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O dinheiro não é de quem o ganha…

Há um ditado que diz que “devagar se vai ao longe” e um outro que o completa com “quem tem pressa vai andando”, porque “depressa e bem há pouco quem”.

Sem pressa ia um alentejano montado no seu burro, estrada fora, naquele ritmo pachorrento de quem não tem de correr para coisa nenhuma mas que chega sempre onde deseja, quando por ele passa um grande carrão. Ouve o chiar de pneus, uma travagem brusca e o carro encosta à berma, dele saindo um conterrâneo que há um bom par de anos fora para Lisboa, subira na vida e voltara rico. “Oh compadre, como é que vai isso”, pergunta-lhe-lhe o recém chegado. “Devagar, mas vamos indo”, responde-lhe sentado no burro, parado na borda da estrada.

Um pouco de conversa e o dono do carrão puxa pela vaidade: “Oh compadre, o que vossemecê devia era comprar um carro como o meu, em vez de andar montado nesse burrito. Tem mais de duzentos cavalos e uma força que só visto”. “Oh compadre, isso é para si, eu não tenho jeito para guiar” responde-lhe ele na sua simplicidade. E o regressado amigo entra no carrão, arranca fazendo chiar os pneus, e desaparece estrada fora.

Picando o burro, o nosso homem volta a fazer-se ao caminho no seu ritmo habitual e, um quilómetro à frente, numa curva apertada da estrada, vê o carrão despistado com a frente enfiada numa grande poça de água. Desmonta do burro para ver o que se passa e encontra o dono do automóvel sentado numa pedra, com as calças molhadas. Olha para o carro, do carro para o amigo, e diz-lhe: “Com que então, a dar de beber aos cavalos”? Ao lembrar-me desta história/anedota, relacionei-a, talvez de forma aligeirada, com as nossas histórias de vida nas últimas três décadas, mas em que vale a pena refletir.

Tal como o alentejano, houve portugueses que se pautaram pela segurança, pelo rigor e disciplina, que não embarcaram em euforias nem em consumismos desenfreados, ao longo dessas décadas de fulgor económico. Fizeram a sua casa, gastaram em função das suas necessidades e não dos seus ganhos, souberam amealhar para acautelar o futuro. Não se deixaram iludir pelo dinheiro fácil nem pelos ganhos acima do normal, continuaram a viver as suas vidas ao ritmo habitual, tal como o alentejano da nossa história.

Tenho falado com alguns deles, que ainda hoje agradecem aos pais as lições de vida e a contenção como exemplo. Essas três décadas foram, sem dúvida, uma época de ouro, como nunca mais viveremos outra em Portugal.

A atividade económica acelerou, o dinheiro fluía e muitas foram as áreas onde era fácil crescer, ganhar dinheiro, fazer um bom pé de meia. Mas, de todas elas, destaco uma com especial relevo: A construção civil. Quem durante esse período esteve ligado a este sector , teve a obrigação de fazer fortuna porque tudo no sector deu muito dinheiro, demasiado dinheiro, com um bónus extra: Facilidades de fuga ao fisco. E por ser tão lucrativo, fez com que muita gente se tornasse de repente construtor, subempreiteiro, mediador imobiliário, vendedor de materiais, de equipamentos, de terrenos, de serviços e tudo o mais ligado à construção, quer fosse verdadeiro empresário ou golpista, inteligente ou imbecil, homem sério ou vigarista.

Não era necessário determinar custos porque a procura era muito superior à oferta, fazendo disparar os preços, ao ponto de proporcionar margens de lucro obscenas. Só que tantas facilidades em ganhar dinheiro ( dinheiro esse que, somado ao muito que os bancos faziam questão de emprestar, parecia infinito) criaram a ilusão de que era uma mina inesgotável, que o livro de cheques não tinha fim e, por isso, havia que gastá-lo em casarões e palacetes, apartamentos na cidade e moradias na praia, exibi-lo em carrões trocados à mesma velocidade (ou quase) com que se trocava de roupa, e usufruir dele, destrocando-o em fichas no casino e com mulheres (estão sempre presentes quando os homens querem gastá-lo) de casa posta e alimentadas com adornos de ouro, joias, roupas e todo o tipo de luxos, ou arrebatadas de cabarés entre banhos de champanhe, aquelas coisas próprias de “conquistador a pronto pagamento”.

Só que, tal como na história do alentejano, em que a exibição do carrão terminou na curva apertada da estrada com o focinho na água, também aqui, o abuso no gastar, no exibir e no usufruir do dinheiro, terminou muitas vezes em despiste na curva apertada da crise, com “buracos” de milhões e fugas para nenhures ou para o estrangeiro, falsos divórcios (às vezes dão jeito), falências e encerramento de empresas, arrastando para a miséria uma legião de fornecedores, subempreiteiros e trabalhadores, inocentes que não tinham qualquer responsabilidade pelas irresponsabilidades de quem os puxou para o fundo.

E aqueles que ao longo desses anos dourados não se deixaram atrair pelo canto da sereia e prosseguiram montados no seu “burrito”, cultivando a árvore da “POUPANÇA” (quase desconhecida nos dias de hoje), passaram a curva apertada da crise com tranquilidade, se bem que com cuidado, sem darem com o “focinho na água” nem terem de recorrer a esquemas e lesar terceiros. É que, o ditado é velho: “O DINHEIRO NÃO É DE QUEM O GANHA, É DE QUEM O GUARDA”.

O porquê de não ser um “retornado”

Estava a estagiar na Comissão de Viticultura, a fazer as vindimas na Adega de Lousada, quando o meu pai ouviu na rádio que o Ministério do Ultramar ia promover estágios em Angola, pagando as viagens e uma mensalidade de quatro mil e cinquenta escudos. Para quem recebia novecentos escudos mensais (hoje quatro euros e meio), era fabuloso e uma boa oportunidade de conhecer outras paragens. Por isso, depois do Natal de há cinquenta anos, embarquei no paquete Infante D. Henrique e usufrui durante doze dias de um luxo que não conhecia, com direito a paragem na Madeira na véspera de Ano Novo e a retomar a viagem nessa noite, apreciando o espetáculo da ilha iluminada vista do mar.

Em Luanda fui colocado no Instituto do Algodão juntamente com o colega Zé Abrantes, pelo que nos alojamos numa pensão junto ao Mercado de S. Paulo e durante três meses andamos entre a sede e a Estação Experimental de Ongazanga, próxima de Catete, num velho Land Rover do Instituto, para aprender tudo o que dizia respeito à cultura do algodão.

A estadia em Luanda foi excelente desde o primeiro dia até porque, ao vestirmos calções e camisa de manga curta como toda a gente, não havia diferenciação entre classes, entre chefes e subalternos, ricos e pobres. Para quem ia do continente, onde havia velhos hábitos de feudalismo e nobreza, em que era mais importante parecer que ser, o choque para melhor foi grande. E mais ainda para um jovem tímido, ver-se convidado para jantar aqui, almoçar acolá ou ir a passar na rua e chamarem-no para o baile que estava a decorrer, por gente que acabara de conhecer, era algo de impensável.

Ao fim de três meses fui para Malange onde o Instituto tinha uma delegação, passando a maior parte do tempo na Baixa de Cassange, uma planície com condições agrícolas excepcionais. Também em Malange o acolhimento e hospitalidade que tive foram excelentes, pelo que foram meses de encantamento, gozando de uma liberdade que me permitiu conhecer vastas zonas do norte de Angola. Trabalhei, estudei, aprendi muito sobre a cultura do algodão e alguma coisa sobre aquelas gentes. Naquelas savanas imensas fui à caça, do búfalo à palanca e do javali à zebra, participei em patuscadas, conheci recantos fabulosos dessa África praticamente selvagem e quase virgem, reencontrei histórias do Zé do Telhado e estive junto do seu mausoléu, sofri com os percevejos, os mosquitos e as moscas , o calor e a sede, e até passei com distinção pela caldeirada de cabrito extremamente picante, de tal forma que quem não comeu foi o meu colega que me quis fazer passar por caloiro.

O certo é que, no final do estágio estava encantado com Angola, com África, com o povo que ali habitava, brancos e pretos, e com a forma como as pessoas se relacionavam, se visitavam com assiduidade sem pompas nem pretensiosismos, convivendo, percorrendo grandes distâncias até para tomar um simples café. Tinha grandes espaços, muitas oportunidades de trabalho, uma sociedade moderna muito aberta (o inverso do que era aqui), e gostava do que fazia. Por isso, queria ficar.

Mas, havia um óbice: Estava apurado para o serviço militar pelo que, se ficasse em Angola, seria incorporado em breve e isso não me entusiasmava. Por isso, desisti. E foi este mero acaso que fez com que, uma década depois, não fosse rotulado de “RETORNADO”.

Após o 25 de Abril o país passou por um processo revolucionário complicado, dominado por extremistas e governantes imberbes, cheios de ideais utópicos, que se quiseram ver livres das províncias ultramarinas como de um empecilho, sem cuidar sequer dos milhões de portugueses que lá viviam, metade dos quais lá tinha nascido. E tais (des) governantes criaram todas as condições para que esses portugueses tivessem de fugir de um dia para o outro para não serem abatidos, “com uma mão à frente e outra atrás”, abandonados por quem os devia defender, entregues a si próprios, chamados de colonialistas e malfeitores, de exploradores e indesejáveis, e que, ao chegarem ao seu país, ainda  foram rotulados de “RETORNADOS”, de portugueses de segunda, olhados de lado pelos que cá estavam, como vindos para lhes roubar o emprego, a habitação e o dinheiro.

E hoje esses dirigentes são chamados de “monstros sagrados” (vejo muito de monstro e nada de sagrado) pela descolonização tida (caricatamente) como exemplar, quando na realidade constituiu um dos maiores êxodos da história contemporânea, roubando o passado a esse milhão de portugueses, e lançando-os nus na incerteza do futuro. E eu estive quase a ser mais um.

Ao longo destes anos do pós êxodo, não posso deixar de admirar e render a minha singela homenagem a essa legião que chegou a Portugal (e a outros países), pela forma como deram a volta por cima e se tornaram gente de sucesso, uma mais valia, numa demonstração de que, por alguma razão, foram pioneiros numa terra que julgavam (e era) sua. E compreendo-os bem quando falam e revelam na voz a saudade dessa vida que lhes foi roubada…