Na “passagem” por este mundo, há gente com quem passamos muito ou pouco tempo, mas nos deixa uma marca, lições de vida, boas recordações. E, apesar da distância ou do tempo que nos separa, de vez em quando recordamos, trazemos aos dias de hoje o que ouvimos, aprendemos e sentimos. Foi assim que hoje pus no alto da pilha das recordações o senhor Enes. Homem simples, com a tranquilidade e a sabedoria da idade e da muita instrução, dedicado a uma Instituição da sua terra natal, cruzou-se comigo profissionalmente e por isso convivemos de perto. Nas muitas deslocações que fazíamos em serviço, ainda o vejo recostado no banco de trás da Renault 4L onde teimava ir, sempre com um livro a acompanhá-lo para ler com a viatura em andamento e enquanto nos deslocávamos de um lado para o outro, habilidade que eu não consigo fazer porque o enjoo não deixa. Com mais do dobro tanto da minha idade como de calma e ponderação, em muita situação me convidou a abrandar, “dizendo-me que uma chatice não é um problema” e que não a devia transformar num. E quando eu queria ir ao arrepio dos seus conselhos, deixava sair a sua frase lapidar: “Não corra muito, porque A GENTE VAI EMBORA. Para quê ter tanta pressa?”. A expressão que usava não era mais do que uma chamada de atenção para eu moderar o ímpeto, encarar os factos com tranquilidade, resolver as chatices pelo diálogo ainda que tivesse de ceder porque “um dia destes, A GENTE VAI EMBORA” e vai sobrar-nos arrependimento por não ter sabido aproveitar o tempo que tivemos enquanto andamos por cá. E lembrei-me dele porque me mandaram um poema do jornalista e professor brasileiro Sérgio Cursino titulado precisamente com a frase com que me brindava em momentos de agitação (minha): “A GENTE VAI EMBORA”. Não deixa de ser curioso que este poema não só usa em título as mesmas palavras que ele me dizia já lá vão umas décadas, como muito do seu conteúdo transmite ideias e frases com que o senhor Enes me brindava amiudadamente e que este poeta brasileiro passou a poema muitos anos mais tarde. Porque é uma homenagem a esse velho amigo e um convite à reflexão, acho que vale a pena partilhar o poema do jornalista e poeta brasileiro, um pouco das palavras de um amigo: “A GENTE VAI EMBORA e fica tudo aqui: os planos a longo prazo e as tarefas de casa, as dívidas com o banco e as prestações do carro novo que a gente comprou p´ra ter status. A GENTE VAI EMBORA sem ter tempo de guardar a comida no frigorífico. Tudo vai apodrecer e até a roupa fica no estendal. A GENTE VAI EMBORA, se dissolve, a gente some, toda nossa importância se esvai, essa importância que pensávamos que tínhamos…, a vida continua, segue, as pessoas superam e vão seguindo suas rotinas. A GENTE VAI EMBORA. As grosserias, impaciência, infidelidade, só serviram para nos afastar de quem nos trazia felicidade e amor. A GENTE VAI EMBORA e o mundo continua assim, caótico, muito louco, como se a nossa presença ou ausência não fizesse a menor diferença. Aqui entre nós, não faz. Nós somos pequenos, mas somos arrogantes, prepotentes, feitos bestas. A GENTE VAI EMBORA. E é mesmo assim: num piscar de olhos, de repente, a vida vai. O cachorro que eu amo tanto, é doado. O cachorro se afeiçoa aos novos donos. Os viúvos casam de novo, andam de mãos dadas apaixonados e até vão ao cinema. A GENTE VAI EMBORA e rapidamente somos substituídos nesse cargo que ocupávamos na empresa. E somos substituídos no dia seguinte. As coisas que nós nem sequer emprestávamos são doadas, algumas até atiradas fora. Quando menos a gente espera, A GENTE VAI EMBORA. Aliás, quem é que espera morrer? Se a gente esperasse pela morte, talvez a gente vivesse mais. Talvez a gente colocasse a nossa melhor roupa hoje, talvez a gente comesse a sobremesa até antes do almoço. Talvez a gente esperasse menos dos outros. Talvez a gente risse mais, saísse à tarde para ver o pôr do sol, talvez a gente quisesse mais tempo e menos dinheiro. Hoje o tempo voa, amor. A partir do momento em que a gente nasce, começa essa viagem, essa jornada fantástica veloz com destino ao fim, rumo ao fim – e ainda tem aqueles que vivem com pressa! Eu ainda tenho pressa! O que é que eu estou fazendo agora com o tempo que me resta? Que possamos ser cada dia melhores. Que saibamos reconhecer o que realmente importa nesta nossa breve passagem pela Terra. Só isso. Até porque, A GENTE VAI EMBORA. A GENTE VAI EMBORA”. Já o senhor Enes me aconselhava a preocupar-me só com aquilo que é verdadeiramente importante e para aproveitar o lado bom da vida, as pequenas coisas que nos dão prazer, partilhar todo o tempo possível com aqueles que amamos e … perdoar. Porque não vale a pena viver com rancores, ressentimentos ou ódios. Não ganhamos nada. Pelo contrário, só perdemos. Como ele tinha razão!!! E, fazendo ele já parte da GENTE QUE FOI EMBORA, apesar de não ter escrito o poema (que eu saiba), até parece que deixou o guião ao Sérgio Cursino … Fiquei a pensar que, depois da GENTE IR EMBORA (e vamos quer queiramos ou não, quer pensemos que vamos ficar cá ou não, quer sejamos arrogantes e egoístas ou não …), as pessoas vão continuar suas vidas, o sol nasce e as ruas enchem de gente, o trânsito fica louco e desconhece o luto de quem quer que seja.
As pessoas que choram nossa IDA EMBORA cabem na divisão pequena duma casa grande e o Festival de Música Rock dessa noite vai ser tão curtido como de costume. E a importância da GENTE QUE FOI EMBORA é tal, que um mês depois já quase não há rasto da sua passagem por estas bandas, até na memória da GENTE QUE NÃO FOI EMBORA. E a GENTE QUE FOI EMBORA já não vai ouvir a música Top do próximo verão que também não aproveita, nem conhecer a moda de inverno, o próximo governo e os seus escândalos. Nem saber dos avanços da tecnologia, da Inteligência Artificial, se dinheiro papel vai acabar ou a máquina do tempo vai ser real. E fica sem saber como acabou aquela telenovela que acompanhava todos os dias ou a série semanal que já vai na quinta temporada. Mas também já deixou de se preocupar com as contas da eletricidade, do gás, do telefone, internet, televisão e telemóvel, bem como todas as outras que não queríamos, mas vêm. Mas uma coisa ficou como certeza: “A GENTE VAI EMBORA” …
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Rojões com pardais? O que é isso?
Falava-se de pardais e eu meti a colherada: “Os pardais são bons com rojões”. Do outro lado da mesa a mulher mais nova não se conteve e perguntou admirada: “Rojões com pardais? Mas alguém come pardais pequenos que não têm nada que comer”? E eu tive de explicar, tintim por tintim, que há cinquenta anos a maioria das pessoas tinha muito pouco para comer e que tudo o que fosse capaz de servir de alimento, “marchava”. E os pardais eram “carne comestível”, por muito pouca carne que tivessem. “Mas como é que apanhavam os pardais”, pediu ela para lhe explicar. E eu pude contar-lhe como se fazia essa caçada noturna à passarada, pois participei em duas delas quando ainda era rapazote, como “ajudante de campo” de um grupo de homens, tendo como objetivo fazer uma patuscada onde os pássaros inocentes iam acrescentar à panela com alguns rojões. A caçada era à noite porque os pardais, para se protegerem do rigor do inverno, abrigavam-se nas medas de palha de milho. “E o que eram as medas de palha de milho”, perguntou ela mais uma vez. E lá tive de dizer que naquele tempo os lavradores semeavam milho para colher grão, pois era com grão que pagavam a renda ao senhorio. E as plantas, a que chamavam “pés de milho”, depois de colhidas e secas eram amarradas em molhos. Para se conservarem durante o inverno, esses molhos eram “encastelados” por uma árvore ou poste de madeira acima e amarrados a este, por forma a protegerem-se uns aos outros da chuva, como num telhado. Estas “medas” eram feitas quase sempre nas “bordas” dos campos. Era nelas que os pardais se enfiavam à noite no inverno, a sua “cama quente” contra o frio noturno. Tinham cinco a oito metros de altura e quase dois metros de diâmetro. Para apanhar os pardais arranjavam-se duas varas altas que serviam de suporte a cinco metros de “rede”, tipo rede de pesca, por forma a que, quando se encostassem as varas à meda, a rede a envolvesse a toda a altura. Dobrava no fundo para cima e dentro, formando um longo saco. Então, eles aproximavam-se sorrateiramente no adiantado da noite quando os pardais já estavam recolhidos, envolviam a meda com ela usando as varas, acendiam os “gasómetros” e batiam com paus na palha. Apanhados a descansar, os pardais saíam “meda fora” com o barulho, mas esbarravam contra a rede e resvalavam por esta abaixo, sendo apanhados no fundo pelo “saco”, de onde dificilmente saíam. Quando deixavam de sair aves da meda, enrolava-se a rede para depois tirar do “saco” os pardais um a um e enfiá-los num saco de pano. Eu só segurei no “gasómetro” para “dar luz à operação”, mas não tive direito à “rojoada com pardais”.
Depois ainda lhe disse que, pela mesma razão, quem tinha pombas costumava fazer “arroz de borrachos”, nome dado aos filhotes das pombas. “Pombas?”, perguntava ela muito chocada”. “É isso mesmo. Sabe porquê? Porque eram comida, melhor ainda, carne muito rara para a maioria das pessoas de então”.
Estive em Angola há muitos anos andando entre Luanda e Malange a estagiar sobre a cultura do algodão. Quando estava pela capital era normal conviver com alguns amigos durante horas, com os dois pés debaixo da mesa de uma esplanada qualquer, a beber cerveja “Cuca”. Sempre que me lembro disso, o que me vem de imediato à memória é o facto de, ao pedirmos uma rodada de cerveja, a acompanhar vinha sempre um prato de camarões, de dobrada, moelas e até passarinhos fritos, tudo de graça, mas muito, muito picante, por forma a estimular o consumo de cerveja. E se resultava!!! Bastava ver a quantidade de vezes que cada um dos clientes ia à casa de banho …
Ao pensar em tudo isso, hoje ponho-me a pensar no “caminho” que fiz na minha atitude perante as aves, entre muitas outras coisas. Nesse meu “caminho”, as aves significaram várias coisas à medida que fui crescendo e tomando consciência deste mundo de que faço parte. Em criança, eram um “hobby”. Conhecer-lhes todos os hábitos, descobrir-lhes os ninhos, tirar filhotes de melro para criar em gaiolas, tal como apanhar pintassilgos e pêgas nas mais diversas armadilhas. Alimentá-los e fazer deles “cantores”. E caçá-los à fisga, um acaso tão raro por falta de habilidade e pontaria. Nunca me tornei um caçador de espingarda de chumbo, se bem que tenha experimentado com a arma de um amigo. Desisti logo por achar que era uma matança sem utilidade em luta desigual. Com o passar dos anos, reconverti-me e passei a ver nelas uma das coisas mais belas da natureza, algo que temos de defender e proteger desse perigoso animal que é o homem. A caça, os pesticidas, todo o tipo de químicos e a destruição constante dos seus habitats naturais, fizeram desaparecer na região já muitas espécies de aves que foram as minhas companheiras em criança ou ficaram reduzidas a poucos exemplares, raros sobreviventes num ambiente que lhes passou a ser hostil. Hoje quase só se veem pardais e melros em quantidade significativa e passamos a ser “invadidos” por gaivotas que nunca pertenceram a esta região e só aqui vêm parar atrás da comida das lixeiras e aterros sanitários, por escassear o seu alimento natural no mar: o peixe.
Ao pensar nos “rojões com pardais” e nas duas caçadas noturnas em que participei, hoje já não fariam sentido e seriam condenáveis se existissem, se bem que as compreendo, aceito e não me atrevo sequer a condenar naquele tempo, pela vivência, necessidade, conhecimento e condicionantes dessa altura. Julgar os hábitos culturais de outrora à luz dos conceitos de hoje, seria de uma arrogância bacoca que ignora a evolução e o “caminho” que a sociedade teve de fazer para chegar até aqui e ser o que é. Mas só “vemos” hoje as coisas de “outra forma”, não aceitando que se façam caçadas de pardais em massa para comer com rojões como muitas outras coisas, conceitos e princípios porque, geração após geração, foi sendo “feito esse caminho”.
Aliás, seria natural e compreensível que, mais de meio século depois, o ser humano protegesse com maior cuidado as aves, tal como o meio ambiente, do que no meu tempo de criança. Mas, as caçadas noturnas de pardais e outras aves para alimentação ou a apanha de outras para criar em cativeiro, foram bem menos prejudiciais para essa classe de animais do que agora são os efeitos causados pela poluição em geral, e os pesticidas em particular, bem como pela destruição dos habitats, até pelo elevado nível de informação que possuímos e pelo cuidado e (in)consciência que todos nós deveríamos ter. Mas que não temos …
Tal como não temos desculpas …
Homens e automóveis. O que os une …
É vulgar na gíria comum, mais entre homens que mulheres, utilizar-se uma linguagem “mecânica” para referir algumas partes do nosso corpo, com sentido crítico, estético, sensual, pejorativo ou elogioso. E isso já vem de longe.: “No tempo em que as adolescentes ainda eram inocentes, uma jovem virou-se para o pai, pedindo ajuda: – Pai, não percebo o que o meu namorado me quis dizer quando referiu que eu tinha um belo “chassi”, dois excelentes “airbags” e um “para-choques” fenomenal. O pai, vivido e conhecedor dos homens e suas intenções, respondeu-lhe de imediato: – Vais dizer ao teu namorado que, se ele tentar abrir o “capot” para meter a” vareta” a medir o óleo, dou-lhe uma tareia tal que lhe “gripa o motor” para sempre. Como é natural, a jovem não percebeu patavina, mas o namorado terá sabido traduzir a “linguagem mecânica” e ler nas entrelinhas do “roncar” do pai dela…
Nessa linguagem, como que uma espécie de “calão automobilístico”, comparam-se peças dos automóveis a órgãos do corpo humano com base na função estética ou funcional. Nuns e noutros ouvimos falar em “carroçaria”, na “coluna ou longarina”, em “motor”, “computador”, “amortecedores”, “faróis”, etc. Muitas vezes se pergunta “como anda essa máquina”, para saber da saúde de uma pessoa. É que, até nesta questão, as palavras são usadas com duplo sentido. À “nascença”, enquanto são “novos”, ambos “funcionam bem, a não ser que exista um “defeito de fabrico”. Mas depois, o desgaste natural provocado pela dureza dos dias e dos “quilómetros andados”, são obrigados a recorrer à “oficina”, que o mesmo é dizer ao “hospital. Hoje, ambos têm tanto no “livro de manutenção” como no “ficheiro clínico” todos os registos das “intervenções” efetuadas num e noutro, como datas ou quilometragem em que devem voltar à revisão, especialmente quando sofrem de “avaria crónica” que os obriga a fazer “vistorias periódicas”.
Nos primeiros anos de vida é só meter “combustível” para alimentar a “máquina” e, com alguma regularidade, passar pela “manutenção” para verificar a “afinação” do “motor” e se precisa de algum “ajuste”. Diria mesmo que nesse período, a frequência da visita “à oficina” é maior nos homens, porque são mais frágeis e necessitam de maior acompanhamento. Não acontece tanto nos automóveis porque já “nascem adultos” e agora livres da limitação de outrora, que era o “período de rodagem”. A evolução técnica suprimiu essa necessidade que impunha um “andamento” mais moderado, sem excessos, bem como manutenções mais assíduas nos primeiros “tempos de vida”.
A adolescência e a “passagem a adulto” são os melhores períodos, pois só precisam de efetuar “revisões” com regularidade, assegurar que têm “combustível” e substituir os “consumíveis” conforme o prescrito. É “sempre a andar”. Nesta fase das suas vidas, os grandes problemas surgem dos “acidentes”, porque podem pôr em causa a “saúde” quer da “carroçaria”, quer de alguns dos “órgãos” essenciais. E, conforme a dimensão dos estragos e as “peças” afetadas, homens e automóveis têm de baixar à “oficina” por períodos mais ou menos demorados, onde estarão sujeitos a “reparações” que podem ir da “carroçaria” ao “motor”, do “sistema de alimentação” às “rodas”. Se antigamente só era possível proceder à substituição de “órgãos” nos automóveis, com os avanços da “engenharia médica” já acontece o mesmo com muitas “peças” nos humanos, ainda longe dos primeiros onde todas as “peças” são passíveis de serem trocadas.
Os problemas da “manutenção humana” começam verdadeiramente na “meia idade”, quando têm de esticar o braço para conseguir ler o jornal ou o livro. Dizem que não é sinal que estejam com problemas de “faróis”, mas do braço ser curto, porque não dá para esticar mais. A mulher insiste com o marido para ir ao “mecânico dos faróis”, que coincide mais ou menos com a ida ao “mecânico do tubo de escape” para fazer um “exame pela porta dos fundos”, a que todos os homens se têm de submeter, embora (quase) sempre contrariados (mas não me vou alongar nos pormenores pois pode ser constrangedor). É aí que os homens sabem ter problemas nos “faróis” e estão a caminho de perder a visão, coisa que não acontece com o “escape”, o tal outro “olho”, que continua “cego” mesmo que a saúde seja boa. Os carros nesta fase começam a dar os primeiros “sinais de perda” e têm de ir ao “hospital” reparar ou substituir alguns “órgãos”, além de fazerem as “manutenções de rotina”, tal e qual os “doentes crónicos”.
Mas os grandes problemas de saúde surgem depois, quando passam a ser chamados de “velhos”. Talvez para não sofrerem do estigma pelo termo “velho”, colocam-lhes novos rótulos que podem ir do “idoso”, “sénior” ou “sessenta mais”, enquanto nos automóveis passam a ser chamados de “antigos” ou até de “clássicos”. Com o “peso da idade” e o “desgaste” natural pelos “quilómetros rodados”, ambos ficam mais debilitados e a “saúde” vai-se agravando. As “idas à oficina”, para além de serem mais frequentes e exigentes, implicam “intervenções” complicadas e caras, que muitas vezes os deixam no “estaleiro” por vários dias.
Ambos podem “ficar carecas”, uns pela “falta de cobertura” e outros pelo desgaste dos “sapatos”; todos trocam “válvulas”, “rótulas” e “canalizações” diversas; enquanto num se “substitui o coração”, o “motor dos homens”, no outro “troca-se o motor”, o “coração dos automóveis”; elementos comum são as “admissões de ar”, vitais para as suas vidas, e o “tubo de escape”, por onde saem “gases poluentes” e de sonoridade de gosto duvidoso feitos “rateres”; ambos podem ser “descapotáveis”, “consomem” mais ou menos conforme a “cilindrada” e gastam “combustíveis” diferentes; os “lubrificantes”, “combustíveis” e “pinturas” são comuns aos dois.
Quando a “ferrugem” ataca os “órgãos principais” e o “coração” deixa de trabalhar, são tidos como “sucata” e entregues aos “Centros de Abate” e às “Capelas Mortuárias”. E vão parar aos “cemitérios” onde são enterrados debaixo de cinco palmos de terra ou prensados em fardos para reciclagem, embora antes se aproveitem as “peças” que estejam em “bom estado” para “salvar” e “dar nova vida” a alguma “máquina” avariada.
Confesso que já não sou a versão original completa. Agora “funciono” com duas “peças” a menos, retiradas por “operações” em “oficinas” especializadas, mas não substituídas, o que até parece mistério. Já troquei as “lentes” dos dois “faróis” com sucesso, pois consigo ver ao longe e ao perto sem dificuldade. O “motor” tem pequenas “falhas”, mas dizem-me que ainda “não está gripado”. E já sou “descapotável” há um bom par de anos. Como já tenho muito “uso”, tento que não me mandem para a sucata e me valorizem como “clássico”, o que talvez me permite fazer mais uns “quilómetros” se os “órgãos” principais não “derem de si” na “primeira curva” ou na “subida mais íngreme” da “estrada da vida”. E então, sim, já não haverá “reparação” que me valha. Será aí que o povo vai dizer: “o motor dele pifou”!!!
Vemos o rosto da “idade” no espelho?
Concordo com Jeanson: “O meu sonho é morrer jovem, mas com uma idade muito avançada”. De tal forma que, quando ouvir dizer “olha o velho”, eu tenha de levantar a cabeça à procura de alguém a quem se estejam a referir, que não eu. É que, apesar do meu (agora) Cartão de Cidadão me acusar ter várias décadas de existência, a minha mente ainda pensa que aquela cabeça com pouco cabelo e todo “pintado de branco” que o espelho me devolve todas as manhãs, não pode ser a minha. Tem grande dificuldade em acreditar. Mas, ao ver os outros com a minha idade, quase sempre os acho “velhos”. Já lhe aconteceu alguma vez olhar para pessoas com a sua idade e pensar: – Não posso estar tão acabado como ele?!!!
A este propósito, confessava uma mulher: “Estava sentada na sala de espera para a minha primeira consulta com o novo dentista, quando vi o seu diploma afixado na parede, perfeitamente encaixilhado. Ao ler o nome do dentista escrito em letra artística, de repente recordei-me de um jovem alto e moreno que se chamava assim. Era da minha turma do Liceu, há uns bons trinta anos atrás. Então, perguntei a mim própria: – Será que este rapaz é o mesmo por quem eu me apaixonei naquela época?
Quando fui chamada e entrei no consultório, afastei de imediato esse pensamento do meu espírito. Porque, aquele homem grisalho, quase calvo, gordo, com um rosto marcado e profundamente enrugado … era demasiado velho para ter sido a minha paixão secreta.
Depois de ele me ter examinado e tratado o dente, para descargo de consciência perguntei-lhe se tinha estudado no Colégio Sacré Coeur.
– Sim, estudei, respondeu-me.
– Quando se formou, continuei a indagar?
– Em 1965. Porque pergunta, quis ele saber?
– É que … bem … o senhor era da minha turma, consegui eu dizer!
E então, aquele velho horrível, cretino, careca, barrigudo, flácido, filho de uma … bezerra lazarenta, perguntou-me:
– “A senhora era professora de quê”?”
Assim como, por norma, só vemos os defeitos dos outros e não os nossos, também é verdade que só damos conta do quanto os outros estão envelhecidos e não conseguimos “ver” a imagem no espelho. Para já, estou de acordo com todos aqueles que dizem: “não estou a envelhecer, estou a tornar-me um clássico”. E, com isto, não minto descaradamente a querer dizer que envelhecer é espetacular. Antes pelo contrário. Envelhecer é muito chato, aborrecido e deprimente para quem pensa nisso e fica a contar os dias a mais (ou a menos), porque não tem mais nada que fazer. E cansa muito. Mas, a verdade, é que é a única maneira de se viver mais. Não há outra, nem parece que se vá inventar nos próximos tempos …
Está provado que “qualquer idiota consegue ser jovem e o difícil é ter talento quanto baste para chegar a velho e, mais ainda, a muito velho, especialmente com qualidade”. Ora, o envelhecimento é um processo, que cada um encara de maneira diferente. É ganhar cabelos brancos? Ficar com a cara enrugada e os músculos flácidos? É passar a subir a escada cada vez mais devagar? Ser resmungão e teimoso? Ou perder a vontade de viver e ficar à espera que “o ceifeiro” chegue? Para falar francamente, não tenho medo de envelhecer. Até agora, ainda não tive de pagar qualquer portagem significativa na estrada que nos leva até lá …
Tenho de me dar por muito feliz porque envelheci, já ganhei cabelos brancos e tenho as maleitas próprias de quem atinge a terceira idade. Não, ainda não entrei na quarta idade de que agora tanto se fala, mas não ficarei triste se chegar lá. Pelo contrário, ficarei desapontado se as pernas não me levarem para além dela, pois envelhecer é bom até porque a alternativa é bem menos agradável. Tal como acontece com o vinho, ao envelhecermos “amaciamos”. Neste caso, temos muitas atividades. Segundo estudo recente da Universidade de Harvard sobre as coisas a que mais se dedicam as pessoas idosas, há três que se destacam das outras: “O Banco, a Bolsa e a Investigação”. O Banco, porque é neles que passam a maior parte do dia sentados, seja nos centros comerciais, parques ou jardins. A Bolsa, porque a usam com frequência para ir às compras ao supermercado ou para levar artigos para reciclar ao Ecoponto. A Investigação, pois não passa um único dia que não investiguem: “Onde raio deixei as chaves?”; “Onde pus a carteira?”; “Onde larguei os óculos?”; “Como se chama este gajo?”; “De que estávamos a falar?”.
Eu sei que ás vezes também já esqueço coisas, que nalgumas ocasiões tenho de voltar atrás para tentar recordar o que ia fazer, mas já não me martirizo quando acontece, porque encaro o esquecimento como natural. Tornei-me mais amigo de mim próprio, mais tolerante. Para quê preocupar-me com um esquecimento se um dia destes vou ter de “esquecer tudo”? Eu sinto-me abençoado porque a maioria dos meus amigos já não tem oportunidade de se esquecer ou lembrar. Eu ainda tenho e estou feliz por isso. Também ganhei o direito à liberdade de ficar acordado pela noite dentro a ver um filme ou a ler um livro. E depois? Se tiver de ficar a dormir até mais tarde, fico. O mundo lá fora continua a girar sem mim. Tal como se me apetecer comer alguma coisa às duas da manhã, mesmo que isso represente barrar umas tostas com compota feita de mirtilos colhidos em casa dum simpático casal antes de os abrir à passarada ou até comer alguns caramelos de café que o meu filho nos traz da Colômbia! Não me penalizo ao comer feijoada ou cozido à portuguesa e não fazer dieta. Que importa se vier a ganhar “barriguinha”? Estou errado? Também já tenho direito a estar errado, porque não?
Estou a envelhecer, sem ainda me sentir velho e já trago a idade no rosto, sem reconhecer os seus traços. Mas estou a gostar. Vale a pena fazer este caminho, mesmo com rugas profundas, cabelos brancos e um pouco curvado … e confesso, cheguei sempre sem preparação a cada fase da vida. Até porque “em jovem, sabia tudo, na meia idade, suspeitava de tudo e agora, acredito em tudo” …