não tenho qualquer memória sobre o dia do meu nascimento, apesar de ter participado como protagonista principal desse “filme”. E nem sei se estive de olhos abertos ou fechados, se vi a cena “do lado de quem sai” ou se não tive tempo nem disposição para ver nada. É que, bom, bom, é andar na barriga da mãe: Não temos de nos preocupar com tomar banho, comer, vestir, trabalhar, ouvir discursos chatos, aturar estúpidos, nem correr atrás do dinheiro. Nada. Assim, quando tudo nos empurra para atravessar a “porta” que nos traz a este mundo, quem é o tolo que vem de boa vontade? Nenhum. É por isso que a “ganapada” entra toda nesta vida a berrar. Pudera. Lá dentro é que se está bem, sem necessidade de “ter de fazer pela vida” …

Aterrei neste mundo e vi a luz do dia em casa dos meus pais e só o sei porque a minha mãe me contou. Não havia maternidade e o hospital era para outros males. Também fiquei a saber que saí a berrar, como os outros. Não fui diferente. Sou feito da mesma massa. E, mais ainda, que a minha avó materna foi quem ajudou a “puxar-me” cá para fora (provavelmente com medo que eu fizesse “finca pé” e não saísse), assumindo o papel de parteira. Nesse tempo, em que a assistência médica no parto era residual. Quem “ocupava o lugar” de parteira era, em regra, uma mulher com muitos filhos. E a avó teve uns quantos. É que, aquela que tivesse muitos filhos, pela lógica, tinha experiência prática, aquilo a que hoje se chama “currículo” … Era um curso da vida, sofrido, muito sofrido pela experiência própria. Tanto o era, que as mulheres nem sequer “davam à luz”. Pariam.

Também não sei se nasci com os genes do Bem e do Mal. Não me lembro, não me perguntaram e o ministério público não investigou nada desse assunto. Mas também é uma discussão que não tem fim, pois há muitas teorias. Da treta? Talvez. Umas dizem que o homem é mau e nasce mau. Outras, defendem o contrário: que os homens nascem livres de qualquer maldade. E há ainda as que acham que nascemos como um livro em branco, sem nada escrito, sem maldade nem bondade. Ora, nas minhas memórias mais remotas, vejo-me a ser solidário com outras crianças. Nesse caso, um sinal de que já tinha o Bem comigo. O que é bom. Mas também me recordo nessa altura, de andar à “batatada” com o Tónio. Outro indicador, de que o Mal já cá estava também. O que é mau. Tinha cinco a seis anos e já carregava os dois: O Bem e o Mal. Mas, pergunto eu, quando nasci, naquele preciso momento em que berrei ao ver a luz do dia, já trazia os dois em mim? Fica-me a dúvida, apesar de todas as teorias que nada têm de consensual e que só aumentam as minhas interrogações.

Não posso negar que, ao longo dos anos, os meus atos e atitudes foram consequência da maior ou menor influência de cada um desses dois “manipuladores”, sem nunca me ter conseguido libertar por completo do segundo, apesar de me esforçar e da arma que os meus pais usaram para o eliminar: A Educação.

Na minha linguagem e desde o tempo de criança, praticamente nunca usei palavrões, inclusive os mais vulgares cá na região. É que, a minha mãe, bem cedo avisou que me punha pimenta na língua se me ouvisse dizer um palavrão sequer. Levei de tal forma a ameaça a sério, que excluí o calão mais ordinário do meu vocabulário. Até hoje, apesar da enorme pressão feita pela malta que estudava comigo. E isso também aconteceu com os cigarros: para a “maralha”, quem não fumasse, não era homem. Por isso, eu tinha de fumar como os outros, para poder ser integrado e … ser homem. Mas resisti. De tal maneira, que nunca meti um único cigarro à boca. E, que eu saiba, “cheguei a homem” …

O meu pai ensinou-me a cumprir a palavra. Se acordava com alguém alguma coisa, bastava um aperto de mão para selar o acordo e ficar refém da palavra. Não era preciso papel escrito. E ambos fizeram questão de me ensinar ainda a respeitar os professores, os mais velhos, as autoridades e as pessoas em geral. Respeitar, diziam, para poder ser respeitado ou para exigir respeito. E a ter valores.

Mas, apesar da educação que me incutiram baseada na “liberdade com responsabilidade”, não deixei de ter o meu lado negro, como toda a gente. Quando na escola o Tónio, mais velho e maior do que eu, me fez uma patifaria, dei-lhe um valente pontapé no traseiro, que me deixou a sensação de o ter levantado do chão. Ainda hoje pergunto como é que lhe acertei tão bem no “centro”!!! Felizmente para mim, não reagiu como seria de esperar. Já rapazote, a jogar futebol pelo Macieira, um adversário rasteirou-me, fazendo-me estender ao comprido, indo com os joelhos a raspar no areão do campo. Ficaram a sangrar. Levantei-me e não vi mais nada além do “inimigo”. Corri atrás dele com a raiva estampada no rosto e sede de vingança, dando uma volta ao campo de futebol sem o conseguir apanhar. Era o meu lado “Mau” a comandar a minha reação. E esta luta sempre existiu em mim quando perante casos de agressão, prepotência, violência ou qualquer tipo de injustiça. O lado negro reclamava por vingança e justiça. Resisti sempre? De maneira nenhuma, não tenho nada de santo. Mas tenho orgulho ao dizer que, a educação que os meus pais me deram, resguardou-me e protegeu-me de muitos desses apelos. Ela foi fundamental na escolha do trilho e ainda bem que não a deixaram ao cuidado de outros. Tive influências de companheiros de caminhada? Claro que sim. Mas naquilo que era essencial, segui pela via que os meus progenitores me indicaram.

Para os pais de hoje, os desafios são muito maiores que os daquele tempo. Mas não são impossíveis. Têm, à partida, mais preparação, mais informação e meios. Não podem demitir-se da responsabilidade, nem sequer delegar em terceiros, muito menos em quem tem só a missão de instruir, porque não lhes cabe educar, apesar de fazerem o que podem quando existe esse vazio. Aos que não estão disponíveis para tal responsabilidade, um único conselho: é melhor não terem filhos. Eles não têm culpa.

Circula na internet que um recluso condenado à pena de morte e a aguardar pela execução solicitou, como último desejo, papel e lápis. Escreveu alguns minutos e depois chamou pelo guarda prisional, pedindo-lhe que a carta fosse entregue à mãe. A carta dizia:

“Mãe, se houvesse justiça no mundo, seríamos os dois executados e não apenas eu. És tão culpada quanto eu sou pela vida que tenho levado. Lembras-te quando roubei e levei para casa a bicicleta de um menino como eu? Tu ajudaste-me a escondê-la, para que o meu pai não descobrisse. Lembras-te quando roubei o dinheiro da carteira do vizinho? Tu foste comigo gastá-lo ao centro comercial que havia mais perto. Lembras-te quando discutiste com o meu pai e ele se foi embora? Ele só queria corrigir-me por ter roubado o exame final do curso, em que acabei por ser expulso.

Mãe, eu era só uma criança. Pouco tempo depois tornei-me um adolescente problemático e agora sou homem muito mal formado. Mãe, eu era uma criança que precisava de correção e não de aprovação. Mas, mesmo assim, perdoo-te, mãe.

Só peço que faças esta carta chegar a todos os pais do mundo, para eles saberem que o que faz todos os homens tornarem-se pessoas de bem ou criminosos, é a educação ou a falta dela” …

Galinheiros, galinhas e outros…

Já não há galinheiros como os de antigamente, onde tudo era natural. Era natural serem barracos improvisados, mal cheirosos, com rede velha e “caca” por todo o lado. Era natural terem galinhas grandes e gordas, a porem ovos quando lhes apetecia e onde lhes apetecia (à vizinha da minha mãe um dia entrou-lhe casa dentro uma galinha que já não via há vários dias, seguida por uma dúzia de pintainhos. Tinha feito um “ninheiro” no monte, atrás da casa, onde foi pondo os ovos que chocou, até nascerem os pintainhos). Era natural comerem do que havia, desde couves, restos de comida, grão de milho partido (o grão inteiro era bem preciso para fazer a broa de milho caseira) e, em especial, minhocas, sementes e outros bichitos. Ora, era natural terem liberdade total. E era natural haver um galo de crista grande na capoeira (era o chefe; o felizardo, invejado pelo típico macho latino que sonha ter um lugar desses, de galo mor, onde possa ser o dono e único senhor da “galinhada e das frangas” … se bem que, em regra, “tem mais olhos que barriga”; servia de despertador da casa, embora cantasse a horas erradas; só tinha como missão “tratar” das galinhas para que os ovos saíssem “galados”, condição essencial para darem pintainhos no caso de serem postos a chocar). Era natural ainda que, ao fim do dia, se metessem os “bicos” na capoeira, bem fechados, para não serem comidos pela raposa ou pelo texugo, que andavam por perto.

Podia-se contar com “o ovo no cu da galinha”? Podia, pois a mulher da casa, para controlar a produção e saber quantos ovos ia ter nesse dia, enfiava o dedo no “tal buraco” e sabia de antemão se tinha ovo ou não. Com isso, evitava que pusessem o ovo em local desconhecido ou que alguém os recolhesse indevidamente. Também eu fiz algumas vezes essa “prospeção anal” com o meu pequeno dedo … Mas ficava uma dúvida na minha cabeça de criança inocente: se os ovos saíam cá para fora pelo mesmo buraco por onde também saíam as cagadelas das galinhas, como é que se formavam os ovos lá dentro? A partir da m. de galinha e de uma forma que eu não entendia? Como é que a m. se transformava em gema e clara? Ou havia algum canal lateral que entroncava no “tubo de esgoto” das galinhas, com sistema de “válvula de passagem” só para deixar sair o ovo? Era estranho. Se fosse num hospital nos dias de hoje, teria de haver um corredor de “sujos” e um outro corredor de “limpos”. Ora, cagadelas de galinha e ovos, teriam de ter “corredores” diferentes e separados. Mas, ali, não tinham.

Naquele tempo as galinhas tinham liberdade. Não sofriam qualquer tipo de pressão psicológica, nem física (para além da exercida pelo galo). Claro que, o seu final, era sempre como protagonista principal do assado no forno e da canja de galinha caseira. Mas essa liberdade acabou e hoje já (quase) não há galinheiros à moda antiga, onde as galinhas gozem de liberdade plena. Pelo contrário. São encafuadas em gaiolas apertadas, aos milhares, onde só comem ração, bebem água com medicação e … poem ovos. Liberdade? Nenhuma. Estão ali para produzir, produzir, produzir, a ritmo alucinante. Só comparável às operárias em linha de fábrica de confeções, confinadas a pequeno espaço. Estas têm a vantagem de lá estarem só oito horas, cinco dias da semana, enquanto as outras estão vinte e quatro sobre vinte e quatro. Bom, as galinhas têm a vantagem de poder olhar para o lado, cacarejar com as outras das gaiolas vizinhas sem que lhes chamem a atenção ou lhes “caia” um palavrão em cima. E não precisam de dar com o cotovelo no contador para marcar mais um ovo produzido. A gaiola está feita de tal forma que, ao cair o ovo, rebola acionando um marcador automático e entra no tapete rolante, que o leva quase até à boca do consumidor. Assim, automaticamente, os donos sabem quem produz e quem já não produz o suficiente para ficar no ativo. Mais ou menos como nas operárias… Só que, as galinhas consideradas improdutivas e inúteis, são produto descartável, vendidas “ao preço da uva mijona” a um qualquer galinheiro que, de porta em porta e nas feiras, as despacha rapidamente “ao preço da chuva”, como petisco em casa de pobre. Já as operárias com poucas “cotoveladas” no contador e daí, com baixa produção, também não deixam de ser “produto descartável”, não abatidas em matadouro, mas ao ativo, passando a integrar as legiões de reformados considerados inúteis ao sistema produtivo vigente, onde só vale quem produz…

Vem-me à memória os galinheiros de casa dos meus pais e da minha avó paterna, onde se “botavam” galinhas a chocar, criando ninhadas atrás de ninhadas. Aí se abrigavam à noite galinhas e galos, frangos e frangas, das intempéries, dos larápios, da raposa e outros animais. Mas não havia separação por sexos, como nos liceus e colégios de outrora e nos aviários de hoje. E tanto a mãe como a avó, conheciam bem cada galinha e davam conta se faltasse alguma. Agora, já não se “botam” galinhas a chocar. Dá trabalho, já não se usa. Compram-se os pintos num aviário, onde são “fabricados” aos milhares, como quem fabrica pás ou parafusos. E, “para adiantar serviço”, mandam-se vir com duas ou três semanas de idade, o que é meio caminho andado para quem tem pressa de ver os frangos criados. Já os ovos, é mais fácil apanhá-los na “ponta” do tal tapete rolante onde as “poedeiras” os largam, que fica precisamente nas estantes dos supermercados…

Se os pintos já nascem em aviários através de processos industriais, os seres humanos vão ter um futuro semelhante, mas muito mais avançado. Passarão a ser gerados só em “humanários”, os “aviários de humanos”, com milhares de “úteros artificiais” onde será possível manipular os genes e escolher as características de cada criança, a gosto.

São só vantagens. As mulheres não terão de “andar a empurrar o mundo para a frente” nem sofrer as dores de parto. E o sexo passa a ser só diversão. As regras serão: produzir somente por encomenda de casais “normais”, de lésbicas, gays ou do ministério da guerra; os “clientes” podem até querer com os seus genes pessoais, fornecendo óvulos e esperma, seus ou de ”um filho da mãe” qualquer; têm direito a escolher o sexo do “filho”; podem ainda selecionar a cor do cabelo e olhos; e até a raça; encomendar as qualidades físicas, se jogador de futebol (e o tipo, Ronaldo ou Messi), atleta de velocidade ou fundo, halterofilista ou remador; optar por cientista, político, banqueiro, militar, ladrão ou pirata (é possível ter várias coisas em simultâneo, como alguns dos “modelos” que já existem no mercado); marcá-lo com um sinal ou verruga, para o identificar à distância ou quando andar perdido; e se o querem parecido com o “papá”…

Mas há um pormenor importante, que vem ao encontro do desejo de muitos pais: a partir do momento que o “filho” for dado como “pronto e parido”, podem decidir quando o querem levar para casa, se vai a tempo inteiro (o que é uma chatice, dá um trabalhão e não se ajusta à liberdade do casal) ou a tempo parcial. A liberdade será tal, que podem mesmo optar por um horário das três às cinco da tarde, ao domingo. SÓ e nada mais. É tempo mais que suficiente para dar a “voltinha dos tristes”, mostrar que têm um filho e que vai ser o futuro “Ronaldo”. Será um sucesso e um orgulho para os “progenitores” …