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A cabeça da pescada

Hoje comi uma cabeça de pescada cozida “com todos”, um dos meus pratos favoritos, se bem que, para tirar o maior partido do repasto, obrigo-me a dispor do tempo que for preciso para cumprir todo o ritual. Tudo começou ontem quando fui ao supermercado. Aquelas pescadas frescas (pensamos nós e dizem-nos eles, até porque estão no gelo …) e grandes, foram uma tentação a que não resisti (deixem-me ser sincero: como qualquer bom português, a maior tentação foi a excelente promoção, pois estavam a pouco mais de metade do preço). Pedi para a prepararem logo ali e para cortarem a cabeça “com gola”, um “pescoço comprido” como se lhe viesse agarrada uma boa posta. Dá imponência à cabeça e desafia-me o apetite, além de fornecer uns bons pedaços do lombo, bem precisos para não ficar com fome. É que, as espinhas, não enchem pança. Para começar a função do meu ritual começo por tirar a gema dum ovo cozido, esmaga-la no prato e fazer o molho amarelo com muito azeite, vinagre tinto caseiro, alho e sal. É com esse molho que vou temperando batatas, pedaços de pescada, couve, cenoura e cebola, para lhes dar o meu “gostinho especial”. Então, com muita calma e paciência, vou comendo um pouco de cada um dos componentes e usufruindo da cabeça da pescada, espinha a espinha, “à unha” (como o Zé da Cunha) sem cerimónias, para poder “chuchá-las” bem. Em regra, acabam todos de almoçar muito antes de mim, mas já sabem que eu continuo até porque a demora faz parte do ritual. 

Não sei a que se deve este meu gosto, mas penso que é pelo facto de ter nascido ainda no decorrer da segunda guerra mundial e ter sido marcado pela falta de alimentos, o que me obrigou a valorizar cada bocado de comida, muito especialmente se se trata de carne ou peixe, por serem raros. E era por isso que se fazia o aproveitamento integral do peixe, de que sobravam somente as espinhas, depois de estarem “limpas”. Aliás, o que se passava com a pescada também acontecia com a carne. Prefiro as partes com ossos, como é o caso das costelas ou dos “ossos de assuã”.

Enquanto comia a cabeça de pescada, dei comigo a pensar que não conheço nenhum jovem que tenha este prazer, tal como não encontro um que goste da carne com osso ou gordura. Será que os excessos a que estão habituados os levaram a escolher o mais fácil de comer – a febra de carne, sem nada de osso? Será por terem sido “formatados” pela “macdonald’s” e “pizza hut” através de publicidade agressiva e continuada? Será porque cedo impuseram aos seus aquilo que só queriam comer sem que os pais fossem capazes de os educar com “boa boca” e a comer de tudo? 

Contra mim falo, que cedi, como toda a gente. É assim que os “nossos meninos” hoje só comem alguns pratos do cardápio, alegando que “não gosto de peixe porque tem espinhas”, apesar da mamã se dispor a retirá-las uma a uma, ou “não gosto de rojões porque têm gordura” ou “não gosto de sopa porque…”

Há dias, uma senhora contava-me muito chocada que, no infantário da sua aldeia, onde trabalha, uma grande parte dos “paizinhos” vai buscar os filhos à hora do almoço para irem comer a casa. E não ficam para almoçar no infantário por uma única razão: as criancinhas não querem comer sopa e até dizem porquê. ”É enjoativa”, desculpam-se elas. “Porque… é sopa”. Ora, como é que “aquelas” crianças, apesar de ainda andarem no infantário, já têm idade para saber o que querem e o que não querem e o que é melhor para elas? É surpreendente que, com tão tenra idade, já tenham adquirido personalidade suficiente para se imporem ao pessoal que trabalha no infantário. E os papás e as mamás, como submissos que são ante o “quero, posso e mando desses pequenos ditadores”, acatam e fazem com que a sua vontade seja cumprida. É que os pais não querem, não podem e não as sabem contrariar. “Deus me livre” dizia um paizinho. “Ficam traumatizadas para o resto da vida”. Dizer-lhes “Não” ou “Vais ter de comer a sopa”, está fora de questão. “É uma violência que não é educativa”, dizem.

Já me tenho visto na cozinha de algumas pessoas onde, quase por norma, é preciso fazer quase diariamente um prato diferente para o menino ou a menina, porque “não gostam”, “não querem”, “isso faz engordar” ou uma outra desculpa esfarrapada qualquer. É que comer a refeição normal de casa é um castigo e está fora de questão. Todos os dias se pergunta ao “pequeno ditador” o que é que ele quer comer. “Um bife com batatas fritas”, quando não um hambúrguer. “Sopa”? Nem pensar … E já agora, porque não ir ao Macdonald’s ou à Pizza Hut satisfazer o desejo de “quem manda”? E já nem falo na comida que fica no prato, como desperdício de um bem valioso que falta a muita gente, com a bênção dos papás. Incapazes de se imporem aos “infantes”, o que se pode esperar deles quando tiverem de os educar quando já adultos?

No Japão, num restaurante de “sel-service”, cada um só se serve com aquilo que vai comer. Só. E comem tudo, sem deixar comida no prato à boa maneira portuguesa. Nenhum alimento pode ser desperdiçado. E não é. Aliás, na educação japonesa, as crianças limpam as suas escolas todos os dias durante quinze minutos, juntamente com os professores, que levou ao aparecimento de uma geração de japoneses entusiasta da limpeza. Se por cá pusessem os meninos (e meninas) a limpar a escola, “caíam-lhes os parentes na lama” e os professores “estavam feitos ao bife” com as crianças, mas muito pior, com os familiares … Por isso, vamos criando a “ganapada” sem regras nem respeito pelas pessoas, pelos alimentos, pelo meio ambiente, pela lei e por tantas outras coisas. E depois queremos adultos responsáveis …

Vida de melros e do “Macaco Nu” …

Os melros já há muitos anos se instalaram nos terrenos cá de casa sem sequer me pedir autorização. E, por mim, ainda bem. Ora, alguns foram tomando conta do jardim e fizeram dele o seu território onde são reis e senhores e se impõem aos outros da sua espécie. Fico feliz por escolherem o meu jardim, até porque o melro-preto faz parte da minha infância e, diga-se, da minha cultura. Conhecia-lhe os hábitos, descobria-lhes os ninhos para retirar algum filhote pois, nesse tempo distante, na aldeia era comum ter-se um melro em casa, numa gaiola mais ou menos improvisada. E alguns cantavam maravilhosamente. Recordo-me especialmente de um que o Tónio, empregado da minha avó, criara desde muito pequeno e que reproduzia com perfeição tudo aquilo que ele lhe assobiava, inclusive a música do “Avé Maria” cantada nas celebrações de Fátima. Aqui, todos os anos fazem o ninho numa das sebes ou entre a hera da palmeira, para abrigar os filhotes, garantir a reprodução e assegurar as futuras gerações. É para isso que acasalam e copulam.

Quando hoje estava a olhar o jardim, vi um lindo macho de bico amarelo a fazer a corte à fêmea. O melro eriçava as penas do corpo, fazia uma curta corrida sobre o muro de vedação e parava. E voltava a repetir a cena novamente, à espera de um sinal da sua “namorada”. Entretanto, a jovem fêmea permanecia imóvel no ramo duma árvore ali próxima e assistia às exibições de conquista do candidato a acasalar. E, às tantas, levantou a cabeça e a cauda em sinal de aceitação do pretendente, permitindo que este avançasse para a cópula. A conquista estava feita e a relação foi consumada em poucos segundos.

A evolução humana é entusiasmante, levando o homem a fazer coisas julgadas impossíveis há poucos anos. No entanto, este corre um sério risco de se deslumbrar com tudo o que conseguiu. E, na ilusão desse deslumbramento, esquecer-se que, na sua essência, não passa de um animal. E, apesar de animal especial, tem as necessidades básicas de qualquer outro, precisando também de urinar e coçar-se como outro animal qualquer. Vendo os melros no jardim na fase de acasalamento, lembrei-me de Desmond Morris ao analisar o homem como animal, para ele um “símio nu”. Quando este zoólogo descreve os rituais de acasalamento do homem, divide esse período em três fases: formação de par, pré-copulatória e copulatória. A primeira fase é aquela a que vulgarmente chamamos “namoro”, a segunda é a fase do noivado e a terceira o casamento propriamente dito. No entanto, temos de nos situar no tempo pois o seu livro foi escrito há mais de cinquenta anos e com um contexto social bem diferente dos dias de hoje. Vivi esse tempo em que as regras de cada fase eram bastante rígidas e formais, de tal forma que, sempre que eram ultrapassadas, aguentava-se com as consequências.

Ora, nestes cinquentas anos ou mais, já o mundo deu muitas voltas, aconteceram demasiadas revoluções e até já se discute com vigor o que é um casal e, em consequência, o que é o acasalamento. E, à luz do que é a prática de acasalamento do tal “Macaco Nu” nos nossos dias, inverteram-se completamente as fases em que Desmond Morris dividiu esse período. Os relacionamentos de hoje já começam pela “cópula”, aquela que seria a última fase. Esse passou a ser “o objetivo” imediato do primeiro encontro. Haverá continuidade e segunda fase? Depois se verá. No caso de haver segundo encontro, talvez resolvam tentar a fase “pré copulatória”, que de “pré” já não terá nada, despida de compromissos, “na desportiva”. E se as coisas se proporcionarem, pode ser que, alguns anos mais tarde, passem à “formação do par” … Este é o “novo normal”.  

E tudo isto vem a propósito de algumas imagens que correram pelo mundo das redes sociais, recolhidas “nas noites de farra” da Queima das Fitas do Porto. Nas palavras do jovem universitário que filmou e me mostrou no visor do seu telemóvel algumas cenas “bem pouco edificantes”, aquilo era uma pequena amostra do que se podia ver “ao vivo e a cores” no recinto da festa ao longo da noite e à medida que o álcool “encharcava” por completo os corpos dos “festivaleiros” que, naquele estado, não tinham sequer noção do que era ou não diversão. Segundo o relato, o cúmulo acontecia numa das barracas de bebidas onde a malta que por ali passava se deixava “corromper” com a oferta de um ou dois “shots”, desde que aceitassem fazer uma “cena sexual” provocatória e anormal. E, segundo rezam as crónicas, as “exibições” eram todas filmadas, não só por aqueles que “armaram a barraca” como por qualquer mirone com um simples telemóvel, podendo lançá-las nas redes sociais com toda a naturalidade, como foi o caso. E, de repente, alguns jovens “acordaram expostos a nu” em situações degradantes, nalguns casos sem terem nenhuma recordação do que se passou por estarem completamente inconscientes à beira do coma alcoólico, como atores péssimos de um filme pornográfico ordinário, mas muito mediatizado e fazendo passar para o exterior a sensação de que aquela festa é uma orgia coletiva que, penso eu, não é. 

Não sei qual será a reação dos pais de hoje ao verem no Instagram a sua filha estendida sobre o balcão de um bar, “em pelo” como veio a este mundo, com os “buracos naturais” a servir de “copo” onde um e outros jovens ébrios “bebem um shot à borla”, dividido “boca a boca” com a “dona do copo”. Será um choque? Ou, pelo contrário, motivo de orgulho por a filha ter virado “artista de cinema”? E que reação terá aquela jovem ao ver-se olhada de lado pelos outros, entre sorrisinhos escondidos sem saber porquê, até que “uma alma caridosa” a avise e faça ver as imagens divulgadas pelas tais redes sociais mundo fora, filmada de “vários ângulos” naquela “triste figura”? Será que vê nisso motivo de orgulho, para melhorar o “currículo pessoal” e a sua vida de libertinagem ou “cai na real” e percebe a vergonha da exposição pública em situação pouco abonatória, o que pode levá-la à depressão e ao isolamento por vergonha?

No acasalamento dos melros o que era normal há cinquenta ou cem anos, continua a sê-lo, com os mesmos rituais, os mesmos objetivos. Pelo contrário, com o “Macaco Nu”, na sua permanente insatisfação, tudo o que era normal ficou fora de moda, o que era comum passou a ser “ultrapassado” e só o que é chocante vende. As orgias desceram à praça pública e a libertinagem ganha asas e voa. Já nem se trata de uma questão de imoralidade, mas de total ausência dela …    

“Dou a minha palavra de honra …

Nas palavras do brasileiro Anderson Senna, “a confiança é igual a virgindade. Só se perde uma vez”. Por isso, para se ser merecedor de confiança, é preciso saber honrar os compromissos, as promessas e ações. Era isso que faziam aqueles a quem outrora o povo chamava “Homens de Honra”. Da infância à adolescência, convivi com alguns homens de negócio e assisti a acordos verbais, “selados” com um simples aperto de mão. E os dois ficavam “presos” à sua “palavra”, porque era tida como “palavra de honra”. E a “honra”, esse princípio do ser humano que age com base em valores como a honestidade, dignidade e outros socialmente virtuosos, era coisa que ninguém queria perder. Como a virgindade.  Acompanhei um negócio que, algumas horas depois, se revelaria desastroso para o comprador. Mas ele quis honrar a palavra dada e cumpriu o acordado sem sequer solicitar ao vendedor qualquer alteração à transação. E, apesar de ter argumentos para o fazer … tinha dado a sua “palavra de honra”.

Os meus primeiros negócios de compra e venda de propriedades foram concluídos e selados com o tradicional aperto de mão, sem qualquer contrato escrito. Seguia o princípio em que fui formatado e tudo correu bem, pois sempre cumpri e cumpriram o acordado. Quando nos anos setenta começaram a surgir em Portugal os perfis de alumínio para caixilharias, através de um familiar meu conheci um grande importador de então que estava sediado em Lisboa e que me convenceu a abrir um armazém desse material em Lousada, numa oportunidade única. Decidido a avançar, procurei terreno adequado para construir o pavilhão e encontrei-o em local bem situado na vila. O vendedor, o homem que à época mais terrenos comprava e vendia na zona, marcou encontro comigo no local. Numa grande área de que era proprietário, marcamos uma parcela com a dimensão necessária, acertamos o preço e passei-lhe logo um cheque. Apertei-lhe a mão e, quando estava a virar-me para ir embora, ouvi-o dizer: “Espere um instante que vou dar-lhe um cartão a dizer que recebi este dinheiro”. E, enquanto tirava da carteira um cartão, respondi-lhe que não. Não era necessário. Mas ele insistiu e, nas costas do cartão de visita com o seu nome, escreveu: “Recebi duzentos contos pela compra de um terreno”. Assinou e entregou-mo. Para minha surpresa, ao outro dia, sofreu um AVC e foi a enterrar poucos dias depois. Aquele pequeno cartão foi a minha tábua de salvação, perante um familiar ranhoso e desconfiado, que questionou tudo e mais alguma coisa, insinuando e pondo em dúvida o teor do negócio. Só quando lhe disse que, não tendo eu querido aquele cartão, a verdade é que nele estava explícito que lhe comprara um terreno e lhe entregara duzentos contos. E, das duas uma: ou confiava em mim para saber qual o terreno e os termos do negócio ou me devolvia o dinheiro. Era um problema dele. Foi o meu primeiro sinal de que as coisas estavam a mudar. O aperto de mão já não era suficiente … 

Um pouco antes de falecer, o meu pai teve uma boa conversa comigo. Entre outras coisas, aconselhou-me a documentar-me bem sempre que efetuasse um negócio. Para não acreditar só na palavra. Já não era suficiente. E contou-me alguns casos em que o enganaram e teve prejuízos consideráveis, com “amigos” em quem confiara. Um deles, a quem vendera um negócio no início que viria a revelar-se altamente rentável, e que até era tido como seu “amigo”, nunca lhe pagou nada do acordado. Nem quando atingiu o estatuto de rico …

A partir de certa altura passei a formalizar os contratos promessa de compra e venda a partir duma minuta preparada pelo advogado e, sempre que fazia um acordo verbal selado com aperto de mão, nunca aceitava a entrega de sinal, em dinheiro ou cheque, sem preparar e assinar o respetivo contrato e onde constava o valor recebido. Dizia como argumento, com base no que me acontecera, que “há o viver e o morrer” … Já eram contratos formais, se bem que nem sempre com o rigor dos pormenores em que só os juristas são entendidos.

Passaram os anos, atravessamos o “deserto” de uma crise violenta e a realidade de hoje já nada tem a ver com os tempos da minha infância. De tal maneira, que me traz à memória o filósofo da Grécia Antiga Diógenes de Sinope, mais conhecido por Diógenes, o Cínico. Andava pelas ruas carregando uma lamparina acesa durante o dia, alegando estar à procura de “um homem honesto”. E o meu desencanto com a extinção quase total da “palavra de honra” como valor importante da sociedade, num desprezo por compromissos assumidos, já não é só apanágio dos contratos verbais selados com o aperto de mão, mas de todo o tipo de contratos. Hoje, mais do que nunca, tem uma enorme atualidade a velha máxima de que qualquer contrato deve ser feito “como se os intervenientes fossem inimigos, para virem a ficar amigos”. É que, basearmos a nossa confiança no velho aperto de mão ou mesmo num contrato simples, é correr um risco sério de, mais dia menos dia, virmos a “ser comidos por lorpas”. E sei do que falo por experiência (má) própria, com gente de quem nunca me passou pela cabeça que pudesse ser tão desonesta, no verdadeiro sentido literal da palavra e de quem não me acautelei em devido tempo.

Não deixa de ser curioso que, ao fim destes anos de vida, tenha sido entre pessoas com muito dinheiro ou tidas por ricas e até alguns a quem o povo ainda chama “fidalgos” (se bem que essa dita fidalguia deve ter caído na lama, para não dizer na m. há muito tempo), que encontrei os maiores vigaristas e desonestos. Confiar nalguns deles sem me precaver convenientemente, foi um erro que me custou e continua a custar, muito dinheiro e consumições. Pelo contrário, tendo efetuado muitas transações com pessoas simples e humildes, nunca me trouxeram qualquer dissabor. Foi com muitos desses que selei acordos com um simples aperto de mão, à moda antiga, sem nunca faltarem ao prometido. 

Por isso, se tem algum contrato para fazer, arranje um bom advogado e previna-se porque, mesmo assim, está sujeito a encontrar um vigarista encartado pela frente por mais engravatado que esteja e acaba esfolado como um pato. Se não quer acreditar, veja o caso do Joe Berardo, que tem “a lata” de dizer em público que não deve nada aos bancos … E, se calhar, sem ter razão nenhuma, a justiça vai ter de lhe dar razão …

Não deixa de ser curioso que para as pessoas humildes a “palavra de honra” ainda continua a contar. Só que não é para toda a gente …

Todas as profissões são respeitáveis

Se eu fosse um jornaleiro, gostava que respeitassem o meu trabalho, a minha pessoa, a minha condição. Não gostava de ser ignorado, tido por “coitadinho” ou “um pobre diabo”. Já trabalhei lado a lado com jornaleiros durante horas, dias, semanas e meses, com quem aprendi muito e que me mereceram sempre o maior respeito. Porque foram competentes, responsáveis e dedicados ao seu trabalho, coisa que nem sempre tenho visto noutros trabalhadores de outras profissões tidas por “mais importantes”, sociavelmente mais aceites. Para além do respeito que lhes era devido, tiveram sempre a minha confiança. Porquê? Porque o trabalho do jornaleiro, da empregada doméstica, do trolha ou do lavador de pratos é tão digno como qualquer outro.

Mas, para a sociedade, não é assim. Penaliza, ignora e ridiculariza algumas profissões, a tal ponto que, para lhes retirar esse estigma, muda-lhes o nome. Como se tivesse alguma coisa de ofensivo num “caixeiro”, mudou-se o nome para “empregado de balcão” e agora é moda chamar-se “agente de vendas”. No caso da atual “empregada doméstica”, já foi chamada de “serviçal” e, antes disso de “criada”. A “telefonista” virou “assistente operacional”, o “vendedor” urbanizou-se como “técnico de vendas” e a “empregada de escola” passou a ser “auxiliar de ação educativa”. Mas muitas mais se transfiguraram nos nomes, se bem que aquilo que fazem efetivamente em nada tenha mudado na maioria das vezes. Em muitos casos, fugiu-se ao estigma para o voltar a apanhar alguns anos mais tarde. Mas o povo diz que, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas” …

A senhora trabalhava em algumas casas como empregada doméstica, dando horas aqui e ali para fazer face aos encargos da família. Logo no segundo dia numa das casas, quando entrou ao serviço a patroa mandou-a limpar a cozinha. E, mal deu a ordem, saiu porta fora como quem tem pressa de chegar a qualquer lado. Mal entrou na cozinha para fazer o trabalho, apercebeu-se de imediato de que, em cima da tampa do fogão, estavam espalhados vários anéis e outros objetos em ouro. Embora humilde, a empregada pressentiu que a patroa estava a testar a sua honestidade, até pela forma como saiu de casa a correr e a quis deixar à vontade e verificar se iria aproveitar a oportunidade para “dar o golpe”. Procedeu como a dona da casa ordenou e fez o serviço completo, limpando a cozinha de alto a baixo. Mas deixou a tampa do fogão com os objetos tal como estavam, sem lhe pôr a mão. Mal a patroa regressou, dirigiu-se-lhe e disse: “Minha senhora, a sua cozinha já está limpa. Já agora, tem aqui o pano para a senhora limpar o pó da tampa do fogão, porque não lhe ponho as mãos, para não vir a dizer que eu roubei o que quer que seja”, enquanto lhe foi passando para a mão o pano de limpeza. A patroa percebeu o erro que cometeu e pediu desculpa, alegando que “a gente não sabe em quem confiar hoje em dia e foi por isso que a quis testar”. Mas a reação daquela mulher ofendida, foi firme, lembrando-lhe que estava a desconfiar da sua seriedade à partida, sem que ter qualquer motivo para o fazer. E despediu-se naquele momento.

Seria caso para lhe perguntar: “Se fosse um professor de música que fosse lá a casa dar aulas de piano ao filho também lhe colocava as peças de ouro em cima do teclado para o testar”? Ou nesse já confiava por ser músico? Quer dizer que há profissões que estão na lista das “confiáveis”, ainda que alguns sejam ladrões, enquanto outras não são nada de confiar, mesmo que só tenham profissionais sérios? É uma questão de juízos prévios, de gente “condenada” sem que haja crime nem tão pouco julgamento. Ou melhor, discriminada pela profissão que exerce …

Há empregadas domésticas desonestas? Há, ninguém o pode negar. Mas, em todas as profissões há gente séria e gente desonesta. Em todas. E não vale a pena armarmo-nos em “virgens ofendidas”, como se isso não fosse uma realidade deste mundo. Daquele em que nós vivemos no dia a dia. Mas só não vê quem não quer. No entanto, isso não nos impede de trabalhar todos os dias com empreiteiros, trolhas, advogados, carpinteiros, jardineiros, banqueiros, políticos, artistas, sapateiros, carpinteiros, sapateiros, etc. 

Nenhum de nós “testou” a honorabilidade dos banqueiros do BES, BPN, BPP e Banif antes de lhes confiar o dinheirinho que tanto custou a ganhar. Ou testamos? Espalhamos algumas moedas em cima do balcão para ver se eles as metiam ao bolso sem darmos conta? Que eu saiba, ninguém o fez. Confiamos. E fomos roubados à descarada. Então, porque não se dá a mesma oportunidade à empregada doméstica, confiando e esperando para ver se é merecedora dessa confiança? Por ser isso: “empregada doméstica” e não “banqueiro”? Por se vestir com roupa humilde e não aparecer “encanada” num fato italiano feito por medida? Fui roubado (e de que maneira) por alguns empreiteiros e advogados e isso não é motivo para questionar à partida a seriedade dos outros …   

Quando aquela jovem e mãe entrou na casa da patroa, professora já aposentada, estranhou por não a ver na sala como era habitual, para controlar descaradamente a sua hora de entrada ao serviço e poder descontar mais tarde um eventual atraso de mais de cinco minutos. Sentiu-lhe o barulho dos passos no andar. Quando ia vestir a bata, ao passar na lavandaria, viu estendido sobre a máquina de lavar um ror de dinheiro, tudo notas de vinte euros dispostas em leque e sentiu-se humilhada na sua dignidade. Revoltada, subiu as escadas e dirigiu-se à patroa: “A senhora tem um maço de notas em cima da máquina de lavar. Deve tirá-las imediatamente, porque está a querer pôr a minha honestidade em causa. E faça o favor de as contar, para ver que eu não retirei nenhuma”. A professora, com ar de fingido esquecimento, respondeu: “Oh, já nem me lembrava desse dinheiro”. “Já agora, para não se esquecer, faça as minhas contas porque não posso continuar a servir numa casa onde desconfiam de mim”, rematou a empregada …

Não soube destes dois casos pela televisão, pelos jornais nem sequer através das redes sociais. Não. Nem se passaram lá longe, onde até parece que não nos diz respeito. Não. Pelo contrário. Ouvi-os eu aqui relatados de viva voz por gente humilde desta Lousada com os olhos marejados de lágrimas. E com razão. Porque foram provocatórios, chocantes, ofensivos. Um atentado à dignidade a que qualquer pessoa tem direito. 

E é de uma injustiça tremenda que alguém tenha de estar sujeito a esta hipocrisia, numa discriminação mal encapotada e vergonhosa, que só desonra quem a pratica … 

Pequenas misérias do ser humano…

A Terra é habitada por numerosas espécies de animais. Nós somos mais uma, aquela a quem Desmond Morris chamou “o Macaco Nu”. O protagonista principal, quase sempre pelas piores razões. Mas isso é outra história. Balzac escreveu a “Comédia Humana” sobre grandeza e miséria da condição humana, obra imensa de histórias de costumes onde a aparência é tudo. Mudaram-se os tempos e de que maneira. Mas se Balzac fosse nosso contemporâneo, continuava a ter inúmeras pequenas e grandes misérias para contar sobre o tal “Macaco Nu”, algumas delas trazidas à luz do dia e divulgadas pelas notícias a uma velocidade vertiginosa.

Nos absurdos do nosso mundo, encontra-se o que ocorreu há pouco tempo no Reino Unido. Um milionário saudita foi acusado de violar uma jovem de 18 anos. Na sessão do julgamento, que durou apenas 30 minutos, o réu alegou que “caiu em cima da jovem e penetrou-a acidentalmente”. E isso foi o suficiente (se é que não houve mais nada por fora) para o ilibar e sair absolvido. Ao ler esta notícia, imaginei como seria a cena do “acidente”: o milionário a passear pela sala de “arma em riste”, à cata de um possível “ladrão”. Ao passar entre os móveis, tropeça no tapete, cai direito como uma estátua sobre o sofá, sempre “de arma apontada”, onde estava “acidentalmente” a “vítima descascada e de papo para o ar”. E, “inexplicavelmente”, o “cano da arma” encaixou perfeitamente “na cova do ladrão”, sem necessidade de ajustes. Daí ter sido, como ele disse, uma “penetração acidental”. Presume-se que ele, como cavalheiro respeitoso, terá feito “marcha atrás”. Mas a “cova” era tão agradável, que ele voltou a “entrar”. E ali ficou, indeciso entre o sair e entrar, num vai e vem que só terminou quando já não podia mais. Francamente. Só as pessoas de má índole não acreditam que aquilo foi um “acidente”. E que “acidente” …

Mas os “acidentes” do foro sexual são vulgares, às vezes bizarros e até originais. É que o ser humano tem “necessidades” que o obriga a “pôr-se a jeito” e às vezes é apanhado com “as calças na mão”. Assim,

naquele dia o serviço de urgências do hospital tinha poucos doentes e a maioria das cadeiras na sala de espera estavam vagas. Por isso, o enfermeiro estranhou ver um homem muito irrequieto, andando de um lado para o outro em grande agitação. Quando se aproximou dele e o aconselhou a sentar-se, o homem recusou e continuou a circular pela sala, como se estivesse ligado à corrente. O enfermeiro só viria a perceber a razão da sua “instabilidade” quando ele foi atendido pelo médico e lhe teve de explicar o seu “problema”. Segundo o “doente”, quando estava a “brincar com um vibrador”, este “escapou-se-lhe da mão” e entrou-lhe pelo ânus dentro “sem pedir licença”, penetrando pelo intestino acima “em contramão”, isto é, em sentido contrário ao “trânsito normal” daquela “via de circulação” que, por regra, se dirige sempre para a saída “no fundo das costas”, à procura da “liberdade”.

E, tal como acontece nas autoestradas quando o automobilista entra em contramão e corre perigo de provocar acidente grave, também ali o “aparelho” estava sujeito a ser abalroado por algum “tutano de m.”. Mas o maior problema é que o referido “aparelho” estava ligado e a funcionar no momento da “invasão”, razão pela qual ele não se podia sentar na cadeira quando o enfermeiro, com a melhor das intenções, o aconselhou a fazê-lo. Quem conseguia estar quieto com o vibrador a “tremer-lhe” na tripa?  Não sei se ele informou o médico qual era a marca das pilhas pois, no caso de serem “Duracell”, teria “massagem” assegurada até ao fim dos seus dias, se fizermos fé na publicidade. Sabe-se que o doutor lhe mandou fazer uma radiografia de imediato, demonstrando, “preto no branco”, que o “aparelhozinho” penetrou de forma significativa pelo intestino. Ora, isso era uma prova inequívoca de que o “fugitivo” era de boa qualidade construtiva, pois continuava a funcionar, apesar das “condições adversas” da “via de circulação”. No entanto, revelou ter uma falha técnica de grande importância para facilitar a resolução de situações como esta e que não sei se o médico apontou no relatório: “Faltava-lhe a “marcha atrás”, controlada por um comando à distância”. Se estivesse dotado com esta característica técnica, até o doente resolveria o problema sem se expor, fazendo-o sair “às arrecuas” pelo local por onde entrou, “inadvertidamente”.

Não soube qual foi a forma como o problema foi resolvido e aquele pequeno aparelho recuperado. Entre familiares e amigos, a questão foi abordada e não posso deixar de dizer que várias sugestões foram aventadas. Houve quem sugerisse uma cana de pesca, o que não me pareceu grande ideia por três razões. A primeira, porque obrigaria o doente a colocar-se com o “c. virado para a lua”, numa posição pouco ortodoxa. Em segundo lugar, por não se saber qual o melhor isco para colocar no anzol. E, por último, como é que o “fugitivo” podia morder no anzol se estava a ser pescado por trás? Houve alguém que sugeriu a ingestão de um laxante, que faria acelerar o “trânsito intestinal” e arrastar o inoportuno vibrador para o “buraco” onde se escondeu ao “fugir” da mão do dono. No entanto, tal solução não colheu parecer favorável de nenhum interveniente, por se considerar haver perigo elevado com a possibilidade do aparelho, a trabalhar, aguentar-se até que a acumulação de gases provocasse o seu disparo como um tiro de canhão, de consequências imprevisíveis para a “via de circulação” e a “boca de saída” … Por fim, como “cada cabeça cada sentença”, surgiu a sugestão mais simples: “Com o aparelho ligado permanentemente, bastava a “vítima” abrir a boca e deixá-la aberta, que o instrumento acabaria por sair sozinho, ao continuar o seu caminho “tripa dentro”. Seria só uma questão de tempo, já que os dois “buracos” estão ligados entre si por uma “conduta”, apesar de longa e sinuosa …

Estes dois casos, embora pareçam diferentes têm muito em comum. Ora vejamos. Os dois intervenientes andavam “em pelote”. Também ambos “caíram (in)voluntariamente”. Sendo certo que o saudita “caiu de frente”, presume-se que o português “caiu de cu”, para trás. Se o primeiro sinistrado quando caiu penetrou a jovem que “repousava” no sofá, já o segundo fez o contrário, deixando-se penetrar por um vibrador que, no momento, devia estar de passagem “a saltitar”. Sabe-se que a jovem levou o saudita a tribunal, acusando-o de a ter violado. Que se saiba, o vibrador não apresentou queixa em tribunal, nem pediu indemnização pelo facto de ter sido enfiado num tubo de esgoto. 

Citando Desmond Morris, “se a organização das atividades mais primárias – alimentação, medo, agressão, sexo, cuidados parentais -tivesse sido desenvolvida unicamente através de meios culturais, teríamos certamente agora sobre ela um controle mais eficaz e poderíamos, inclusive, fazer ajustes pontuais. Mas não o fizemos. Curvámo-nos repetidamente diante da nossa natureza animal e admitimos, tacitamente, a existência da complexa besta que se agita dentro de nós”. E da qual não nos conseguimos libertar …