Monthly Archives: October 2014

Voando sobre o último ato…

Estava num funeral por razões institucionais mas mal conhecia o falecido e muito menos os presentes naquela cerimónia celebrada com grande pompa e circunstância como convém no caso de figura importante da terra, até porque, como vivemos em plena cultura da aparência, o funeral importa mais que o morto, tal como as roupas mais que o corpo.

Sem ninguém com quem “dar à língua”, como é habitual nestes momentos, imaginei-me no dia em que eu próprio “bater a bota” ( e espero que aconteça bem tarde), com o espírito a separar-se do corpo, pronto para a última viagem.

Antes de partir, pedi aos Anjos que estavam à minha espera, para me deixarem assistir ao meu próprio funeral, sobrevoar o evento e bisbilhotar as conversas dos presentes. Os Anjos acederam e permitiram-me observar o espetáculo do meu “último ato” sentado numa pequena nuvem, de onde via e ouvia tudo, melhor do que nos camarotes dos grandes estádios de futebol, só acessíveis a bolsas recheadas.

Invoco o direito à privacidade para não divulgar o que ouvi dos meus familiares, pois poderão querer cobrar-me se disser que falaram muito bem (ou mal) de mim, e não os quero “ter à perna”. É que ainda conto andar por cá mais uns anitos.

E que vi eu? Que tinha flores, muitas flores. Melhor seria que as tivesse recebido em vida. Agora, já não me serviam de nada, nem sequer lhes podia sentir o cheiro.

Encostados à sombra de um carvalho vi alguns velhos amigos, vestidos de forma um pouco informal, reunidos em grupo. “Como estás?”, perguntava-se. “Vou andando e tu?”. “Já há muito que não te via. Agora só nos encontramos em casamentos e funerais”. E há medida que o grupo aumentava, deixaram-se estar por ali a contar anedotas para matar o tempo, rindo para dentro como manda o protocolo apesar de uma ou outra gargalhada escapar a esse “espartilho” que nos manda ter um ar “sisudo e sério” nestas cerimónias.

Um pouco mais retirado e muito descontraído, estava um grupo de adolescentes, como que caídos à força num filme que não era o deles, falando de “gajas”, discotecas e do último concerto que foram ver ao Meo Arena. “Eh pá, aquilo é que foi curtir. Porque é que não foste?”

As senhoras, quase todas de preto (gostava mais que vestissem cores garridas, alegres, apesar do preto emagrecer, ser clássico e chique, embora nestes casos seja sombrio), carregavam o luto oficial do ato, como que assegurando o lado solene do momento, falando em voz baixa com a preocupação nos familiares e no seu desgosto pela minha “partida”.

De fato e gravata preta e num pequeno grupo, alguns homens falavam entre si elogiando as minhas qualidades como homem de trabalho, um bom pai, um bom filho, um bom gestor, um bom… (se fosse na escola tinha bom a tudo)… Fiquei a pensar comigo mesmo que, para passar de besta a bestial nada melhor do que morrer, “ir desta para melhor”. É que, este grupo, era constituído precisamente por aqueles que sempre disseram mal de mim. Agora, eu era o melhor do mundo, de pecador passei a santo só pelo facto de ter “marchado”. Que sorte a deles ao verem-se livres de mim, que “sorte” a minha ao ser “promovido”… Alguns, provavelmente estariam lá só para se certificarem que morri, que “fui de vela”…

Num local bem visível, por onde tinha de passar toda a gente que queria prestar-me as últimas homenagens e cumprimentar os familiares, juntaram-se os políticos “instalados” no poder e, perto, os que ansiavam chegar lá, mostrando um ar compenetrado como se estivessem em sofrimento pela minha morte quando a sua preocupação era serem vistos, cumprimentarem o maior número possível de votantes e tirarem partido da situação porque “quem não é visto, não é lembrado”. Até ouvi um a dizer ao parceiro, em surdina: “Este gajo veio estragar-me o fim de semana…”

Uma mãe levava ao colo uma criança de três anos para tentar travar o seu lado irrequieto. Mas, mal a punha no chão, perguntava: “Que é que estamos aqui a fazer?, “quando é que vamos embora?, “tenho sede e quero um chupa”, deixando a mãe nervosa e agitada, olhando os outros com receio de ser foco de atenção.

No canto da igreja, em pé e encostado à parede, estava um homem simples de boné na mão, num silêncio respeitoso para com os presentes, mas num diálogo mental com Deus que eu, como espírito, pude escutar. E falava com Ele intercedendo por mim, porque lhe dera um empurrão para se estabelecer por conta própria quando só tinha medos. Afinal, alguém “estava comigo”. Senti então as mãos (espirituais) dos Anjos a puxar-me docemente, ao mesmo tempo que diziam: “ Vá, vamos andando pois é bom que não vejas tudo”. É o pior momento, quando temos de virar para sempre as costas a quem amamos.

Ao ver a animação das conversas naquilo que é sempre um acontecimento social, dei comigo a pensar que o funeral é o único “evento” ou “encontro” em que se pode estabelecer diálogo com todos os presentes menos com o “protagonista” principal, o “fulano” que é a razão desse “ajuntamento”. E, sendo neste caso eu “o artista”, não lhes podia agradecer nem sequer oferecer algo para petiscarem, apesar de se tratar do meu derradeiro “aparecimento público”… Até porque, depois, passaria ao rol do esquecimento como é habitual…

E a minha imaginação parou quando senti o empurrão de alguém na pressa de ir embora. O funeral terminara…

A sociedade do descartável

Pertenço à geração nascida durante a segunda guerra mundial e, por isso e não só, vivi até para além da chegada a adulto sem conhecer a palavra “descartável”. Nada, mas mesmo nada, era descartável, isto é, algo que se usasse uma vez e se jogasse fora.

Pelo contrário, tudo era aproveitado e reaproveitado até à exaustão, não havendo lugar ao desperdício e ao consumismo. Se a roupa se rasgava era remendada tantas vezes quantas fosse preciso. O calçado (quando havia) levava meias solas, gáspeas ou qualquer componente que se desgastasse. Os poucos equipamentos que existiam como o fogão e a telefonia (rádio) eram reparados vezes sem conta, já para não falar nos tachos, panelas e outros utensílios. Nada se jogava fora por moda, gostos ou apetites.

A industrialização veio alterar este estado das coisas ao criar riqueza e conduzir-nos para uma sociedade de consumo onde a regra passou a ser “usar e deitar fora” até porque, produzindo em massa, era necessário consumir ao ritmo da produção para as fábricas poderem continuar a produzir. Até parece que as coisas perderam a utilidade, o brilho e a beleza pois o que era insubstituível virou descartável.

Foi assim que passamos a viver um novo ciclo, a geração do descartável. Roupas, calçado, telemóveis, computadores e todos os equipamentos electrónicos, eletrodomésticos, móveis, utensílios e qualquer bem de consumo, tudo passou a ser descartável.

Como a sociedade é treinada e educada para usar e abusar do descartável , as pessoas, talvez por isso mesmo, passaram a ter a mesma atitude em relação aos relacionamentos e aos outros… Devem considerá-los como mais um bem de consumo, igualmente para usar e deitar fora… Assim, agora, descartáveis são os velhos porque já não têm utilidade, descartáveis são os doentes e inválidos porque já não produzem, descartáveis são os conjugues porque já não são novidade, descartáveis são os amigos quando dizem as verdades, descartáveis são… e a lista nunca mais acaba.

Quando tudo é descartável, tudo é passageiro, fugaz, e nada, mas mesmo nada, tem durabilidade assegurada. E a verdade é que a tendência do descartável, do inútil, apesar de algumas reticências que a crise colocou, ainda está na moda, em voga, e não sei quando nem como irá acabar.

E tudo isto porque conheci há pouco tempo a “Dores” (nome fictício pelo respeito à sua privacidade e ao medo de represálias), uma vítima desta sociedade do descartável porque já não é útil, já não serve. Era uma mulher jovem, bonita e atraente, casada e com emprego de que gostava muito e onde os seus serviços eram muito elogiados. A vida sorria-lhe e o seu sonho era ter um filho. Mas o mundo e a vida às vezes dão tantas voltas e tão rapidamente, que só fica a surpresa, o espanto, a tristeza da impotência. E aconteceu-lhe.

Aos vinte e sete anos foi-lhe diagnosticada esclerose múltipla, uma doença crónica e degenerativa que afeta cerca de cinco mil portugueses, geralmente jovens adultos entre os vinte e os quarenta anos, com mais incidência em mulheres. Não era o fim do mundo porque a doença tem tratamento, aprende-se a viver com ela apesar de algumas limitações.

Os maiores problemas vieram-lhe não da doença em si, mas de ter passado à condição de descartável, de objeto a discriminar, o que é inadmissível sobre qualquer ser humano, diria criminoso quando sobre alguém que está doente. Foi o seu caso.

Começou em casa, com o marido ao não aceitar nem compreender a sua situação de saúde, as limitações que passou a ter nem a gravidez que tanto desejava e que assumiu levar até ao fim quando aconteceu, acabando por ficar só, com a doença e o filho.

Depois foi no emprego onde, a partir do momento em que a patroa soube da sua doença, começou a implicar por tudo e por nada. O que estava mal era culpa sua. Passou de “bestial a besta” no espaço de pouco tempo, com tentativa de despedimento não consumado por inviabilidade legal. Não o conseguindo, alterou a estratégia e usou a adulação para atingir o seu objetivo. Mudou-lhe a categoria profissional para, durante a sua ausência num tratamento hospitalar, lhe “preparar provas forjadas” de negligência profissional com que foi confrontada no regresso. Sujeita a pressão psicológica terrível, foi suspensa e demitida em poucos dias sem hipótese de recurso, recebendo uma indemnização de miséria longe daquilo a que tinha direito.

Ao ser descartada como “produto que perdeu o interesse”, o mundo desabara-lhe em cima “enquanto o diabo esfrega um olho”. A chegada da doença, só por si um grande mal, trouxe-lhe outros, o da separação e do desemprego, como resultado da discriminação, por se tornar um bem descartável neste mundo que é o nosso, que lhe viriam a agravar o estado de saúde. E, no entretanto, como que a vida quisesse pregar uma partida, o ex-marido foi afetado por doença grave e morreu…

É assim que a “Dores”, hoje com trinta e seis anos, limitada na saúde e com um filho para criar, está sem emprego e sem marido para ajudar em tal tarefa, à procura de trabalho que a crise e a discriminação lhe rejeitam, como se fosse culpada de estar doente…

É esta a sociedade que criamos, esquecendo-nos que, de um dia para o outro, podemos também tornar-nos um produto descartável, até para os que nos são próximos. É só uma questão de tempo e ninguém diga “desta água não beberei”…

E dizemos nós que somos civilizados!!!…

Já agora, porque não mudar de língua?

Ponderando bem, se fosse deputado da nação propunha que se deixasse de falar português em Portugal. Sim, eu disse e repito: DEIXASSE DE FALAR PORTUGUÊS.

Ao que parece, é uma língua de parolos, de gente atrasada num país velho e de velhos, que nem é boa para ser cantada. Dizem que é difícil e basta ver as notas nas escolas, as piores a par da matemática. Só não percebo porque será que as nossas crianças a aprendem com tanta facilidade!!! Provavelmente por serem inocentes, o que quererá dizer que é uma língua de “inocentes”…

Para além do mais, com o novo acordo ortográfico (e com o que não está no acordo), qualquer dia o português irá mudar para brasileiro. Vale a lei do mais forte pois sempre são duzentos milhões contra dez. É só uma questão de tempo…

Para a substituir, admiti propor o mandarim como língua oficial pois é na China que está o futuro dos negócios, o poder mundial e até já são donos de parte do nosso património e das nossas empresas (agora também do BES Saúde), pelo que sempre ajudaria se falássemos a língua deles. Mas, se calhar não é o momento, porque ainda não temos… “os olhos em bico”. Mas estamos quase…

Depois lembrei-me do alemão, apesar de ter uma pronúncia “arrevesada”. Acabei por desistir desta opção com receio de nos obrigarem a ter olhos azuis e marchar “à ganso”.

O espanhol recusei-o logo à partida porque, apesar de se dizerem “nuestros hermanos” nunca foram sequer nossos primos. E, como já tivemos de os correr à “padeirada”, será melhor não ter de repetir a experiência…

Sobrou-me o inglês, que vem mesmo a calhar porque a malta só quer quem “lhe dê música” nesta língua. E, diga-se de passagem, temos meio caminho andado pois há partes do território nacional onde já é a língua dominante. Falo do Algarve. De tal forma é que, dentro de alguns anos, para se encontrar nativos daquela região, só visitando as reservas de “índios algarvios” instaladas nas serras do Caldeirão e Espinhaço de Cão, assim a modos como se fez na América para preservar alguns para turista ver… Daí que, quando nos atendem, começam por falar inglês.

Bom, seria uma proposta estúpida, não acham? Mesmo assim, acredito que seria subscrita por muito “boa” gente…

Isto veio-me “à mona” porque há dias fui a uma agência da Caixa Geral de Depósitos e, para ser atendido, retirei uma senha duma maquineta. Qual não foi o meu espanto ao ver que estava escrita em inglês. Toda. Até o número que, por coincidência, é o mesmo na nossa língua. Isto no banco do Estado!!! Olha se fosse num privado… Um péssimo exemplo de uma entidade pública, uma falta de respeito pelos seus clientes… portugueses, uma discriminação de muitos.

Os estrangeirismos, são palavras e expressões de outras línguas que se usam como um “empréstimo” quando não temos correspondentes na nossa. Acontece especialmente com termos técnicos. No entanto, assistimos ao uso e abuso de palavras, geralmente inglesas, por tudo e por nada, renegando as nossas, numa manifestação de vaidade e presunção, excluindo toda a população que não fala essa língua.

Não tenho nada contra quem aprende inglês. Pelo contrário, acho útil e importante. Mas… cada coisa no seu lugar.

O português tem palavras de origem latina, grega, árabe, francesa, inglesa e outras. Até por isso, tem grande riqueza e variedade de palavras, pelo que é uma patetice o uso de estrangeirismos desnecessários, num exibicionismo bacoco só porque é chique.

Dizia um “fulano” que ia para o Algarve num voo “low cost” fazer um “workshop” e ficava alojado num “Country Hotel”. Fiquei a perguntar-me se ele sabia o que significavam aqueles palavrões…

Porque é que uma Central de Chamadas se tem de apregoar como “Call Center”? E um Livro como “Book”? Ou um Intervalo numa reunião como “Coffe Break? Será que os ingleses usam algumas palavras portuguesas para se exibirem ou mostrarem que são cultos?

O que pensa o cidadão comum que não sabe falar inglês (nem tem essa obrigação) ao ouvir nos meios de comunicação social e fora deles gente que, para ganhar “estatuto”, tem necessidade de nos impingir “fashion”, “show-business”, “test-drive”, “lay out”, “printer”, “style”, “ranking”, “user name” etc., como se não tivéssemos palavras para dizer o mesmo? Provavelmente diria o que ouvi a uma senhora perante um caso destes: “Não percebi patavina do que aquele tipo disse. Esteve mas é para ali a armar ao pingarelho…”

Até os empresários utilizam cada vez mais palavras inglesas para denominarem o seu estabelecimento comercial, o serviço, a empresa, como se os nomes portugueses fossem maus para o negócio. Clara manifestação de um complexo de inferioridade, uma submissão pelas palavras à superioridade económica e social de outro país.

Dizia Fernando Pessoa que “a minha pátria é a língua portuguesa”, o que não parece acontecer com muitos portugueses. Talvez tenham vergonha de falar… português.

Nunca comprei um “ice cream”. Desde criança que só gosto de sorvete. É bom, é gelado e diz bem com a minha língua…

Passei a vida a ouvir dizer mal dos ingleses por se terem aproveitado na aliança que tiveram connosco. Mas agora, ao que parece, acham normal que nos devemos “inglesar”, querendo ser o que não somos.

Como dizia José Saramago, “não entendo porque bradamos contra a colonização se, no fundo, gostamos de ser colonizados”.

E que nos reste a esperança…

A natureza é perfeita e por isso mesmo concedeu-nos duas coisas que funcionam como tranquilizadores nas nossas vidas: Os sonhos e a esperança. Os sonhos são a libertação do espírito e para se tornarem realidade precisam que acreditemos que tal é possível. Já a esperança é a crença de que há a possibilidade de que vão acontecer coisas boas na nossa vida, algo com que sonhamos. É um sentimento que tem a ver com fé, com acreditar, mesmo que tudo nos indique o contrário.

Desejamos e amamos a esperança, apesar dela nos pregar muitas partidas e deixar-nos algumas vezes… à espera.

Não, não como aquela senhora que passava os dias à porta da maternidade e, quando lhe perguntaram porque é que estava ali, dias e dias seguidos, ela respondeu que “tendo esperança, estava à espera porque, quem espera… sempre alcança”. Era uma outra forma de esperança…

A esperança é um sentimento e uma força que existe em cada um de nós e que nos leva a caminhar mesmo sem vermos o caminho, porque acreditamos que ele existe tal como a ver o mundo para lá do horizonte e a ver as coisas para além dos dias.

Foi há seis anos que a Luísa teve dois AVCs e partiu as duas pernas na sequência destes, passando a viver agarrada a uma cadeira de rodas, fora da realidade, ausente do mundo que girava à sua volta, sem conseguir falar e com mobilidade muito reduzida. Toda a nossa vida em casa sofreu uma alteração profunda desde a organização dos espaços, das circulações, transformando a liberdade dos ritmos em rotinas do dia a dia, nos tempos e nos rituais, com a preocupação centrada nas suas necessidades, dando prioridade a quem não pode ter prioridade sozinha.

Os meses e os anos foram passando e, apesar da ausência de sinais de qualquer tipo de melhoras, fui alimentando a esperança com paciência, esperando que um dia pudesse virar realidade. Até porque, sendo um bem que existe em cada um de nós, não podemos nem devemos libertar-nos dela para permanecermos vivos e ser felizes.

É certo que, associado à esperança está sempre o medo, pois não existe um sem o outro, o medo de que a esperança seja em vão, o medo de que algo não aconteça como nós esperamos, tantos medos quantas as esperanças.

Recentemente a médica que a acompanha reduziu-lhe ao mínimo um medicamento essencial do seu tratamento. A partir daí a Luísa começou como que um lento despertar, inicialmente em pequenos sinais e, pouco a pouco, com alterações significativas no seu estado, ao ponto de, nalguns momentos, interagir e conseguir estabelecer um diálogo coerente, inclusive com algumas das suas “saídas” com humor que lhe são tão características, apesar de ter desaparecido a memória de curto prazo e se mantenha a desorientação no espaço e no tempo.

Há alguns dias atrás, quando entramos no quarto para a levantar, deixamos cair uma bisnaga, que fez um pequeno estrondo ao bater no chão. Deitada mas já de olhos abertos, soube dizer-nos: “Cuidado, que acordam a menina…” E noutro dia à noite, víamos uma tourada na televisão. O cavaleiro que estava a atuar foi trocar de montada e ao entrar na arena o novo cavalo levantou o rabo e fez ali mesmo as suas necessidades. Saindo do seu mutismo, voltou-se para mim e disse: “Olha, o cavalo assustou-se tanto ao ver o touro, que até teve uma crise de diarreia…” E, pouco a pouco, maiores e melhores são esses sinais…

Este “acordar” veio renovar a esperança e trazer novo alento, fazendo com que me aproxime mais do que desejo ao mesmo tempo que me afasto do que temo. Pode até ser enganador mas, contudo, faz com que a vida seja mais agradável e o peso mais leve.

No entanto, a esperança vem sempre acompanhada do medo, já que um e outro são inseparáveis. Tenho consciência plena disso. Por um lado, o medo de que a esperança seja uma miragem e nunca se chegue a concretizar, fazendo com que a espera seja em vão. No caso da Luísa, agora que há sinais de algumas melhoras, chega um outro medo que nos traz espectativa e alguma preocupação. É o medo da sua reação ao “despertar”.

Como será que a Luísa vai reagir quando tomar consciência do seu estado de saúde, do aumento considerável de peso, das suas limitações físicas, da sua falta de mobilidade, dos seus vazios de memórias recentes? Tendo “adormecido” com uma situação física normal, como vai encarar a sua situação ao aperceber-se da nova realidade, sem que se lembre do que quer que seja ou de razão plausível para tal? Será que daí pode advir algum estado depressivo ou alguma outra reação negativa? Ou não serão só medos e fantasmas que vamos criando dentro de nós?

Continuo a viver com esperança, sabendo que muitas das coisas boas conseguidas nesta vida foram obtidas por gente que acreditou, que teve esperança e soube esperar.

Escolher o caminho da esperança é ter uma razão para viver, é optar pela vida, mesmo que aquela possa ser uma simples “luz ao fundo do túnel”. Mas é uma razão válida. Bem pelo contrário, se nos deixarmos dominar pelo medo e permitirmos que ele tome conta de nós, não conseguiremos viver. Daí que, entre os dois, opto pela esperança, que é o mesmo que optar pela Vida…

Trabalhe para o bronze, cá dentro…

O meu filho diz que os adeptos de futebol são uns sofredores. Sofrem enquanto a sua equipa não mete um golo, sofrem depois com medo que o adversário marque, sofrem pela incerteza do resultado, pelo remate à trave, pelo livre perigoso junto à área, sofrem, sofrem. E sofrem esperando como compensação a vitória.

Nos últimos dias descobri outros sofredores, não por um clube mas por uma causa comum. E são aos milhões só em Portugal. Encontrei-os de papo ou de rabo para o ar, de pé, sentados ou deitados, nas posições mais incríveis, o mais despidos possível até onde o decoro o permite (ou para além dele), “besuntados” com óleos, cremes ou sprays, junto às piscinas, na praia ou até na varanda, “esparramados” ao sol como os lagartos, a “suar como cavalos”. Trata-se dessa legião de gente que o bom tempo leva até à praia onde “trabalham para o bronze”.

São milhares de corpos espalhados ao longo da praia quais focas fora de água, corpos esses que, regra geral, nada têm a ver com os corpos que nos prometem nos anúncios publicitários como “corpos Danone” e outros que tais… E é ali que descobrimos tatuagens e piercings nos sítios mais incríveis do corpo humano…

E ficam horas e horas debaixo do sol abrasador, virando-se como a sardinha na grelha para que o “tostado” seja uniforme, como quem cumpre uma promessa. Tudo em nome do visual, aquele visual da cor do chocolate que é tão apetitoso. Talvez até seja por isso. Gosta-se de chocolate, gosta-se de comer chocolate, talvez se queira ficar da cor do chocolate pelo desejo inconsciente de se querer “ser comido”. Ou será mesmo só pela cor?

Em tudo isto há um absurdo. Os brancos, que fazem a apologia da raça branca, querem ficar mais escuros, quase negros. Na maior parte das vezes não conseguem passar de “índios”, de tão vermelhos que ficam, quais tomates maduros… É só ver os ingleses de pele leitosa e sardenta a quererem apanhar o sol todo no primeiro dia… E não são só eles… E depois começam a largar pedaços de pele, parecendo que a estão a mudar como as cobras. Será que são da mesma espécie?

E os negros ao sol, quererão ficar brancos como o Michael Jackson? Será que o sol lhes faz “desbotar” a cor como nas madeiras?

Se o tom de pele predileto do povo é a cor de chocolate, mais ou menos clara, porque não se promove a multiplicação da “mulata” e até mesmo da “cabrita” (gosto mais do tom) como o fizemos com toda a naturalidade em África, promovendo as relações inter raciais, numa manifestação multicultural? Seria mais simples e o tom de pele ficaria sempre uniforme, perfeito, sem necessidade do sacrifício ao sol, quando não no solário…

Tudo isto porque o meu filho me levou por alguns dias ao Algarve, junto à praia, o que já não fazia há alguns anos. E ao sentar-me com um livro junto à piscina ou na praia dei comigo a observar o “sofrimento” de muita gente em nome da estética, esquecendo os avisos dos dermatologistas, e não só, relativamente às consequências que podem advir de um abuso da exposição solar do corpo. Verdade seja dita que, noutros tempos, também fui um “crente” e um “sofredor” em nome da imagem. Vi-me há quatro décadas atrás com dois “marmanjos” cá do burgo em Torremolinos”, que estava na moda, numa estadia de quinze dias quase toda ela muito “cultural e divertida” à volta duma piscina, deitado na toalha em poses diferentes e sucessivas, aplicando um óleo à base de azeite sempre que me virava… E eram muitas vezes ao dia.

A praia é para milhões de portugueses um prazer, seja pela liberdade que nos faz sentir, pelo “bronze” que é sempre moda ou pelas noitadas, mas não deve ser um sacrifício. E, como um prazer, deve ser usufruída por todos os que gostam e podem. Para toda essa legião de compatriotas, recomendo vivamente que façam praia “cá dentro”, em Portugal. Temos praias fabulosas que são cartaz turístico lá fora mas que são esquecidas por nós, nós que deveríamos ser os primeiros a reconhecê-las, a gozar a sua beleza e o prazer que proporcionam.

É certo que a vaidade leva-nos a querer outros “paraísos”, como se “o que é estrangeiro é que é bom”. Noutros tempos, viajava-se para trazer nas malas autocolantes dos hotéis por onde se tinha andado, fazendo os amigos e vizinhos roerem-se de inveja. Hoje faz-se o mesmo de outra maneira, apregoando que “estive em Punta Cana, na República Dominicana”, “passei férias no Brasil” ou “fui ao México”, como se ir a um desses países em rebanho, ser agarrado no aeroporto e enfiado num autocarro direto a um “Resort” no meio de nenhures onde se passam dez dias com “tudo incluído”, a comer até dizer chega (quanto mais se comer mais barata fica a viagem, desperdiçando sempre muita comida que os locais nem cheiram) e apanhar sol, para voltar a ser enfiado noutro autocarro de regresso ao aeroporto e a casa, permitisse conhecer o país ou a região. Pura ilusão, grande engano. Para isso, para “trabalhar o bronze”, usufruir da praia e “gozar as noitadas”, recomendo sinceramente que nos deixemos de “peneiras” e aproveitemos o que é nosso. Se é só pelo “sacrifício”, como diz o slogan, “vá para fora cá dentro”. E verá que fica orgulhoso do que é nosso e, já agora, … bronzeado.