Monthly Archives: March 2017

O encontro dos amigos da saudade…

A maioria da malta estava lá, jovens de outrora, velhos de agora, em mais um encontro de curso, uma forma de romagem a amizades antigas mas perenes, para rever o seu “estado físico e mental”. Trinta anos depois de deixarmos Coimbra tomei a iniciativa de tentar reunir a malta num primeiro encontro, tarefa que se viria a revelar algo complicada pela dificuldade em localizá-los. Eram mais de sete dezenas… Mas, de contacto em contacto, com a indicação de um que sabia do outro e outro do outro, acabei por comunicar com a maioria deles numa primeira carta, já com data para o “almoço de curso”. A adesão foi excelente e o convívio ainda melhor. Mas, no reencontro, não consegui identificar alguns com a “fisionomia” alterada por uma grande careca, pelo físico “escondido” atrás duma barriga avantajada ou a cara disfarçada atrás de barbas grandes e bigodes farfalhudos, coisas que não tinham há trinta anos. No entanto, depois de falarem, lá estavam eles nos seus trejeitos particulares. Valera a pena. A partir daí, a rotina anual instalou-se, assumindo eu sempre a iniciativa e a responsabilidade porque, apesar de gostarem da confraternização, ninguém se voluntariou para a função. Deste modo, a iniciativa destes encontros continua a ser um encargo meu, que faço com muito prazer pelo prazer que tenho em rever os amigos.

Num desses encontros anuais uns quantos fomos na véspera e o Grilo recebeu-nos na sua “Lavra”, a propriedade agrícola que possui no vale do Mondego. Entre petiscos variados e garrafas de vinho de várias proveniências, contavam-se histórias, anedotas e vidas, tudo à mistura como é usual nestas patuscadas. No cruzamento das conversas o Sebastião falava do papagaio que comprara uns meses atrás e das suas habilidades: “Pois fiquem a saber que ainda só ando há meio ano a ensinar o meu papagaio a falar e ele já diz Olá”. A malta riu-se, brincou com a história e lá do canto o Souto e Melo não demorou a retorquir: “Ora, grande coisa. Até parece que o teu papagaio faz alguma coisa de extraordinário. Pois fica a saber que lá em minha casa tenho um bidé só há uma semana, nunca lhe ensinei nada e ele, desde o primeiro dia, diz: “Vista Alegre”. E foi gargalhada geral…

Encontros de curso são uma forma de rever amigos da juventude, recordar histórias, matar saudades, dos amigos, do que fomos, da nossa inocência e de uma santa ingenuidade. Por algumas horas até esquecemos os dramas, as dificuldades, a vida lá fora. E o tempo volta atrás. Mudamos o rosto, a barriga, o cabelo voou ou pintou-se de branco, a pele encarquilhou, curvaram as costas. E andamos devagar. Para ir, ignoram-se distâncias, custos, cansaços, filhos e netos. O que importa? As memórias. Reencontrar amigos de escola, de curso, é rever-nos a nós mesmos num tempo que existiu, que foi real mas se foi, mas onde é importante regressar de tempos a tempos, em romagem, ao encontro de velhas histórias comuns. Para que não se percam.

O Óscar era o colega à volta do qual a turma se reunia, porque tinha sempre uma boa história que sabia contar como ninguém. Para lhe dar realismo, colocava-se no meio dela como se tivesse acontecido com ele, quando na realidade na maior parte das vezes não passava de mais uma anedota. Entrou na Escola Agrícola comigo e, enquanto eu não passava de um jovem imberbe, ele já era homem casado e pai de uma menina, não sei se por ter “metido a pata na poça” antes do tempo (e nesse tempo não havia outra saída senão “dar o nó”) ou para ter “mandato legal” para o fazer. Fora das aulas, eram mais que muitos os que lhe faziam companhia não só pela sua boa disposição, pelas histórias e anedotas que tinha sempre para contar e pelo prazer de usufruir da sua amizade. Uma manhã chegou à Escola afogueado. Como de costume, o grupo rodeou-o e ele desabafou: “Nem queiram saber o que me aconteceu. Ontem o João foi lá a casa e, depois de conversarmos um bocado, perguntou-me se tinha alguma coisa para beber. Como estava a trabalhar, disse-lhe para ir à cave, como era costume. E ele lá foi, mas eu sabia que o vinho engarrafado acabara. Passado um bocado regressou e disse-me que o vinho era bom. Encontrara uma garrafa. Estranhei, mas talvez me tivesse escapado. Mais tarde foi-se embora e quando me deitei ainda ia a pensar na garrafa. Hoje de manhã, mal me levantei, fui à cave e lá estava a garrafa em cima da mesa. Olhei o rótulo e fiquei chocado: “Ácido clorídrico”. C’um caneco, o João matou-se. Fui a correr a casa dele, que é ao fundo da rua e, quando toquei a campainha, foi ele que me apareceu à porta. – Que cara é essa, perguntou-me. – Tu estás bem, estás mesmo bem?, perguntei-lhe, sem acreditar que não tinha sinais visíveis de mal estar. – Estou. Mas porque perguntas com esse ar aflito, quis saber. – Sabes o que bebeste ontem à noite? – Sei, respondeu-me. Foi vinho. – Não foi nada, foi ácido clorídrico, esclareci eu. – Ah, bem me parecia que alguma coisa não estava bem. Então foi por isso que, quando esta manhã dei um “p…um”, queimei as cuecas” … E foi a risada do costume.

Rever os amigos é reencontrar peças que se encaixam, experiências que nos formataram. São os amigos da saudade, para os quais só existem reencontros. Podemos ficar anos e anos sem os ver, mas isso nada muda, porque o tempo não apaga nossa amizade. Como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor. E, na alegria do reencontro, há a ansiedade de um abraço forte, como para garantir que nada do que nos une se perdeu. E voltamos atrás no tempo, à ilusão própria dos jovens que fomos…

“És surdo ou quê?” “O quê?”

Eu integrava aquela reunião de trabalho com mais de trinta participantes realizada num auditório. Em espaço tão grande para tão pouca gente, ainda por cima ouvindo-se o ruído de fundo do trânsito lá fora em hora de ponta, tinha dificuldade em perceber o que diziam. Uma confusão auditiva. Sentei-me na fila da frente, de perna cruzada e um pouco de lado, por forma a que o som do orador me entrasse diretamente no ouvido. Mas, como não estava a perceber patavina do que ele dizia, às tantas dei comigo com a cabeça virada para o lado e de forma a colocar-me no melhor ângulo, na tentativa desesperada de participar na reunião. Foi quando me apercebi que a mulher que estava a meu lado me olhava com cara de poucos amigos, talvez a pensar que o meu posicionamento fosse para “mirar” os seus “para choques””, aliás bem visíveis mesmo sem ter de procurar o ângulo mais favorável. Corrigi a postura mas, quanto a compreender o orador, nada. O que é que ele disse? Não sei. É a triste sina de alguém que tem “deficiência auditiva”. Ou antes, “que está mouco”…

A partir de uma certa idade, tendemos a ouvir mal o que, dizem os entendidos, se deve a múltiplos factores. A música altíssima das discotecas, os concertos roqueiros e ruidosos, os sons metálicos agressivos a que muitos trabalhadores estão ou estiveram sujeitos durante anos e outros, são tidos como “barulhos nocivos”, que fazem com que as chamadas “células ciliadas” dos ouvidos morram, numa espécie de suicídio (talvez em desespero, por não suportarem as agressões sonoras). Ou, pondo o dedo na ferida: A idade não perdoa… É assim que começam os nossos problemas de audição…

Cá por mim, comecei a notar cá em casa. Quando falavam comigo, como não percebia, respondia: “Hem”? E esperava que repetissem, se possível mais alto e comigo mais atento. E os “Hem” começaram, pouco a pouco, a serem cada vez mais frequentes. Ou então era um “que é que disseste?” ou “repete lá?”. Mas, muitas vezes, nem assim. E vieram os erros: !”Vais ao Porto”? e eu perguntava: “O que é que está torto”? ou um “corra” alterava para “porra”. Mas havia alguns bem piores… E de lá de dentro vinha a pergunta: “Estás surdo ou quê”? E, como continuava a não perceber, perguntava: “O quê”??? É por causa desses desacertos sonoros, provocadores de trocadilhos e absurdos, que se diz “a surdez é cómica e a cegueira é trágica”.

A surdez muitas vezes é um mal incurável, sem reversão, que só tende a piorar com a idade. Quem “gosta de me dar alento e ânimo”, diz que… é o meu caso. Ora, a minha dúvida é saber se vou morrer antes de “ficar surdo como uma porta” ou se “fico surdo como uma porta” antes de morrer. Qual das duas a melhor? Se me deixassem escolher, preferia ficar por cá, mesmo que não conseguisse ouvir sequer o foguetório das festas Grandes… O que até seria uma bênção… Aliás, não ouvir pode mesmo ser um privilégio em muitos casos, para além do foguetório… Quem não gostaria de ver algumas pessoas a falar, falar, mexendo a “queixada” para cima e para baixo, mas sem ter de ouvir o que dizem? Nesses casos, pode-se dizer que “há males que veem por bem”… A surdez também é uma desculpa bem conseguida para nos desligarmos da conversa e nos voltarmos para dentro, envolvidos nos próprios pensamentos. Já dei comigo em reuniões com muita gente e ruído de fundo intenso, totalmente “desligado” por não conseguir “apanhar o fio à meada”. E, se calhar, não perdi nada…

Para quem ouve mal, deveria ser proibido ter conversas em locais barulhentos, onde se cruzam sons diversos em confusão total. Nessas ocasiões, quando não se consegue perceber o que as pessoas dizem, há duas opções: Ou se fica “de bico calado” abanando com a cabeça para cima e para baixo, como um burro, murmurando, sorrindo e mostrando os dentes, fingindo compreender o que o interlocutor está a dizer mas correndo o risco de cair em situações embaraçosas, ou então perde-se a vergonha, assume-se a conversa por inteiro e fala-se sem parar não dando hipóteses ao outro de dizer o que quer que seja, para não ter de ouvir… Melhor, de não ouvir.

Se a mulher nos chateia quando aumentamos o volume de som da televisão e o filho nos pergunta constantemente “estás surdo ou quê?”, é certo e sabido que a seguir vem uma ordem: “Tens de ir ao otorrino porque não andas a ouvir nada”. “O quê”? E nós vamos, para a não “ouvir”… O otorrino enfia-nos um tubo no ouvido e espreita, espreita. Ainda bem que é no ouvido e não noutro buraco qualquer… E muda de ouvido e espeita. Será que vê de um ouvido para o outro? E como enxerga ele com o olho qual a nossa capacidade de ouvir o silêncio? Ou só finge que nos examina porque percebeu logo à entrada que estamos surdos, quando cumprimentou dizendo: “Está bom” e “o quê?” é a nossa resposta? Percebeu logo tudo… E manda-nos fazer um exame com uns auscultadores nos ouvidos. Levantamos a mão sempre que ouvimos um “pi…” e muitas vezes até levantamos a mão só para não parecermos tão surdos quanto somos… No final, mostram uns traços no papel e dizem que perdemos cinquenta por cento da audição. Mas perdi onde? Nem a deixei cair… “Está na altura de usar umas próteses auditivas”, que é uma forma simpática de nos dizer “estás mouco, pá”. E estamos. E investimos em equipamentos, para poder ouvir o que não queremos. Se calhar, mais valia ficar surdo de vez… Mas nada será como dantes e as próteses são o remedeio possível e, em confusões acústicas, não apanhamos uma. Nada a fazer. Por isso, meus amigos, quando me falarem em surdina, do tipo contar um segredo, se o meu ouvido trocar a primeira consoante do “corra”, “lerda”, “luta”, “poder” e outras, para… (não vou dizer, senão dizem que, para além de surdo, também sou mal educado…), provocando um “incidente auditivo”, desde já estão avisados que a culpa não é minha. E nem precisam de me perguntar “estás surdo ou quê?”. Porque, já sabem que vou responder: “O quê”?

Uma fossa e um poço sumidouro…

Andava na escola primária e, como os pais não tinham de nos levar à escola, a aldeia era o nosso recreio. Assim, conhecia bem a maioria das casas, quase todas muito pobres. Térreas em regra, com paredes exteriores em granito e cobertura em telha vã, quando não em colmo, e pavimento em terra batida. Para além da cozinha, escura, defumada e com a estrumeira à porta (para os despejos e as necessidades fisiológicas), havia uma ou duas divisões onde dormia a família, fosse qual fosse o número de pessoas do agregado familiar. Em suma, as condições de habitabilidade eram miseráveis e diziam bem da má qualidade de vida de então.

Só a partir dos anos sessenta foi possível melhorar as habitações, resultado do aumento de rendimento familiar, não só pela criação de indústrias como, e sobretudo, a partir do momento em que as mulheres começaram a trabalhar fora de casa. Cá em Lousada, José Dias foi o primeiro a abrir-lhes as portas do emprego na Estofex,. Já Hans Hisler, viria a ser o Homem com quem milhares de mulheres ficaram a ter uma dívida de gratidão pela sua entrada no mercado de trabalho, empregadas diretamente na Fabinter (mais conhecida por Kispo) de que era proprietário ou indiretamente através das muitas empresas que produziam para esta e em muitas outras que dela copiaram o conhecimento e tecnologia por ele trazidas para Portugal. Mas, o desenvolvimento da construção de novas habitações deu-se sobretudo a partir dos anos setenta e oitenta e a autoconstrução de moradias deu uma boa ajuda.

Muitos foram os trabalhadores que, depois de comprarem o terreno num primeiro esforço, se aventuraram à construção da “casita”, quase sempre aos fins de semana, arregimentando mão de obra voluntária entre familiares e amigos, muitas vezes num processo de troca de favores em que “hoje ajudas-me tu e amanhã ajudo-te eu”. Só se pagavam os materiais de construção e… os comes e bebes. O primeiro “lanço” era até preparar o rés do chão pois, provisoriamente, já dava para se meter lá dentro e deixar de pagar renda, economia essa que seria mais uma ajuda à sua conclusão. E muitas foram as moradias que se ficaram na primeira placa ao longo de anos e anos, à espera de dias melhores…

O João foi meu condiscípulo, amigo de infância e das malandragens. Fiz-lhe o projeto da casa quando ainda era um processo simples. Dei-lhe conselhos e orientações, apontei caminhos. E ele mal apanhou a licença, meteu mãos à obra. Ao fim de semana, inclusive ao domingo, era vê-lo sozinho ou acompanhado a “mourejar” na construção da sua casa, levantando paredes, chapando massa, preparando a cofragem… Também ali se “abrigou” logo que deitou a primeira placa e só volvidos alguns anos daria a obra por concluída. Foi uma alegria imensa, a realização de um sonho impossível… Mas chegou lá apesar de “ter passado as passas do Algarve”, “de ter comido o pão que o diabo amassou” porque, foram muitas as vezes que “teve de o tirar da boca para o ter para materiais”. Mas valera a pena. Agora tinha uma casa digna para a família, o seu palácio…

Um dia apareceu-me no escritório a pedir para lhe tratar “da vistoria da casa”, a sua forma de dizer que desejava requerer a licença de habitabilidade, coisa a que ninguém ligava. Tratei-lhe da papelada, assinou o requerimento e o pedido deu entrada na Câmara Municipal, ficando a aguardar a marcação do dia para a vistoria. Dias depois fui procurá-lo para saber se tinha construído a fossa séptica e o poço sumidouro obrigatórios. “Não, não construi”, respondeu-me. “Liguei os esgotos para uma mina desativada que atravessa o terreno. Não serve”? “Não. Então não te avisei de que tinhas de fazer fossa e poço sumidouro?”, respondi-lhe um pouco agastado. “E agora”? A pergunta ficou no ar. Conversamos um bocado à procura de uma solução, até porque a vistoria seria efetuada dois ou três dias depois.

No dia da vistoria só pensava nele e, mal esta acabou, o João veio a minha casa contar-me o “filme”: “Ao fim da manhã chegaram dois senhores de carro, um da Delegação de Saúde e outro da Câmara Municipal. Com os papéis na mão, quiseram ver a casa toda. No final, perguntaram-me onde tinha ligado os esgotos. Disse-lhes que estavam ligados à fossa, como manda o projeto. Pediram então para lhes mostrar a fossa e o poço sumidouro. Levei-os ao fundo do quintal enquanto lhes explicava que os tinha feito ali para ficarem a mais de vinte metros do poço da água e evitar contaminações. Como levei comigo pá e picareta, comecei a cavar no canto do quintal e fui-lhes dizendo que deixara as tampas enterradas cerca de meio metro para poder cultivar o terreno todo. Fui cavando, cavando e tirando a terra para o lado, até a picareta bater numa peça de betão. “Cá está a tampa da fossa”, e continuei a cavar para alargar o buraco. Às tantas, o representante da Delegação de Saúde disse: “Não vale a pena cavar mais. Já chega”. E deram meia volta. Informaram-me depois que a vistoria seria aprovada.

“Como é que em dois dias conseguiste fazer a fossa e o poço sumidouro”, perguntei-lhe meio desconfiado. “Eu não disse que construi a fossa, nem o poço. Não, não construi. Só tive tempo para enterrar lá duas tampas de betão. Foi nelas que eu bati com a picareta. Por baixo, não há mais nada. Nem poço, nem fossa”… “E como é que sabias que não te obrigavam a cavar mais, a teres de abrir a tampa e mostrar a fossa?”, disse eu. “Não sabia e arrisquei, pois ainda acredito na bondade das pessoas. E duvido que, em cem

pessoas, houvesse um único cara de pau que não confiasse”…

Heróis do meu dia a dia. Nunca abandonou quem a abandonou…

Foi a Teresa que me falou na história de vida desta senhora e eu quis conhecê-la e ouvir o relato pessoal. No final, pus o meu pensamento em Deus e agradeci-Lhe por me ter dado tanto e concedido uma família e uma vida “normal”. É que, por tudo o que ela passou, seria motivo suficiente para abater o mais forte, criar um revoltado da sociedade, senão mesmo um marginal do sistema. Ao falar-me do seu trajeto, tranquila mas com as lágrimas a quererem saltar-lhe dos olhos, bem lá dentro em sofrimento, encontrei uma mulher forte que está de bem consigo e com o círculo familiar que a rodeia, o castelo onde se refugiou para se proteger de um mundo que lhe foi hostil e onde só recebeu amor desinteressado e puro, dos animais. Dos ditos seres humanos (quase) só tem péssimas recordações: Abandonada várias vezes por quem tinha a obrigação de lhe dar amor, explorada pelos que deveriam protegê-la, agredida física e emocionalmente por quem dizia amá-la, reprimida, abusada, ofendida, sofreu de tudo o que de mau um ser humano pode fazer a outro. Com isso, tornou-se adulta à força, prematuramente, vítima das circunstâncias.

Nasceu no sul de Angola, onde viviam os pais, mas não tem qualquer recordação pois fugiu da guerra ao colo da mãe e com a irmã quando tinha dezoito meses, logo após a independência, tendo o pai ficado. Mas, mal chegaram ao Porto, a mãe abandonou-as num colégio de crianças órfãs e foi à vida, para a qual elas seriam um empecilho. Ora, quando o pai regressou a Portugal, viu-se sem mulher, sem filhas e sem sinal delas. Mas não desistiu e foi procurando até que o acaso (ou talvez não) fez com que, cerca de um ano depois, as identificasse pelo cabelo no meio da criançada do colégio, quando estava sentado num café do Porto. Confirmaria essa identificação ao reconhecer a letra da mulher no bilhete que deixara junto das crianças no dia em que as abandonou. No entanto, por razões burocráticas, só voltaria a ficar à sua guarda aos quatro anos. Como ficou feliz por receber o amor do pai extremoso, apesar da madrasta… Mas o sol na sua vida seria de pouca dura. O pai faleceu tinha ela sete anos e sobrou-lhe a madrasta, que “não a largou de mão” a favor do tio, por ver nela a herdeira legítima e uma oportunidade de “herdar” também, mesmo sem direito… E, tal como as madrastas más das histórias, fez-lhe a vida negra. Cedo a pôs a trabalhar numa fábrica de confecções mal completara doze anos, para lhe ficar com o salário por inteiro. Quando três anos depois a patroa lhe deu cinco contos como compensação pelos subsídios de férias e de Natal não pagos, recomendou-lhe que os escondesse por saber do quilate da “fada má”. Mas ela, que não passava de uma miúda que nunca vira dinheiro, foi ao Brás e Brás e gastou-o em louças para o enxoval, tendo-as escondido em casa. Nesse mesmo dia a madrasta descobriu, partiu-as de raiva e pôs-lhe a trouxa à porta e a ela na rua. Assim, aos quinze anos, viu-se novamente abandonada… Então, só, sem família nem dinheiro, fez da rua a sua casa, de uma caixa de cartão a sua cama, da solidão a companheira. Viria a ganhar a companhia de um cachorro, companheiro de abandonos e desgraças, o seu parceiro dos restos de comida que procurava nos contentores, alguém que se lhe dava sem nada pedir, sem abandonos, sem se importar quem ela era. Mas até esse pouco (ou muito?) aconchego dado pelo cachorro lhe foi roubado quando o fizeram desaparecer, eventualmente levado para o canil. Questionou-se então se o problema não estaria em si, se não seria a culpada. O que teria de errado consigo?

Voltaria para casa da madrasta pela intervenção firme de uma amiga da família, com acordo de partilha do salário. A fábrica fechou, foi trabalhar para um café mas teve de deixá-lo porque a madrasta lhe impôs outra confecção, até a expulsar novamente de casa. Mais uma vez abandonada… Já com algum dinheiro, alugou um quarto junto do novo emprego, vindo ali a conhecer aquele que se tornaria seu marido. Casou e foi viver para o rés do chão da casa da sogra, mas também ela não lhe tornou a vida fácil, fazendo até desaparecer os cães que adoptara.

Já mãe de três filhos, viria a pedir o divórcio quando descobriu por uma filha que o marido a traia há muito. E este, em retaliação, deu uma tareia tão grande na filha, que lhe partiu a coluna (ainda hoje usa uma prótese de platina). Separou-se mas acabou perseguida e ameaçada com arma branca pelo ex-marido, tendo só encontrado sossego depois de recorrer à APAV e fugir para longe. Entretanto, tinha em si uma sensação de vazio, uma angústia que não lhe dava descanso: O que seria feito da mãe? Por onde andaria? Porque razão a abandonara? Ainda estaria viva? Imaginou como seria ver-se diante dela quando recorreu ao programa de televisão “Ponto de Encontro”, num desejo incontido de recuperar o amor maternal. Como seria ela? Iria encontra-la? Ao fim de alguns anos, conseguiram localizá-la. Contactou-a, restabeleceu a relação perdida, mas acabou por ser novamente vítima de uma mente manipuladora, sem escrúpulos nem princípios, cuja filosofia de vida é explorar o outro em seu proveito.

Apesar de ter sido vítima da madrasta, quando descobriu que vivia trancada em casa pelo sobrinho, espoliada da reforma, abandonada e à fome, protegeu-a e ajudou-a num final de vida complicado. À mãe, continuou a servir de pronto-socorro nos momentos difíceis ou que ela encenou como tais. Encontrou no seu marido atual a alma gêmea e, apesar das adversidades, fez dos seus filhos adultos livres e responsáveis, com princípios e valores, o seu mundo, o seu refúgio. Abandonada pela mãe e pela madrasta, acabou por servir-lhes de amparo em momentos difíceis. Mas nunca esqueceu. Nunca esqueceu aquele cachorro que lhe deu amor incondicional e cuja recordação guarda com muito carinho. Um coração grato aos companheiros de solidão. Por isso, pela sua lembrança e em sua honra, hoje tem cães e gatos em harmonia perfeita como parte da família e faz acolhimento de animais abandonados, porque ela sabe melhor que ninguém o que é ser-se abandonado. E faz tudo o que pode e não pode para os salvar, como ela se salvou neste mundo de abandonos, de homens e animais. Mas onde só os homens são capazes de abandonar alguém…

Um “engenheiro” com arte no ofício…

Há longos anos, “sem saber ler nem escrever” fui parar ao Hospital/Prisão da Guarda, não como um condenado doente mas de visita a um recluso. E como? Andava a fazer estudos agronómicos e comerciais para a empresa onde trabalhava e cobria uma basta região do interior que ia de Bragança à Guarda. Como tive de passar o fim de semana naquela cidade beirã, fui almoçar com um colega ali residente que, depois do almoço, fez questão que o acompanhasse àquele presídio/hospital, onde ia visitar um amigo.

O preso era o Cardoso. Com mais de sessenta anos, simpático e de trato excelente, viria a proporcionar-me uma tarde agradável. Quem diria!!! Acabada a visita, perguntei ao meu colega porque razão o Cardoso “tinha ido dentro” pois, por aquilo que vira, achava-o um indivíduo afável e cordato. Então ele contou-me a história.

“Ainda não se sabia o que era um telemóvel e até poucos telefones existiam quando o Cardoso chegou a uma aldeia do interior transmontano, acompanhado por outro homem que dizia ser seu ajudante. Carregando um velho teodolito, aparelho usado para efetuar levantamentos topográficos, alguns mapas enrolados debaixo do braço e mais alguns apetrechos, fez constar através do seu “ajudante” que fora destacado pelo Estado para executar o traçado de uma nova estrada. Para começar, assentou o aparelho em posição e apontou-o aos terrenos do homem mais rico da aldeia, não por acaso mas por se ter informado previamente “quem era quem”. E começou a trabalhar… Ao fim da tarde o dono da propriedade apareceu e falou com o “ajudante”: “Já fui informado que estão aqui para marcar uma nova estrada e, pelo que vejo, vai atravessar-me os melhores terrenos de cultivo. Não gostava de ver os terrenos partidos ao meio. Não haverá maneira de darmos a volta a isso e desviar um bocadito o traçado”? O ajudante, fazendo um ar de lorpa, respondeu: “Isso não é comigo. Tem de falar ali com o senhor “engenheiro””… E ele foi falar com o “engenheiro” Cardoso. Este ouviu a sua pretensão com ar muito sério e depois levantou algumas dificuldades porque, “mudar o traçado de uma estrada era complexo e seria necessário mexer alguns cordelinhos”. O proprietário manifestou logo compreender a situação mas dispôs-se a “compensá-lo” pelo incómodo e pelas implicações que isso traria para o projeto. Claro está que, apesar das “muitas dificuldades” que o “senhor engenheiro” foi identificando, chegaram a acordo e o Cardoso embolsou uns contos largos. Resolvido aquele “negócio”, Cardoso e ajudante mudaram-se “de armas e bagagens” para outro local e repetiram o procedimento, apontando a mira aos terrenos de um novo proprietário, também ele senhor de bons teres e haveres e que também se viria a manifestar interessado em que a estrada fizesse um “pequeno desvio” para não atravessar os seus domínios. Mais ainda, também tomou a iniciativa de se propor “compensar” o “senhor engenheiro” dos incómodos que isso lhe viria a trazer… E o “senhor engenheiro”, embora “muito contrariado”, aceitou fazê-lo e voltou a embolsar mais um bom par de contos.

Durante meses e meses o Cardoso e ajudante foram saltando de aldeia em aldeia, sempre com o repetido argumento (mas não gasto) de que se encontravam ali para traçar uma nova estrada e os resultados foram semelhantes e compensadores quanto baste para ambos. Mas um dia, há sempre um dia, o velho teodolito foi orientado à propriedade de um homem rico mas com influências no concelho. Quando soube da construção da “estrada” e que esta lhe iria retalhar os terrenos, meteu os pés ao caminho e foi diretamente ter com o presidente da câmara municipal, seu amigo pessoal, questionando-o em tom exaltado: “Então vomecês vão fazer uma estrada lá na terra, atravessar as minhas vessadas e tu não me dizes nada”? “De que é que tu estás a falar”, perguntou-lhe o presidente? “Da nova estrada que andam a marcar lá na aldeia e que me vai retalhar a propriedade” disse-lhe ele. “Mas eu não sei de nada. Alguma coisa não bate certo”, contrapôs o presidente. E foi a partir daí que a vida do “engenheiro” Cardoso começou a andar para trás… Com o desmascarar da tramoia, depressa se deram a conhecer uma boa parte dos lesados pela dupla de vigaristas. E não se denunciaram todos porque muitos deles preferiram manter o anonimato para, por um lado não serem motivo de chacota e gozo pelo povo (tal e qual como no caso recente cá na região com aqueles que emprestaram dinheiro a juros de dez por cento ao mês mas que deu raia e em que os lesados se calaram que nem ratos…) e, por outro, não serem tidos como corruptores ativos. E, pelo que me disse o meu colega, entre os muitos atingidos estavam pessoas de reconhecido prestígio e importância local, gente com formação superior e fortuna, que caiu na esparrela do Cardoso, homem sem qualquer formação mas afável e divertido, requisitos muito importantes para quem se dedica à vigarice, neste caso à “nobre arte de enganar quem quer sacudir a água do capote para cima dos outros”.

Não voltei a visitar o Cardoso, um excelente “engenheiro” na arte da vigarice. Nem sei se a sua estadia gratuita, com cama, mesa e roupa lavada na “estância hoteleira” onde o conheci, se terá prolongado por muito mais tempo. Só sei que nisto tudo me ficou uma dúvida: Se, além do Cardoso e ajudante, não deveriam também “bater com os costados na prisão” muitos daqueles que “compraram” o Cardoso, “corrompendo-o”, sem se preocuparem por a alteração do traçado da “estrada” por si proposta ir fazer a outros aquilo que não quiseram para si. É que, como diz o ditado, “pimenta no cu dos outros, é refresco”…