Monthly Archives: September 2018

É preciso uma certa dose de loucura…

Pensando bem, só quem “está maluco” é que faz voluntariado neste país. Quando a alguém vier a vontade de ser voluntário, se estiver no seu perfeito juízo, deve deitar-se, dormir e esperar que passe. E estou à vontade para o dizer porque sou um que “está maluco” há uma data de anos. Porque, se um dia acordar “com o juizinho todo”, largo tudo e dedico-me à pesca e à família. Para o que me havia de dar!!! Dedicar parte da vida a causas sociais, culturais, desportivas e recreativas em regime de voluntariado, sem remuneração, em prol da comunidade, é de loucos! É só para quem tem “os fusíveis queimados. Há dias, dizia-me um dirigente e voluntário da Associação Lousada Animal: “Sabe, trabalhar na defesa e proteção dos animais não me custa nada e até é gratificante, apesar do muito que há para fazer. O que mais me custa é a hipocrisia de alguns que nada fazem e ainda por cima passam a vida a acusar-nos por não resolver o caso deste ou daquele animal abandonado à porta deles, como se tivéssemos a obrigação de “lhes resolver o incómodo que é ter um animal abandonado à porta de casa”. Acham que temos a “obrigação” de recolher todos os animais e dar-lhes um abrigo. Esta gente nem percebe que temos um emprego e vida como qualquer outra pessoa e só depois (e com sacrifício da vida pessoal e familiar) é que somos voluntários, fora de horas e ao fim de semana. Nem querem perceber que a Associação só vive dos contributos dos próprios voluntários e dos poucos associados. Está fora de questão ter um abrigo próprio, pois teria custos impensáveis. Já basta o quanto custa recuperar um animal em alimentos e fatura de farmácia e veterinário. Nem pensam nisso, pois “tudo deve cair-lhes do céu”. Estamos gratos àqueles que são os olhos e ouvidos da Associação, sem exigências, conscientes da capacidade limitada à nossa fraca condição económica – não temos apoios públicos – e às disponibilidades de voluntários e famílias de acolhimento. E animais abandonados são mais que muitos, infelizmente. Mas é fácil ver uma situação que exige intervenção, não dar um passo sequer para ajudar (talvez por falta de tempo …), mas ter tempo para criticar os outros por não fazerem. Porque não se calam”?

Cá está.

Como o voluntário está aí para ajudar, também tem de ouvir e “aturar” quem está perto do “problema”, mas “longe” de colaborar na solução, demitido das suas obrigações enquanto cidadão. Por isso, o voluntário “só pode estar maluco” para os aguentar. Os bombeiros voluntários sabem bem o que isso é com gente que vê arder os seus próprios bens e só fica preocupada em contar quantos minutos os carros de combate a incêndios demoram a chegar sem, entretanto, fazerem nada por si próprios …

Se aquele que faz voluntariado numa qualquer instituição é alguém que “está maluco”, o que se pode dizer de um voluntário com função de dirigente? Que “está maluco ao quadrado”? Que já não tem cura? Só pode …

No dia em que tal ideia lhe passasse pela “tola”, devia ser internado compulsivamente pela família e tratado à moda antiga com “choques elétricos” e “jatos de água”. Se pensarmos que na maioria das instituições, só o garantir a sua sustentabilidade já é tarefa árdua, capaz de roubar noites de sono, dar preocupações e muitas dores de cabeça, que fará ter ainda de ouvir, talvez “a título de compensação”, comentários “amáveis” feitos pelos críticos do costume como “está-se a governar”, “só lá mete os amigos” ou coisas bem mais “simpáticas”, para as quais tem de fazer “ouvidos de mercador” se não quer parar no manicómio? Como se não fosse suficiente, tem a “concorrência” de “falsos voluntários”, gente a correr por outros objetivos à sombra dum compromisso solidário. E por fim, se quer ser apolítico e manter a instituição que dirige “à distância” dos partidos, pode crer que vão tentar fazer o “assalto ao castelo” mais dia menos dia, para lá colocar um “peão” do seu xadrez. É a vida. Por isso, meu caro, se estás nisso como voluntário inocente sem segundas intenções, deixa-te de ilusões, pega na trouxa e põe-te a andar, pois isso não é vida para ti. Vais levar mais “caneladas” do que um saco de boxe leva de murros … E todos vão querer “chegar-te a roupa ao pelo” e “atirar-te borda fora”. Porque estás no sítio errado. É como estar atado e nu no meio de uma estrada de grande movimento em hora de ponta …

Assim como há a época de caça ao coelho ou à perdiz, já começou há muito a época de “caça ao voluntário”, em especial ao dirigente. E é como o casamento: “Quem casa, não pensa e quem pensa, não casa”. E o voluntário não pensa mesmo nada quando se mete nessa “loucura” de o ser porque, se pensasse, “punha-se a milhas” …

Mas, voltemos à razão. Bom seria que não houvesse necessidade do “voluntário”, nem sequer de associações sociais, culturais e outras ao redor das quais eles se mobilizam. Era um sinal de que os problemas da comunidade estavam solucionados pelo Estado Providência. Mas o sonho desse tipo de estado faliu há muito e não passou de um sonho de quem vive nas nuvens. A realidade diz-nos que, mesmo nos países mais ricos, a solidariedade e o voluntariado são fundamentais para colmatar as ineficiências do estado, seja ele qual for. Quanto mais num país pobre como o nosso, sem recursos naturais e com deficits crónicos nos últimos quarenta anos e uma dívida acumulada de que os nossos netos serão escravos. Daí que, apesar das “acrobacias dos governantes”, a realidade metida debaixo do “tapete” vem ao de cima nos hospitais, nos quarteis, nas escolas, na justiça, nos apoios sociais, nos salários baixos e em necessidades altas. Por isso, o voluntariado assente na gratuitidade, ação livre e no compromisso pelo bem estar da comunidade continuará a ser imprescindível e fundamental para suprir as ineficiências do estado, apesar da sua importância nem sempre ser reconhecida, tanto pelas estruturas do poder como por algumas camadas da população.

Talvez eu reconsidere e deixe de dizer que “só é voluntário quem está maluco”. Retiro mesmo o que disse. No entanto, que é preciso uma certa dose de loucura, é. Mas, para benefício da comunidade, ainda bem que há quem a tenha …

A sabedoria que um sofá nos dá…

Nos olhos, no pensamento e nas críticas dos outros, nós somos bons ou maus, simpáticos ou arrogantes, espertos ou inocentes, tímidos ou “destravados”, competentes ou “abaixo de zero”. Somos o que somos, tão iguais e tão diferentes, numa diversidade de personalidades tão grande quanto variada. Mas há um lugar especial que tem o poder e a capacidade de nos tornar “especiais”, porque ali nos transformamos e assumimos novos poderes, novos conhecimentos, novas identidades que ninguém imaginava que tivéssemos. Nem nós mesmos. Ali somos outro, raramente nós. Somos juízes, treinadores de futebol, atletas de alta competição, comentadores desportivos ou analistas de política nacional e internacional, ativistas e contestatários, revolucionários,

moralistas, homens de ciência sem ciência nenhuma. É um lugar mágico que nos transforma como nenhum outro e, por isso, no dia a dia, fazemos questão de o ocupar, por pouco tempo que seja. Quem não experimentou essa sensação ao ficar “sentado no sofá diante da televisão”? Quem nunca sofreu essa metamorfose e se viu feito outro “figurante”, quando não “figurão”?

“Sentados no sofá” a ver um jogo de futebol da equipa do coração, não paramos de gritar: “Ladrão, não vês que é penalti?” ou “aselha, essa até eu marcava”. Lá está, tão depressa somos um árbitro melhor do que “aquela viúva negra” que corre no campo de um lado para o outro, como de repente ganhamos qualidades de avançado com veia goleadora de que tanto está a precisar o nosso clube. Se a equipa está a perder, o treinador “é um nabo, devia estar a jogar com dois defesas e reforçar o ataque” ou “tem de jogar com dois extremos”, já para não falar das vezes em que nomeamos os jogadores que devem entrar ou sair, criticar a tática ou o estilo de jogo. Se a equipa está a ganhar, “aquele gajo já devia ter metido um médio defensivo”.

Comodamente “sentados no sofá” a ver um jogo de futebol, se possível com uma cerveja na mão para nos dar inspiração e transmitir confiança, somos os melhores treinadores, jogadores, árbitros, dirigentes, adeptos, comentadores e até arruaceiros ou gorilas. Comemoramos aos saltos e com gritos de euforia ou insultamos tudo e todos, desde o guarda-redes ao roupeiro. Espumamos de raiva com cara de “esgroviados” ou temos um sorriso aberto a toda a largura da cara, como a pessoa mais feliz deste mundo. Roemos as unhas como quem quer poupar na manicure ou falamos como papagaios sobre as virtudes dos nossos jogadores, como se eles fossem “nossos” e “virtuosos”.

“Sentados no sofá” ouvimos as notícias do telejornal em que se dá conta das buscas da polícia judiciária à casa e escritório do político A ou do dirigente desportivo B, como suspeitos de corrupção, desvio de fundos ou tráfico de influências, presos e levados a tribunal onde lhe é aplicada a prisão preventiva ou outra medida menos gravosa.

E nós, sem estarmos documentados, conhecermos o que se passa ou termos acedido ao processo, tomamos posição imediata: “Eu bem dizia que ele era um grande ladrão” ou “esse artista nunca me enganou”. Ou ainda, se o “artista” for do nosso partido político, da cor do clube do coração ou doutra associação à qual estejamos ligados, assumimos uma posição contrária, de defesa clara e inequívoca “daquele santo” que merece uma estátua: “Vejam lá o que a oposição anda a inventar” ou “coitado do homem, o que ele tem de aturar destes invejosos”. E, com o “rabo” comodamente enfiado no sofá, julgamos, condenamos e ilibamos conforme o nosso próprio interesse no assunto, a nossa ligação ao “artista” ou mera simpatia.Ás vezes dou comigo a tomar partido, a dizer “é impossível” ou “já se estava à espera”, porque o sofá “dá-nos sabedoria” e “independência” (muitíssimo duvidosa, por sinal) para julgar os outros, mas insuficiente para nos olharmos a nós próprios. Isso já não interessa…

Pensando bem, com a televisão sempre ligada nem precisamos de ir trabalhar. Já nos basta o trabalho difícil e cansativo de “corrigir” os “imbecis” que temos de ver e aturar no pequeno ecrã. “Vejam lá se aquilo são maneiras de aparecer na televisão…” Com este, vamos ter de ser “consultores de moda” ou de lhe ensinar o “manual das boas maneiras” e as “boas regras da etiqueta”. Só os concursos televisivos já nos ocupam o suficiente: “Essa é de caras. O campeão europeu de futebol é Portugal. Toda a gente sabe” ou “como é que um gajo destes se mete num concurso se não dá uma para a caixa”? “Este gajo é um nabo” …

O sofá é um sítio “maravilhoso” para se ver telenovelas. Se possível, “entalado” entre mulheres, para se entrar no espírito da “coisa”. E ali, no sofá, tão depressa nos revoltamos contra o mau da fita que anda a enganar a miúda e a roubar a patroa velhinha, como choramos “feitos Madalenas” por aquela cara bonita feita “gata borralheira” não ter que comer nem sequer um pouco de leite para dar ao bebé, entrando no espírito da “equipa feminina” que nos envolve. Num filme de ação, tanto podemos optar por estar ao lado do protagonista como assumir as dores por aquele malandro que tem jeito para a ladroagem e rouba só ricalhaços bem “encanados”, convencidos e presunçosos, que até parece um cavalheiro encantador, merecedor de acabar por ficar com a moça mais bonita do elenco.

Sentados no sofá com “o nariz enfiado na televisão” e concentrados no “trabalho”, sofremos grandes transformações, passando de fracos a fortes, de estúpidos a inteligentes, de burros a sábios enquanto o “diabo esfrega um olho”. E somos capazes de alcançar os maiores “sucessos” sem termos de provar nada, sem fazer o mínimo esforço. Ali, o êxito é garantido. Pensando bem, se calhar, o melhor lugar para se “morar” …

Ena! O carro serve para tanta coisa!!!

Dizem os entendidos que o automóvel é o resultado de um processo evolutivo e não de uma invenção. Começou por ser um carro a vapor que foi evoluindo até aparecer a “lei da bandeira vermelha”, que fez parar esse desenvolvimento ao impor que “qualquer carro levasse à frente um homem a pé, acenando com uma bandeira vermelha e a tocar corneta”. Será que os ingleses eram assim tão inteligentes? Os carros a vapor deram lugar aos com motores que queimavam uma mistura de ar e gás de iluminação, só mais tarde substituída por álcool combustível, gasolina ou gás. E tudo isso, para transportar pessoas e bens, mais depressa, com mais comodidade, se bem que já Fernando Pessoa dizia que “nos movemos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz, para outro onde não há nada para fazer…” Mas cedo se percebeu que os automóveis teriam muito mais funções para além de levar pessoas de um lado para o outro, como se pôde comprovar pouco tempo depois da chegada da primeira viatura a Portugal em 1895. Logo na viagem inicial de Lisboa para Santiago do Cacem, o automóvel fez uma vítima: um burro. Nada se sabe nesta história qual dos “burros” foi o culpado, se aquele que morreu ou se “o outro” que conduzia aquele veículo estranho… Reza a história que só quatro anos mais tarde foi “abatido” lá para os Estados Unidos o primeiro “pedestre”, inaugurando uma campanha de “caça ao peão” que veio sempre aumentando até aos dias de hoje. Já no Brasil, foi um conceituado poeta o primeiro condutor a acertar numa árvore, que ele nunca soube explicar, nem em prosa nem em versos, como é que ela foi parar ao meio da estrada …

A partir destas “habilidades”, os carros de quatro rodas passaram a substituir as guerras na “arte de matar gente”, mesmo em tempo de paz. Só nas estradas chinesas em 2010 “limparam o sebo” a 275.000 cidadãos, fora os feridos ligeiros e graves que foram de alguns milhões. Ainda nesse ano, nos dez países onde o automóvel foi mais mortal, a chacina andou muito perto das 800.000 pessoas. Só em dez países, além dos milhões de feridos … Por cá, no ano passado a matança passou de quinhentos mortos. Olhando pelo lado positivo, ainda sobrou a maioria do total de dez milhões de portugueses que somos. Mas, fica o aviso para nos cuidarmos. Senão, faremos parte das estatísticas nos próximos anos. No entanto, tenho de reconhecer que a cama (apesar de silenciosa) é mais “mortífera” do que o automóvel (apesar de barulhento). E é nela onde passamos mais tempo e onde morre mais gente …

Mas o automóvel serve também para coisas mais agradáveis. Que o digam os americanos, pois foi no banco de trás de um carro qualquer que a maioria deles fez a iniciação à vida sexual … Não há estatísticas conhecidas entre nós, mas todos sabemos serem mais usados do que os hotéis para tal “função”. São mais baratos, apesar do mau jeito que a alavanca de velocidades dá quando a pressa não deixa saltar para o banco de trás… E, nas “acrobacias” às escuras, tem de se evitar que a alavanca entre onde não é chamada. Até de dia “me esbarro” com os carritos escondidos à entrada dum terreno que tenho nas franjas da vila, o que não é mal pensado. Há melhor visibilidade para se desviar da tal alavanca e acertar no alvo. Para se perceber quanto o carrito é importante para a prática desta “atividade desportiva”, basta ver a quantidade de preservativos que cobrem os locais escondidos onde se acoitam os carros, feitos “despojos de guerra”. E é um desperdício, pois podiam ser aproveitados e ajudar à recuperação económica do país. Colocavam-se “preservatões” nesses locais para recolha das tão célebres “camisinhas” usadas. Eram enviadas às fábricas e, depois de esterilizadas, seriam recicladas como pastilha elástica para venda ao estrangeiro, num contributo importante para a redução do deficit pela via do aumento das exportações pedido pelo primeiro ministro António Costa …

Os automóveis funcionam ainda como sala para reuniões de família onde se conversa, discute, berra, grita, amua, come (quando o carro não é novo), canta, abraça, beija e se ama. Para fora do carro, acena-se aos amigos, insultam-se os que atrapalham o trânsito (“anda lá, morcão” ou “compraste a carta, imbecil”), buzina-se para reclamar, assobia-se quando a miúda é jeitosa ou atira-se-lhe um piropo agora feito assédio sexual. E, quando sala de refeições, atira-se o lixo e os restos janela fora, para esse contentor enorme que é a “berma da estrada”. Em certas ocasiões, especialmente nas estradas de muitas curvas, funciona bem como “sala de vómito” para enjoados, contra a vontade dum pai furioso ao volante. E é melhor que um soporífero para adormecer e dormir bem … ao tombar para o colo do vizinho.

Para satisfazer os seus sonhos e desejos o homem criou objetos e instrumentos como o automóvel, cujo valor e função vão muito para além da finalidade e uso. Como o carro, tornaram-se um símbolo de sucesso, nível social e felicidade. E foi por isso que a partir de certa altura as marcas passaram a criar modelos diferentes em tamanho, qualidade e preço, para servir e fomentar a ânsia de estratificação social, a mania de que se é melhor do que o outro. Nós assumimos o carro como o nosso espaço privativo, símbolo de liberdade e poder, onde somos reis e senhores. E, atrás do volante colhemos informação permanente sobre o seu comportamento e desempenho, bem como da reação dos outros à nossa passagem, nos olhares, nos cochichos. Porque o automóvel, muito para além de transportar pessoas, é um ícone da sociedade atual e tem várias representações atribuídas pelo nosso comportamento e estilo de vida. Ao tornar-se “diferenciador social”, as fábricas aproveitaram mudando regularmente os modelos e levando os clientes a trocar e consumir para estar na moda. E, como extensão do próprio corpo que é e da nossa cultura onde importa mais “parecer” do que “ser”, quanto mais caro é o automóvel maior é o “bom gosto”, melhor o “estatuto social” e mais o ego transborda de “felicidade” …

A invasão do ruído e morte do sono…

“Cócórócócó”!!! Acordo estremunhado ao cantar do galo. Mal consigo abrir os olhos. “Cócórócócó”, insiste ele, como despertador que não foi desligado e teima em cumprir a sua missão. Agarro no telemóvel, primo a tecla e o mostrador ilumina-se: “4H00”. É de madrugada e o galo tem um problema, pois está a “despertar” fora de horas, se bem que quem fica com o problema sou eu. Precisamente quando estava na fase daquele sono profundo que nos faz descansar, é que vem este bicho estúpido fazer barulho. E logo hoje, que deixei a janela aberta e a persiana meia corrida para entrar o ar fresco da noite e deixar o quarto mais suportável!!! Afinal, o que entrou foi o canto do galo, bem mais alto … É a fatura que pagamos por estarmos no limbo, no “nim”: nem no campo nem cidade. No campo, a natureza segue o seu curso e a noite só é rasgada pelo luar. Não há luz artificial para enganar a natureza e o galo e ele canta só ao romper da aurora. Na cidade há luz artificial toda a noite, mas não há galos nem outros bichos para nos interromper o sono. E aqui, que “nem somos carne nem peixe”, temos luz pública a iluminar caminhos, mas também temos galos e outros bichos que alteram as rotinas com os “enganos” da civilização …

Mas não é só o canto do galo em horas inapropriadas que nos entra casa dentro, quando só devia entrar o sono.

Ainda há dias, às três da manhã, pelas frinchas entreabertas dos estores e sem pedir licença, infiltrou-se a voz rouca dum cantor africano para me acordar ao som da “quizomba”. Presumo que estivesse nalguma romaria da região onde eu não quis ir e achou por bem incluir-me no concerto, apesar de eu não estar interessado. Esta coisa de tocarem para quem está junto ao palco e para quem está em casa a quilómetros de distância merece uma pergunta: “E temos mesmo de gramar com aquilo que não pedimos”? Ainda se fossem “Cantigas ao Desafio” por cantadores populares ou mesmo o Quim Barreiros, apesar de me interromper o sono teria motivos para sorrir com a brejeirice das letras … para compensar a insónia. Agora “quizomba”!!! Como dizia o Flávio, só se for para dançar com “pele roçando a pele”, no mais importante movimento feminino que se conhece: “O movimento de quadris”. Não sei de onde vinha a música nem ninguém me perguntou se podiam incomodar o meu descanso num dia de semana. Também não estava à espera pois com certeza tinham licença, esse “papelinho mágico” que legaliza a possibilidade de poderem “chatear” os outros, mesmo que estejam a descansar, a troco duns euritos que não vão parar ao bolso dos lesados, mas ao “saco” que não dorme nem tem insónias.

E tudo isto para dizer que o sono, esse bálsamo reparador do nosso corpo, devia ser mais protegido, protegendo-se o silêncio nas horas de repouso natural. Os países mais evoluídos fazem-no, preservando a saúde física e mental de quem trabalha, porque sabem que só assim estão a defender a produtividade. Quem não dorme e não descansa, não pode produzir aquilo de que é capaz. Há três décadas atrás estive na Suíça integrado num grupo e dormimos em casa dum conterrâneo que fez questão disso. A sua maior preocupação connosco foi a de não fazermos qualquer barulho que pudesse ser ouvido no apartamento de baixo, pois seria motivo para lhe aparecer a polícia à porta e ter problemas. Ora, para quem ia de um país onde cada um achava que tinha o direito de fazer o “chinfrim” que quisesse sem “ter de dar cavaco a ninguém”, aquilo era ridículo. Mas, acabamos por cumprir as regras, como acabamos por fazer outras coisas muito bem quando estamos lá fora …

Trinta anos depois, apesar de termos um Ministério do Ambiente e montes de leis muito avançadas a que ninguém liga, a verdade é que estamos pouco ou nada melhor do que nessa altura. Na época de festas, que dura pelo menos seis meses, somos “assaltados” em casa pelo foguetório a horas impróprias, pelos berros bem amplificados e mais ou menos ritmados de todo o tipo de artistas, pela batida forte da música “tecno” dos bares de rua até ao nascer do sol e todo o tipo de ruídos festivos em dias que já extravasaram há muito os do fim de semana. E é o roncar de camiões a trabalhar de madrugada, dizem que para aquecer, mais parecendo que os motores estão dentro das nossas cabeças; são as conversas de clientes saídos de restaurantes, tascos e cafés após o fecho, parados na rua debaixo da varanda, que até parecem estar a falar dentro do quarto; são todos aqueles que, por razões diversas, se levantam de madrugada para viajar e falam alto, chamam, insultam, gritam e fazem acordar a vizinhança toda; e são os geradores, compressores e todo o tipo de aparelhos, feitos a pensar resolver um problema funcional sem pensar que criam um problema auditivo; são os “corredores de rua” montados em carro ou moto com os decibéis no máximo, como se fosse sinal de serem mais velozes.

Por norma, durmo com a janela e estores fechados, além dos cortinados, tentando não ser “violado” nem violentado pelo ruído que vem de fora. À Luísa, já lhe basta o suplício de aguentar o ruído dos meus “motores” feito “ressonar”. E a mim, ouvir pela manhã as rolas e os melros ao desafio, é “música” bem mais agradável para os meus ouvidos …    
O Agostinho espera realizar o sonho de poder gozar das delícias de uma reforma antecipada em casa térrea isolada na encosta de um rio Douro qualquer, longe do ruído artificial da civilização, poder “deitar-se com as galinhas” e acordar com o chilrear matinal das aves. Sonha viver em harmonia e ao ritmo da natureza, afastado da civilização que nos trouxe noites mal dormidas, insónias, stress, medicamentos às carradas para combater esse flagelo de não dormir e, pior, não descansar. Já não nos “deitamos com as galinhas. Estamos mais perto da hora dos morcegos e tem fatura que estamos a pagar com juros. Respeitamos pouco o silêncio noturno e, consequentemente, todo o direito ao descanso dos outros.

Pois eu, como não tenho a sorte do Agostinho, vou continuar a deitar-me depois da Luísa adormecer, o que me afasta do “deitar-me com as galinhas”. Assim, dorme tranquila e fica livre de ouvir o meu “ronco”. Vou continuar a fechar muito bem as janelas e persianas pois, apesar de insistirem, não quero ouvir mais “concertos” na cama sem querer e sem sequer ver os “atributos da artista”. E vou rezar para que o galo mais próximo não acorde com os lampiões a acender e cante só ao nascer do sol.

Se conseguir, vou sentir-me mais perto da natureza, dormirei melhor e deixarei de ser um “zombie” pela manhã, feito “barata tonta”.