Monthly Archives: August 2016

Quem quer boas “vistas”, que as pague…

Com as alterações agora introduzidas na avaliação predial, vamos pagar mais IMI porque serão tidos em conta a “exposição solar”, as “vistas privilegiadas” e a “qualidade ambiental”. Acho bem, porque não tenho nada disso. E, como diz o brasileiro, “pimenta no c. dos outros, é refresco”. Ficam-me algumas dúvidas, que me fazem deixar algumas perguntas no ar:. No que diz respeito à exposição solar, será que os prédios do Algarve vão pagar mais taxa do que os do norte? É que para lá há mais sol ou os turistas vão mais para as praias algarvias pela noite? E no caso em que temos a casa à sombra das árvores, sejam do jardim ou da mata do vizinho? Há desconto pela redução da “exposição solar”? Alguém disse há muito tempo que “o sol quando nasce é para todos”. Pois é mas a verdade é que nem todos podem pagar o sol nem viver só à sombra…

Esta tentação que os governantes têm de meter a mão no bolso do contribuinte já vem de longe. Vejam lá que “no tempo da outra senhora” criaram uma multa de dois escudos e cinquenta centavos (ou vinte e cinco tostões ou ainda, dois mil e quinhentos reis…) para quem fosse apanhado a andar descalço na via pública, alegadamente para acabar com o “pé-descalço”. Uma mulher pobre de Cristelos foi vista por dois elementos da GNR a atravessar a estrada descalça e chamaram-na para lhe aplicar a dita multa. A pobre coitada, quase se ajoelhou a pedir para a não multarem porque, dizia ela, “eu só rompi a estrada um bocadinho ao atravessar, mas já não a rompo mais”… Ela viu logo que só os descalços é que rompiam a estrada… E, à distância de décadas, que haveria sempre um motivo para se lançar todo o tipo de taxas sobre a utilização (e rompimento) da via pública, quer com o imposto de circulação automóvel, quer com portagens nas SCUTs (que diziam ser sem custos…), quer com todo o tipo de multas alegadamente em nome da segurança.

O governo está atrasado ao taxar a exposição solar e qualidade ambiental. Nos hotéis, os quartos com “vista mar” são mais caros já há muito tempo. Nos teatros e nos concertos, os camarotes sempre foram mais caros que a plateia (que é para a plebe), embora a “música” seja a mesma… Nos estádios, a tribuna e camarotes são mais caros que o peão, embora a “tourada” seja a mesma… E se o governo pode aumentar no preço do IMI só por causa das vistas, eu também estou a pensar montar um restaurante onde, apesar da comida ser igual para todos, tenha três tipos de mesas a que correspondem três tipos de preços. Assim, existirão as mesas normais, aquelas que estão no centro do restaurante com vistas para lado nenhum ou, quando muito, para a parede de um prédio a dois metros de distância. Mas também terei mesas Low Cost e mesas VIP. As Low Cost (que, para quem não for estrangeiro quer dizer “baixo custo”), que terão um desconto de quinze por cento, ficarão em frente de uma vidraça com vistas para uma escola. Dali verá o Passado, sim, o seu Passado, pelo qual já nada pode fazer… As VIP (que, para quem não for estrangeiro, quer dizer para “pessoas muito importantes”), terão um aumento de vinte por cento no preço e serão colocadas em fila, diante de um vidro enorme, de onde se terá uma visão completa do cemitério. São as mais caras porque dali pode ver o Futuro, sim, o seu Futuro. E ao vê-lo, talvez se lembre de fazer alguma coisa por si para que ele chegue o mais tarde possível.. Ou pensa que vai para outro lugar? As vistas dos cemitérios (e do Futuro…) só para o governo é que terão desconto. Será que estão a pensar morrer em breve e com futuro de curto prazo? Eles lá sabem…

Já tinha escrito a maior parte desta crónica quando recebi um email de um amigo dando-me notícia de que um morador e proprietário de um andar em Campolide terá apresentado uma queixa à DECO, ao Provedor de Justiça e às instâncias comunitárias em Bruxelas, por recear que o facto de uma sua vizinha, moradora no prédio frente ao seu, ter por hábito tomar banhos de sol à janela e isso faça com que o fisco lhe passe a cobrar um IMI substancialmente superior, por considerar que a vista de que desfruta é “excepcional”. Com a notícia, remeteu-me também uma fotografia comprovativa da posição pouco convencional da tal mulher à janela, pernas para fora e corpo para dentro. Original, no mínimo… E é natural a preocupação deste cidadão pois, a veia criativa dos governantes não para de nos surpreender na sua febre de taxar tudo (sem austeridade), incluindo o sol, a paisagem e as belezas que o olhar alcança… Não me admirava que, mais dia menos dia, os governantes nos obriguem a andar com um contador, como os de gás natural, para saberem quanto ar consumimos por mês a respirar e juntarem esse consumo na conta da água e esgotos. A conta, é o mal menor. O que me chateia mais é ter de andar com o contador às costas…

A verdade, nua e crua, é dura, muito dura, por mais que nos queiram “dourar a pílula”. Os muitos (des)governos (uns mais que outros) arranjaram-nos uma dívida tal que só pode terminar com bancarrota. E continua, naturalmente, a aumentar, apesar dos pregões… Por isso, a forma de irem vivendo é taxarem tudo. O que se segue? É só uma questão de opção. Deu-se aos funcionários públicos, tirou-se nos combustíveis. Vai-se tapar o buraco da Caixa, tira-se no tabaco, no património, no que lhes passar pela cabeça. É a realidade.

No caso de alguma vizinha me proporcionar “vistas” semelhantes às do homem de Campolide e para não pagar mais IMI, já tenho solução: Vou entaipar as janelas mas, à boa maneira portuguesa, deixo uma frincha disfarçada para espreitar… quando não houver avaliadores das finanças por perto…

A Procissão do Senhor de todos nós…

Fazem parte da minha infância algumas Festas, quando estas eram um momento alto das nossas vidas. As de S. Gonçalo, em Macieira, de onde sou natural, fazem-me recordar o tradicional “macaco de fogo”. As de Sto. Ovídio, em Aveleda, porque era lá que comia as primeiras uvas do ano, vindas não sei de onde. Na feira do gado, todos os anos havia “paulada de criar bicho”. As da Nossa Senhora da Saúde, em Bustelo, porque comi lá muito bons merendeiros levados por não sei quem (anos mais tarde passei a almoçar em casa de amigos. Recordo como era bom o folar que o dr. Mendes trazia lá de cima, da terra natal). As da Senhora Aparecida por ficarmos à beira da estrada (ainda em terra), em Talhos, a ver passar os que iam para a festa, especialmente as rusgas, animados grupos que vinham de longe, a cantar e a dançar, e que ali paravam para se “reabastecer” na pequena barraca da Albertininha. E as Festas Grandes de Lousada. No domingo da festa a minha mãe levava-me para ver a procissão, a que não se podia faltar. Era entalado entre a multidão que se acumulava ao longo das ruas que via desfilar diante dos meus olhos andores e anjinhos mas, sobretudo, o andor do Senhor dos Aflitos. A fechar a procissão, o pálio sob o qual o senhor padre levava a Sagrada Custódia com a Hóstia Consagrada. E à sua passagem, todos nós ajoelhávamos, em sinal de respeito e veneração. Visto à distância do tempo, o povo que se amontoava na berma das ruas fazia como que uma “onda” (semelhante à que se vê hoje nos estádios). Depois íamos até junto dos lavadouros da Vila. A minha mãe estendia a manta sobre a erva onde as lavadeiras coravam a roupa e tirava da cesta a comida para o jantar. O pai tinha comida à parte porque, como trabalhava nesse dia, nunca tinha hora de chegar. À noite, íamos ver o monte iluminado pela luz das tigelinhas.

Agora, enquanto responsável e Irmão de Misericórdia, integro a procissão. Atrás do andor com o Senhor crucifixado, tenho uma visão diferente de quando era criança. E outra percepção dos pormenores. Logo à porta da Capela organiza-se a procissão: O turíbulo, a Cruz da paróquia, juntas e associações, escuteiros, confraria, cruzes e estandartes, os andores e anjinhos, quadros bíblicos, o andor do Senhor dos Aflitos, a Irmandade da Misericórdia, cruz, acólitos e pálio, comissão de festas, bandas de música e fieis. Pum, Pum, Pum… O foguetório anuncia a saída da procissão. E os nove homens que carregam o andor, levantam o Senhor de todos nós, sim, de todos nós porque, hoje ou amanhã, todos somos ou seremos aflitos. E então, vamos lembrar-nos Dele. E avança a Procissão. Quatro bombeiros de cada lado nas suas fardas de gala e machado às costas, fazem a guarda de honra. Pum… mais uma bomba. Lá atrás a banda marca a cadência com uma marcha. Deveria dar o ritmo à procissão, mas esta não anda como um comboio, com as carruagens todas ao mesmo tempo. Para muitas vezes. O avanço é feito em movimentos ondulatórios, ora avança a frente e para a retaguarda, ora faz o contrário, algo que visto de cima seria tal e qual como uma lagarta gigante em movimento. Neste caminhar, as partes ora se aproximam, ora se afastam. E os homens que carregam os andores aproveitam para descansar. Pum… estoira mais uma bomba para anunciar que a Procissão está fora. Junto dos Bombeiros o andor é colocado de frente para o quartel, como se Cristo o quisesse abraçar. Os soldados da paz prestam-lhe homenagem e a sirene toca três vezes. Ao ver de perto, fiquei na dúvida se é uma homenagem dos Bombeiros ao Senhor dos Aflitos ou se é Ele a agradecer-lhes por serem um dos seus braços que socorrem muitos aflitos deste mundo… Pum, Pum… repetem-se as bombas com intervalos regulares. E outra banda marca a cadência do passo só com a tarola até entrar o instrumental, tocando nova marcha. Nas varandas e janelas ao longo das ruas, tal como outrora, veem-se colchas coloridas a enfeitar “o caminho do Senhor”. De algumas delas, cai uma chuva de pétalas de flores sobre o andor do Senhor dos Aflitos. Pum, mais uma bomba. E ao longo dos passeios, ininterruptamente, uma multidão impressionante de pessoas de todas as idades para ver passar a Procissão, numa atitude mais descontraída e menos reverencial que outrora, mas que atesta a realidade da nossa génese religiosa. Pum… E a banda toca mais uma marcha. Aqui e ali há pessoas que fazem o sinal da cruz ao passar o Cristo cruxificado. E, para mais tarde recordar ou para registar o momento, fazem-se muitas fotografias e gravações de imagens com telemóveis, tabletes, máquinas fotográficas… Alguns colocam-se em posições estranhas para conseguirem o melhor ângulo, a melhor imagem. Pum… Mais foguetes. Alguns rapazes ainda seguram o copo de cerveja na mão e um deles dá uma dentada num cachorro quente, antes que esfrie… Ainda estarão a festejar o europeu de futebol? Todas as barracas param de fazer barulho e respeitam a passagem da procissão. Pum, Pum… Desta vez foram duas bombas. Na Santa Casa há uma montra de idosos e colaboradores ao longo do jardim diante do Lar à passagem da Procissão, muitos deles em cadeiras de rodas. E veem o senhor bispo, D. Gilberto, sair debaixo do pálio e do Cortejo para lhes dar a bênção, num gesto raro e surpreendente. Pum, Pum, Pum… Os foguetes e morteiros estoiram no ar, anunciando o regresso do Senhor à Casa onde permanecerá até ao próximo ano, para receber e escutar as preces dos aflitos. Pum, Pum, Pum, Pum, Pum… e o foguetório acaba na girândola.

Houve momentos únicos em que todos aqueles que assistiam à Procissão, sem exceção, levantavam a cabeça ao mesmo tempo e olhavam o Céu… Às vezes, esse gesto era acompanhado por um “AH, AH, AH… E ficavam assim, de cabeça levantada, alguns de boca aberta, até… libertarem a cruz do andor do Senhor dos Aflitos quando ficava preso num dos muitos cabos de eletricidade que atravessam as ruas por onde passava.

Que se saiba, levantamos muitas vezes os olhos ao Céu, quase sempre para pedir. Porque não, também para agradecer???

O caminho faz-se… caminhando

No último dia do longínquo ano de 1963, o paquete Infante D. Henrique que me levava para Angola onde ia fazer o estágio, atracou no Funchal, talvez para me dar tréguas às horas e horas de enjoos na viagem desde Lisboa. Foi a primeira de muitas vezes que haveria de visitar ilha da Madeira, pela qual me apaixonei. Após essa passagem relativamente rápida, em que a memória gravou especialmente a partida do Funchal um pouco antes das doze badaladas do fim de ano e a cascata de luz que já nessa altura dava uma beleza especial à ilha, voltei ali diversas vezes com a Luísa, instalado em hotéis e fazendo os roteiros turísticos crónicos à volta da ilha. Sempre a achei bonita, apesar de fazer os mesmos circuitos e revisitar os mesmos locais. E este ciclo de visitas acabou quando a Luísa adoeceu. Mas, há alguns anos atrás, a Teresa e o Agostinho programaram as férias na Madeira e desafiaram-me para ir ao seu encontro e passar com eles os últimos dias da estadia. Percebi a intencionalidade e simpatia do gesto. Claro que aceitei, sabendo que teria de acompanhar dois caminhantes por vocação e obrigar-me a “dar à perna” pois não haveria circuitos turísticos de “rabo a tremer” em carrito ou autocarro. Os caminhos, seriam outros e as pernas, o meio de transporte. Ponto. Sem preparação prévia, lá fui eu “para o que desse e viesse”. Quando aterrei no Funchal, os quatro (com a irmã e o cunhado) estavam à minha espera e enfiaram-me logo na velha carrinha que tinham levado de barco a partir do Algarve. Carreguei a tralha e arrancaram. A “função” ia começar e nem tive tempo para respirar. “Seja o que Deus quiser”, pensei. Meio desconfiado do que me podia esperar, já ia vestido e calçado para qualquer eventualidade e adivinhei. Para começar, levaram-me para a levada do Caldeirão Verde. Coisa pouca, seis quilómetros e meio de caminhada. Para lá. Mas, como a intenção não era ficar a dormir no final da levada, tínhamos de regressar pelo mesmo caminho. Mais seis quilómetros e meio, para cá. Foi o batismo, com “padrinhos” muito simpáticos e prestáveis, e tudo o mais. E nesse tudo estava incluída uma paisagem de cortar a respiração, um outro ângulo para ver a ilha, uma faceta extraordinária que desconhecia. Só visto. Mesmo com os ténis que comprara para o efeito mas que me apertaram os pés ao ponto de não voltar a usá-los. Treze quilómetros de prazer, serenidade, encontro connosco. Pelo meio, uma merenda ligeira e líquidos, muitos líquidos. A carrinha levou-nos depois para o “Hotel”, feito tenda no parque de campismo de Porto Moniz. “Hotel de luxo” com vista direta para as estrelas e jantar fora… da tenda.

Haveria de voltar com eles à Madeira para fazer outras caminhadas, uma delas do Pico do Areeiro ao Pico Ruivo que me deixou “de gatas”, uma montanha russa montada nas nuvens com paisagens de cortar a respiração. Só fiz a ida porque a volta “deixei-a” toda para eles (irem buscar o carro e recolherem-me feito desistente). Mas é uma outra maneira de ver a ilha da Madeira, única, algo que se deveria ter de fazer uma vez na vida. E tive o privilégio de fazer com eles outras caminhadas, a outros lugares especiais para usufruir de coisas e belezas que de outra forma nunca conheceria. Lá, no local, à chuva ou ao sol. Poder ver urzes centenárias de formas únicas, um sem fim de vegetação, aves lindas. E na Madeira, conhecer essa obra ímpar das levadas, construídas em escarpas onde seria impensável fazê-lo, uma obra de arte do Homem numa paisagem maravilhosa de Deus.

Gosto de caminhar, sinto-me bem, dá-me prazer. Não o faço tantas vezes quanto gostaria, umas vezes por preguiça ou desculpas esfarrapadas, outras porque não. Como na vida, as caminhadas são muito mais fáceis e agradáveis com companhia. Por alguma razão a vida e a existência humana são muitas vezes descritas como um caminho. Talvez por a vida ser um espaço de tempo que temos de trilhar, com subidas e descidas, muitos obstáculos mais ou menos difíceis, que nos abatem ou fazem felizes. E nesse caminho há etapas a vencer, metas para alcançar, paisagens que devemos usufruir. Sim, porque o importante da caminhada não é o ponto de partida nem sequer o da chegada, mas o caminho, todo o caminho e cada momento.

Muitos dos percursos e das levadas que a Madeira tem para nos oferecer, começam ou acabam numa queda de água, num pico, num lugar. Mas, se estamos à espera de chegar ao final da levada para admirarmos a beleza do objetivo alcançado, estamos enganados pois perdemos o essencial ou seja, o encanto do caminho onde havia borboletas e pássaros, flores e árvores, água e céu, montanha e escarpas, silêncios e canto de aves, harmonia e beleza, todo um mundo de pinturas e desenhos que saíram diretamente da mão de Deus. Ao estarmos focados no objetivo final, esquecemos o essencial e não vimos, nem nos apercebemos que existia…

Na caminhada, tal como na vida, os amigos são uma dádiva, uma ajuda para ultrapassar obstáculos, um estímulo para seguirmos em frente quando tudo nos quer fazer desistir, uma lanterna para os túneis, uma companhia para os momentos de alegria e de tristeza. E as pedras e os obstáculos, são muito mais importantes do que o terreno plano porque é com elas que aprendemos mais, crescemos mais, nos fortalecemos mais. Por isso, caminhe seja onde for, na Madeira ou na vida, mas caminhe. Porque, como dizia o poeta castelhano António Machado, “o caminho faz-se caminhando”…

No último dia do longínquo ano de 1963, o paquete Infante D. Henrique que me levava para Angola onde ia fazer o estágio, atracou no Funchal, talvez para me dar tréguas às horas e horas de enjoos na viagem desde Lisboa. Foi a primeira de muitas vezes que haveria de visitar ilha da Madeira, pela qual me apaixonei. Após essa passagem relativamente rápida, em que a memória gravou especialmente a partida do Funchal um pouco antes das doze badaladas do fim de ano e a cascata de luz que já nessa altura dava uma beleza especial à ilha, voltei ali diversas vezes com a Luísa, instalado em hotéis e fazendo os roteiros turísticos crónicos à volta da ilha. Sempre a achei bonita, apesar de fazer os mesmos circuitos e revisitar os mesmos locais. E este ciclo de visitas acabou quando a Luísa adoeceu. Mas, há alguns anos atrás, a Teresa e o Agostinho programaram as férias na Madeira e desafiaram-me para ir ao seu encontro e passar com eles os últimos dias da estadia. Percebi a intencionalidade e simpatia do gesto. Claro que aceitei, sabendo que teria de acompanhar dois caminhantes por vocação e obrigar-me a “dar à perna” pois não haveria circuitos turísticos de “rabo a tremer” em carrito ou autocarro. Os caminhos, seriam outros e as pernas, o meio de transporte. Ponto. Sem preparação prévia, lá fui eu “para o que desse e viesse”. Quando aterrei no Funchal, os quatro (com a irmã e o cunhado) estavam à minha espera e enfiaram-me logo na velha carrinha que tinham levado de barco a partir do Algarve. Carreguei a tralha e arrancaram. A “função” ia começar e nem tive tempo para respirar. “Seja o que Deus quiser”, pensei. Meio desconfiado do que me podia esperar, já ia vestido e calçado para qualquer eventualidade e adivinhei. Para começar, levaram-me para a levada do Caldeirão Verde. Coisa pouca, seis quilómetros e meio de caminhada. Para lá. Mas, como a intenção não era ficar a dormir no final da levada, tínhamos de regressar pelo mesmo caminho. Mais seis quilómetros e meio, para cá. Foi o batismo, com “padrinhos” muito simpáticos e prestáveis, e tudo o mais. E nesse tudo estava incluída uma paisagem de cortar a respiração, um outro ângulo para ver a ilha, uma faceta extraordinária que desconhecia. Só visto. Mesmo com os ténis que comprara para o efeito mas que me apertaram os pés ao ponto de não voltar a usá-los. Treze quilómetros de prazer, serenidade, encontro connosco. Pelo meio, uma merenda ligeira e líquidos, muitos líquidos. A carrinha levou-nos depois para o “Hotel”, feito tenda no parque de campismo de Porto Moniz. “Hotel de luxo” com vista direta para as estrelas e jantar fora… da tenda.

Haveria de voltar com eles à Madeira para fazer outras caminhadas, uma delas do Pico do Areeiro ao Pico Ruivo que me deixou “de gatas”, uma montanha russa montada nas nuvens com paisagens de cortar a respiração. Só fiz a ida porque a volta “deixei-a” toda para eles (irem buscar o carro e recolherem-me feito desistente). Mas é uma outra maneira de ver a ilha da Madeira, única, algo que se deveria ter de fazer uma vez na vida. E tive o privilégio de fazer com eles outras caminhadas, a outros lugares especiais para usufruir de coisas e belezas que de outra forma nunca conheceria. Lá, no local, à chuva ou ao sol. Poder ver urzes centenárias de formas únicas, um sem fim de vegetação, aves lindas. E na Madeira, conhecer essa obra ímpar das levadas, construídas em escarpas onde seria impensável fazê-lo, uma obra de arte do Homem numa paisagem maravilhosa de Deus.

Gosto de caminhar, sinto-me bem, dá-me prazer. Não o faço tantas vezes quanto gostaria, umas vezes por preguiça ou desculpas esfarrapadas, outras porque não. Como na vida, as caminhadas são muito mais fáceis e agradáveis com companhia. Por alguma razão a vida e a existência humana são muitas vezes descritas como um caminho. Talvez por a vida ser um espaço de tempo que temos de trilhar, com subidas e descidas, muitos obstáculos mais ou menos difíceis, que nos abatem ou fazem felizes. E nesse caminho há etapas a vencer, metas para alcançar, paisagens que devemos usufruir. Sim, porque o importante da caminhada não é o ponto de partida nem sequer o da chegada, mas o caminho, todo o caminho e cada momento.

Muitos dos percursos e das levadas que a Madeira tem para nos oferecer, começam ou acabam numa queda de água, num pico, num lugar. Mas, se estamos à espera de chegar ao final da levada para admirarmos a beleza do objetivo alcançado, estamos enganados pois perdemos o essencial ou seja, o encanto do caminho onde havia borboletas e pássaros, flores e árvores, água e céu, montanha e escarpas, silêncios e canto de aves, harmonia e beleza, todo um mundo de pinturas e desenhos que saíram diretamente da mão de Deus. Ao estarmos focados no objetivo final, esquecemos o essencial e não vimos, nem nos apercebemos que existia…

Na caminhada, tal como na vida, os amigos são uma dádiva, uma ajuda para ultrapassar obstáculos, um estímulo para seguirmos em frente quando tudo nos quer fazer desistir, uma lanterna para os túneis, uma companhia para os momentos de alegria e de tristeza. E as pedras e os obstáculos, são muito mais importantes do que o terreno plano porque é com elas que aprendemos mais, crescemos mais, nos fortalecemos mais. Por isso, caminhe seja onde for, na Madeira ou na vida, mas caminhe. Porque, como dizia o poeta castelhano António Machado, “o caminho faz-se caminhando”…