Ao olhar para trás, não tenho qualquer dúvida: “Tive uma infância muito feliz”. Não porque tivesse muito, pois era um tempo em que (quase) toda a gente tinha muito pouco, mas porque tive coisas que hoje já não existem, já não se fabricam e nem sequer estão à venda. São coisas que se perderam, provavelmente para sempre e com que as crianças de agora nem sequer chegam a sonhar.
Para começar, tive a liberdade total para ser criança com um recreio do tamanho de toda uma aldeia para as minhas brincadeiras, sem condicionantes nem condicionalismos, em segurança inquestionável, sem risco de ser raptado, violado, abusado, assaltado e nem sequer ameaçado, com uma porta aberta em cada casa onde podia comer um caldo mal adubado e beber água do poço ou da fonte.
Tive a natureza por companhia, todos os dias, antes e depois de sair da escola, uma mestra da vida com quem aprendi a viver, conviver e a fazer parte dela. Conheci de perto bandos de pintassilgos, rouxinóis, papa-figos, petos (pica-paus), guarda-rios e tantas outras, muitas que já nos deixaram pelos desmandos do ser humano. Fiquei a saber dos seus hábitos de vida, onde os encontrar, como descobrir-lhes o ninho, identificar-lhes o canto e apreciar a sua beleza.
Fui muito feliz por ter uma mãe a tempo inteiro, que estava sempre presente e era o centro do meu mundo e da nossa casa. Nunca deixou de estar por perto, vigilante, para o bem e para o mal, mas dando-me liberdade para “cair” e força para me levantar, numa aprendizagem de todos os dias. Mas também tinha todas as outras mães da aldeia a tomar conta de mim no caso de algo correr mal, porque todas essas mães eram solidárias. Se fosse caso disso, tinham luz verde para me dar uma palmada no rabo ou um puxão de orelhas. Aprendi a cair, levantar-me e lavar as feridas, no caso de um dedo, mão ou braço chupando o sangue do corte com a boca, fazendo da saliva o melhor desinfetante.
Como havia muito pouco de tudo, tinha de inventar os jogos e fazer os brinquedos. Para fazer uma bola usava uma meia velha enchida com trapos; o espeto fazia-o dum pau pesado, aguçado na ponta; a bilharda com uma tábua dando-lhe o feitio duma raquete; e a roda de arame tirava-a esfolando ou queimando a banda dum pneu velho. Já para fazer os peões tinha livre acesso ao torno do senhor Alberto espingardeiro perto de minha casa, trabalhando bocados de madeira que o Avelino, pauzeiro de profissão, me arranjava.
Desde tenra idade tive contacto quase diário com os trabalhadores e os trabalhos agrícolas, na época fundamentais para a subsistência e sobrevivência das gentes da aldeia, amanhos que aprendi bem antes de entrar para a escola porque eram parte daquela vida comunitária e uma forma da minha mãe me incutir hábitos de trabalho e o gosto por ver as culturas a crescer e dar fruto.
Cedo a prendi a respeitar pai e mãe, avós tios e toda a família, os mais velhos, as autoridades civis e religiosas e, por regra, todos os outros. Ah, e os professores, mesmo os que usavam a régua ou a cana para impor disciplina e castigar, sem que os meus pais se fossem queixar que lhe “bateram no seu menino”. Pelo contrário, se levasse, “comia e calava”, pois ainda podia levar mais. Felizmente, nunca sofri grandes castigos corporais …
Vivi a infância sem nunca ter ouvido sequer falar em drogas nem nas suas consequências, desconhecendo por completo aquilo em que se tornaria um flagelo dos tempos modernos.
A minha mãe só me levou à escola no primeiro dia de aulas e nunca mais o fez, ficando eu com o encargo de ir a pé até lá, sozinho ou na companhia de algum colega, mas com a obrigação de não faltar às aulas. No único dia em que fiz gazeta, aliciado pelo Martins porque os pais iam colher diospiros no Souto e os dois podíamos comer quantos quiséssemos, quando cheguei a casa a minha mãe já sabia que faltara, num sistema de comunicações mais sofisticado que as redes sociais de hoje. Não me bateu, mas passei a tarde fechado na varanda da casa a ver os outros amigos passar e gozar comigo. Toda essa liberdade fez crescer em nós a autonomia, independência e responsabilidade!!!
Aprendi a respeitar os alimentos, fossem eles o pão, os legumes ou o que quer que fosse, pois eram escassos e não se podiam desperdiçar. A nada do que me era posto na mesa para comer disse “não gosto”, tal como nada que nos deitassem no prato ficava por comer. Era “luxo” a que ninguém se podia dar. A tal ponto se valorizava a comida que, no caso de haver um bocadinho melhor, quer fosse um pedacinho de carne ou o lombo duma sardinha, ficava sempre para o fim, para a “apresigar” na última garfada como guloseima final. Além disso, não havia desperdício de nada, nem sequer lixo como hoje. Os restos dos legumes como as cascas de batata ou da couve-galega e outras, iam parar ao balde e serviam de alimento para os porcos e as galinhas. Os outros, os que não eram comestíveis pelos animais, iam parar à estrumeira e dali saiam feitos estrume para os quintais, num eterno retorno, dando razão à afirmação que “nesta vida nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma”.
Tenho consciência de que quase nada disto seria possível no mundo de agora que já nada tem a ver com aquele tempo e que até a mim já me parece ter acontecido noutra era, noutra vida.
Não me fez falta o telemóvel para comunicar com amigos ou família porque uns e outros estavam por perto. Em compensação, tinha mais tempo para brincar e todo o meu mundo para explorar. Não precisei do computador nem do Ipad, até porque tinha uma lousa com um lápis do mesmo material, onde escrevia, desenhava ou fazia cálculos e usava vezes sem conta, bastando uma simples cuspidela e limpá-la com o cotovelo para apagar e ficar pronta para novos trabalhos, sem desperdício, sem necessidade de pilha ou ser ligada à eletricidade para carregar. Não tive jogos de computador, mas improvisei o jogo do “pica” com botões ou o jogo da “malha” com pedras, fazia espetos para jogar com os colegas num charco de lama ou jogava ao peão em qualquer sítio, que não sendo “tão limpinho”, era muito divertido e saudável. Não tive piscinas, mas o Rio Sousa esteve sempre lá, com a sua água pura e natural, sem químicos nem conservantes, para me banhar, beber se tivesse sede e deitar-me ao sol na erva da margem, ouvindo o canto dos pássaros. E para “fazer as necessidades”, tinha o campo de milho mais próximo. O mau cheiro desaparecia depressa com a brisa da tarde, havia sempre folhas de videira à disposição, as precursoras do papel higiénico, a “posição de descarga”, de cócoras, sempre foi a mais correta e o “produto” que ficava não se perdia, pois era aproveitado pelas plantas.
E ficaram-me imagens dos apertos de mão a selar um negócio com as pessoas “presas” à sua palavra; o “ponha no livro” na mercearia do meu tio Peixoto, um “empréstimo” informal aos mais carenciados até voltarem a trabalhar sendo certo que “pagar” era a primeira coisa que faziam; o Abílio do Abel a tocar viola rua abaixo com a ganapada aos saltos numa felicidade sã apesar da sua pobreza; a interajuda das pessoas da aldeia nos trabalhos agrícolas, a comunidade no melhor e mais nobre, num espírito comunitário que se perdeu; e as mulheres a cantar, fosse a lavar a roupa na presa ou nos trabalhos agrícolas. E tantas outras que ainda continuam gravadas na minha memória e se calhar, no coração. Por isso, sem saudosismos porque a vida é feita de mudança, devo reconhecer que tive uma infância livre, responsável e, apesar do pouco que havia na época, muito feliz …