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Em que posso ajudar?

Até parece mentira, mas não é: Há pessoas “condenadas” a serem… boas pessoas. Diria mesmo, excelentes. Não têm como fugir a esse desígnio. Não sei se é inato, se lhes está na “massa do sangue” ou se aprenderam a ser assim tendo alguém como exemplo. Nalguns casos, copiando-o por ser bom, noutros, usando-o como modelo a rejeitar, por ser mau. O seu principal objetivo de vida é ajudar os outros e fazem-no com toda a naturalidade, como se tivessem vindo a este mundo só para servir. Nos últimos tempos tenho acompanhado ações de algumas delas, de cariz humanista e solidário. E o curioso também, é verificar que uma boa parte são jovens e meio jovens, contrariando esse mau hábito que temos de ver e dizer mal da juventude de hoje.

Ainda há dias fui surpreendido com a atitude de uma mulher que vive momentos difíceis. Quando lhe falaram da situação crítica de outra, a sua reação imediata foi: “Em que posso ajudar”? Como é possível alguém na sua situação oferecer-se para ajudar os outros? Só por um desprendimento total de si mesma, colocando sempre o próximo em primeiro lugar. Como se as dificuldades dele sejam sempre as mais importantes, as mais urgentes, aquelas que têm de ser resolvidas… Uma lição de vida a confirmar que todos podem ajudar de uma ou outra forma e quaisquer desculpas para o não fazer, não passam de desculpas esfarrapadas. Há sempre algo que podemos fazer pelo “outro”, até porque há muitas coisas que não custam nada, para as quais não se exige dinheiro, só boa vontade ou um pouco de tempo.

Há dias foi-me permitido aceder à mensagem de uma senhora ainda jovem, também um exemplo de solidariedade, partilha e dedicação aos que precisam, quer sejam pessoas ou animais com necessidades. Não discrimina quem precisa, não olha para o lado quando se depara com um caso. Abdica de si para acorrer a um necessitado, é feliz por poder ajudar e partilhar. A mensagem era dirigida a uma sua amiga, também ela jovem, também ela solidária. Um desabafo que, só por si, revela uma alma generosa, um coração cheio de bondade e espírito de bem fazer. São razões mais que suficientes para a transcrever:

“Eu adoro ajudar. Acredite, sinto-me mesmo feliz… da outra vez não ajudei com mercearia. Por isso, compro algumas coisinhas agora… Amanhã, às 12h, deixo tudo aí…

Muitas vezes dizem-me que não posso ser assim e que nunca vou mudar o mundo. É verdade. Mas, pelo menos, quando ajudo o meu mundo, faz a diferença. E muitas vezes essa diferença, por mais pequena que seja, é entre comer ou não comer…  Sejam pessoas ou animais. Ajudar não tem que ser caro, nem ter idade, nem estatuto. Muitas vezes ajudei sem abrigos quando estudava no Porto. Comia menos gelados ou ia menos vezes ao shopping depois das aulas. E trocava isso bem por lhes poder dar uma baguete ou sopa quente … enche-me o coração e sinto-me útil.

Às vezes dizem que, com tantas pessoas a precisar, eu só ajudo animais. Dou a mão a quem precisa e, infelizmente, essas pessoas que dizem isso, nem ajudam pessoas nem animais. E nada me deixa mais feliz do que ser útil aos outros… e até ajudo muitas vezes naquilo que não é visível, mas faz toda a diferença para a qualidade de vida e bem-estar das pessoas…”.

Há quem pense que só as pessoas com posses e bem instaladas na vida podem ser solidárias. Que só essas podem ajudar, partilhando um pouco do que lhes sobra. Não é verdade. Todos e cada um à sua maneira e em função da sua situação, podem ajudar o seu próximo, se souberem partilhar o muito ou pouco que têm, libertos do egoísmo que nos domina. Esse desprendimento de si não tem a ver com idade, estatuto social, cor da pele ou situação financeira, pois encontramos excelentes exemplos em todas elas, com naturalidade, apesar de não termos uma cultura e educação de base para a solidariedade.

Como é o caso da senhora Maria, cuja história real conheci há dias. Ela anula por completo a idade como desculpa para se não poder ajudar e não partilhar. Mulher simples de uma aldeia de Lousada, já ultrapassou os oitenta anos de idade. Viúva, reside numa casa térrea sem grandes condições de habitabilidade. Ainda é ela que cultiva o quintal, apesar das limitações físicas (anda permanentemente curvada, derreada, em função de um problema de saúde na coluna). Para sobreviver, vai gerindo e esticando a sua mísera pensão de reforma, que não dura tanto como os dias do mês, além de retirar do quintal o que pode. No entanto, apesar da situação precária, durante muitos anos manteve um ritual diário, com pontualidade e rigor britânico: às quatro horas da tarde sempre teve preparado o lanche para um casal de irmãos vizinhos adultos. De tal forma, que o vinho que produz no quintal era todo bebido por eles ao lanche. Além disso, sempre comprou pão suficiente para os abastecer, dia após dia. E, ano após ano, todos os dias, à mesma hora, aquela senhora recebia os seus convidados em sua casa, partilhando alimento e companhia. Depois de falecer um deles com doença grave, em nada alterou a sua atitude com aquele que ficou. Aos olhos do cidadão comum, seria ela que devia beneficiar da atenção e solidariedade de quem lhe está mais ou menos próximo, mas é precisamente o inverso. E sente-se muito feliz por poder dar-se aos outros, partilhar com eles o pouco que tem, o que torna o seu gesto muitíssimo mais raro e valioso. Diria mesmo muito mais nobre, porque a grandeza do gesto é tanto maior quanto menor é o tamanho da sua bolsa …

Há exemplos em que vale a pena meditar e que nos devem servir de guia e inspiração para uma prática de vida que começa na pergunta: “Em que posso ajudar”?

Onde é que a beleza está a mais num jogo de futebol?

Devia estar vaidoso (mas não estou) porque a FIFA, o organismo que superintende o futebol mundial, talvez com base numa das minhas crónicas (isto é presunção a mais …) decidiu proibir a filmagem de mulheres atraentes nas bancadas durante a transmissão dos jogos de futebol no Mundial. E só pode haver uma justificação: “São um perigo para a navegação”. Além de não aparecerem mais na televisão neste Mundial por imposição dos “manda-chuvas da bola”, não me admiro que um dia destes os restantes órgãos do futebol mundial e nacional proíbam também a sua entrada em todos os estádios, precisamente pelo perigo que continuam a representar. Sim, se uma mulher bonita, sensual e com vestido “atrevido” sai à rua e caminha junto à berma do passeio com “aquele andar que os gatos demoram anos a aprender”, é certo e sabido que alguns carros vão chegar a casa com a “lata amolgada”. Só pode. Algum condutor vai estar atento à luz de travagem do carro da frente, quando o seu olhar “está preso” naquela “bomba” sobre a berma do passeio? Claro que não, a não ser que seja cego ou a mulher lhe tenha posto umas palas para não ver os lados da rua. Ora, o que aqueles ditos senhores, que supostamente sabem o que é melhor para o futebol (há quem pense que só sabem o que é melhor para o negócio) viram nas imagens das caras coloridas e lindas que a televisão nos foi mostrando para dar alguma alegria à tristeza de alguns jogos do Mundial, foi somente uma “concorrência desleal” aos pontapés e cabeçadas na bola. Como são quase sempre velhos e chatos que estão nesses lugares, além de já não “tourearem”, provavelmente já nem sequer são “aficionados”. Daí o verem numa jovem loura enrolada na bandeira da Croácia, com a cara pintada com as cores do seu país, uma forte concorrente, que tira o protagonismo aos artistas da bola e vá-se lá saber porquê. E ainda não mostraram aquela morena de minissaia e com camisola da argentina de decote generoso, onde se podia ver tatuado um longo texto em letra miúda, parte do qual ainda ficava escondido por debaixo da camisola no bico do decote. Seria caso para perguntar, como é que um telespectador podia ter acesso à leitura do “texto integral”, para “ajuizar da sua valia”. Caso contrário, seria como ler um livro onde faltam algumas páginas …

A FIFA é uma entidade abstrata, de que só tenho a imagem da careca do presidente atual e a lembrança do custo absurdo da suite onde se encontrava instalado o presidente anterior durante um dos últimos Mundiais, um tal Blatter, que foi despedido sem honra nem glória.

Mas, voltando à proibição da filmagem de mulheres atraentes na bancada, é caso para perguntar: “E se elas estiverem num camarote ou na Tribuna presidencial? E se o presidente de um qualquer país for uma mulher, como é Kolinda, presidente da Croácia, com todos os “atributos” que devem constar no catálogo da “censura”, não pode ser filmada durante o jogo, nem mesmo quando toca o hino nacional do seu país e ela se levanta? Além disso, coloca-se uma questão muito intrigante: Não se podem mostrar mulheres atraentes. OK. Será que é distribuído um catálogo a mostrar quem são as mulheres atraentes e as que estão excluídas da categoria e que não estarão sujeitas ao veto FIFA? E se for uma daquelas que mete medo ao susto, pode aparecer nas filmagens televisivas a “ocupar tempos mortos” enquanto algum jogador finge que também está morto? Ou será que a partir de agora, nessas paragens do jogo vão-nos mostrar só os “cromos da bola” habituais, homens feios e barrigudos, em tronco nu e com a barba por fazer, de olhos esgazeados pelo fanatismo ou com fatiotas exóticas e chifres na cabeça, não sei bem a que título? Que raio de gosto …

É preciso bom senso e, se for caso disso, um grande movimento que faça aquela gente ponderar e ver que não tem pés nem cabeça tal diretiva. O futebol é um espetáculo no seu todo e a beleza faz parte dele. Mais ainda: Num Mundial de futebol, onde se juntam claques de todos os países participantes, dando um colorido e alegria que fazem do evento uma festa e um convívio universal, seria enorme estupidez esconder as imagens dessas claques, porque são parte essencial do espetáculo. Muitas vezes recordo o Euro 2004 e aquilo que vi nas ruas do Porto e no estádio do Dragão com a onda laranja da Holanda. Valeu a pena acompanhá-los na rua e foi excecional assistir ao belo espetáculo que foram dentro do espetáculo do jogo de futebol. E a partir de agora isso não pode ser mostrado porque no meio daquela onda laranja pode haver “curvas de fruta” que a FIFA considera “impróprias para consumo visual”, porque é disso que se trata.

Ao que nós chegamos com este “moralismo bacoco”, que mais não é senão uma deriva absurda do movimento contra o assédio sexual. Se fosse mulher, considerava-me discriminada por não estar em pé de igualdade com qualquer homem, por mais feio que Deus o tenha feito. Porque é que um brutamontes de cara mal pintada e com os dentes arreganhados pode aparecer na televisão no meio de um jogo de futebol, enquanto a uma mulher bonita, por mais puritana que se apresente, não lhe é concedido esse direito? Como diz o povo, “ou há moralidade ou comem todos”.

Resta-me uma consolação: O Mundial acabou e a nossa seleção já estava em casa quando “aquelas cabeças iluminadas pariram ideia tão brilhante”. Daí que, aquele interesse que me fazia estar colado ao televisor para ver o jogo do princípio ao fim, acabou quando acabou a nossa estadia na Rússia. “Perdi o apetite” pelo Mundial, com ou sem o enfeite das caras bonitas, se bem que continue a gostar de ver caras de mulheres atraentes, ou a natureza não estaria a funcionar no seu melhor …

Sem explicação. Mas emocionam…

É na natureza que encontramos as obras de arte mais perfeitas, a beleza no seu esplendor, sendo nela que os seres humanos vão beber conhecimentos e inspiração para realizarem as suas obras de arte que, quase sempre, não passam de imitações grotescas da natureza. Curiosamente, também são os animais que mais nos surpreendem, provando-nos frequentemente que estamos longe de saber tudo sobre eles, a começar pelos animais de estimação. Se em parte já se explica a sua perceção em detetar doenças como cancro, diabetes e hipertensão, a identificação do período de ovulação de uma mulher e até as emoções, o seu sexto sentido, que lhes permite muitas vezes antecipar uma situação que ainda não aconteceu, não tem explicação credível. O que é que lhes permite prever terramotos, tempestades, convulsões próximas em seres humanos e até a morte de humanos?

Ainda não há respostas para tais capacidades que vão para além do comum e que, a par de muitas outras, os tornam companheiros para uma vida, com factos que surpreendem e emocionam.

Sempre que posso e o tempo deixa, vou dar uma volta com a minha cadelita a “rebocar-me pela trela”. Para descansar da pressão que faz a puxar, logo que entro nas ruas calmas da Costa e depois no monte, solto-a e deixo-a correr à vontade. Faz exercício e abate a barriga da boa vida que nada tem de “vida de cão”. E ela corre atrás dos gatos, ladra a dois ou três cães habituais ignorando os outros e até quando vê alguma ave, dá-lhe uma corrida para a “espantar”, presumo eu. Depois de uma dessas deambulações, quando cheguei a casa larguei-a no jardim e só à hora do almoço me lembrei dela, pois habituou-se a ficar junto da mesa à espera de algum “aperitivo”. Como nesse dia não apareceu à hora habitual, fui procurá-la e dei com ela deitada e a cheirar a tralha que tenho sob a churrasqueira, como se houvesse ali caça. Só me ocorreu que pudesse ser algum rato. Por isso, coloquei estrategicamente três caixas para impedir a fuga, armei-me com a vassoura e fui tirando as botijas de gás e outras coisas mais ou menos inúteis que ali tenho guardadas. Quando saiu o último traste, vi qual era a causa da fixação da “Becas”: um filhote de melro aninhado no canto da churrasqueira, provavelmente caído do ninho. Peguei-lhe com cuidado e deixou que o colocasse numa caixa de sapatos sem tentar fugir, abrindo somente o bico de fome e sede. A “Becas”, que no dia a dia corre atrás da passarada, não mais saiu de junto da caixa onde permanecia aquela ave indefesa, umas vezes cheirando-a, mas quase sempre permanecendo deitada, de olhar fixo no pequeno melro e com as patas da frente cruzadas uma sobre a outra na expectativa. Levei a caixa para a sala, dei-lhe de comer e beber e nós almoçamos, mas a cadela manteve-se firme como se lhe tivesse sido incumbido o “serviço de guarda” daquele filhote órfão, ignorando-nos e até se esquecendo do seu “interesse” na refeição. E fez disso a sua vida o dia todo. Quando à noite chegou a Alice, com quem costuma brincar, contrariamente ao habitual fartou-se de ladrar, dando de vez em quando pequenas corridas em direção à caixa onde permanecia a avezinha, como que a querer dizer-lhe para ir ver o que estava lá. Só visto. Mas o que mais me emocionou foi aquela quase devoção na função de guarda ao indefeso filhote de melro, como se tivesse compreendido o seu drama e a sua fragilidade.

É frequente assistirmos a comportamentos de animais, em especial cães, que nos deixam estupefactos, quando não emocionados. A sua perceção do estado emocional do dono e o seu comportamento com ele em função desse estado, é reveladora de capacidades que estão para além da nossa sensibilidade. Tal como em função do estado de saúde, quando não da morte. Foi o que aconteceu na casa de um amigo onde há vários cães. Um deles, sempre que alguma pessoa que não faça parte da rotina diária ali entra, ladra insistentemente. Nesse dia, de forma fulminante e inesperada, o dono caiu sem vida, sendo levado para um dos quartos. No choque da tragédia a notícia correu rapidamente, acorrendo ali algumas pessoas em solidariedade com a família. E aquele cão, que em circunstâncias normais se fartaria de ladrar, passou a acompanhar os visitantes até ao quarto onde estava o dono sem soltar um latido sequer, como que percebendo que algo de grave lhe acontecera, quem sabe mesmo, que ele falecera.

Durante algum tempo da minha vida tive residência profissional em Lamego. Um dos vizinhos da casa onde eu estava instalado, para se “desfazer” do cão que tinha, aproveitou uma ida a Vila Real para o levar e abandonar naquela cidade. Para sua surpresa, uma semana depois quando chegou a casa, o cão estava deitado à porta. Conheço outros casos semelhantes, mas o que considero mais extraordinário ocorreu em Paris. O dono de um cão, por razões de trabalho, teve de se mudar dos arredores daquela cidade para um apartamento numa cidade espanhola onde não tinha boas condições para ficar com ele. Apesar de contrariado, entregou-a a um vizinho e foi para Espanha. Alguns meses depois, fazendo mais de mil quilómetros sem se saber como, o cão apareceu-lhe à porta do apartamento para sua surpresa. Como é que ele descobriu a nova morada que não conhecia e onde nunca tinha estado? Ninguém sabe. E o dono compreendeu que esta demonstração de fidelidade era algo de extraordinário e o obrigava a fazer tudo para não mais o abandonar.

Em Moscovo, um grupo de cães abandonados que vive na periferia da cidade, todos os dias de manhã apanha o metro em direção ao centro da cidade, como quem vai para o trabalho. Como é que descobriram que o cento da capital russa é o local onde há mais probabilidades de arranjar comida e que a forma mais rápida de lá chegar é apanhando o metro? Os passageiros já se habituaram a estes companheiros de viagem, sendo vulgar ver-se alguns deles deitados nos bancos ao lado de utentes, quando não com a cabeça no colo de uma criança. Por norma, os cães procuram as carruagens com menos pessoas, onde é mais fácil encontrar bancos livres para se deitarem. E, ao fim do dia, voltam a apanhar o metro, desta vez para fazer a viagem em sentido contrário de regresso ao local da periferia de onde partiram pela manhã. É espantoso como estes animais sem dono conseguem comportar-se como humanos a caminho do trabalho, usando os transportes públicos naturalmente e sem erros. Será que são mesmo cães? Se muitos seres humanos têm dificuldade em viajar nos meios de transporte de uma grande cidade, como é possível que esses animais tidos por “irracionais” o conseguem? Não pude deixar de ficar fascinado com as capacidades deste grupo de cães.

Mas receio que, neste preciso momento, já façam parte da história de crueldade do ser humano: As autoridades russas antes de começar o Mundial de Futebol, deram ordem para se fazer a “limpeza” das ruas das cidades anfitriãs do Mundial, de todos os animais abandonados, de forma clara: “Eliminados”. E foram exterminados milhares e milhares de animais nas diversas cidades, com imagens chocantes do “massacre” que correram o mundo. Provavelmente, com essa matança sem dó nem piedade, os “passageiros caninos do metro” de Moscovo não serão mais atração da cidade. Em nome da “higiene ambiental” para turista ver … Apetece perguntar: E o que fizeram aos sem abrigo e indigentes da cidade, que “ficam tão mal” nas fotografias turísticas? Congelaram-nos na Sibéria ou “limparam-lhes o cebo”?

Os cães, esses cães que viajavam no metro, seriam incapazes de ser tão desumanos. E eu disse “desumanos” …

O fim do sonho. E a vida continua…

Acabou. Não há mais festa, mais esperança, mais sonho. A euforia deu lugar à desilusão, a alegria à tristeza, o elogio à maledicência. Há quem queira encontrar culpados pelo fim do sonho. A culpa não pode morrer solteira. É tempo de arrear bandeiras, arrumar os cachecóis e esperar pelo próximo campeonato, seja do Mundo ou da Europa. A seleção portuguesa de futebol veio para casa depois de cumprir os chamados “serviços mínimos”, que era passar a fase de grupos. Nos oitavos de final, o Uruguai fez a festa e os portugueses fizeram … as malas porque, no jogo das cadeiras, quando a música parou, ficamos apeados. É uma lei da vida, uns perdem outros ganham. Fica-nos um amargo na boca, agora que alguns dos principais candidatos a ganhar o campeonato já receberam “guia de marcha”. O jogo vai continuar com as mesmas regras, cada vez com menos cadeiras, até só restar uma que será disputada pelos dois que mais resistirem, com ou sem mérito, que importa.

Como não podia deixar de ser, sobram alguns comentários de café, muito mais emotivos e menos esclarecidos, onde não faltam os “Se” e os “Mas”. “Se o Bernardo Silva não tivesse falhado aquele golo” … ou “Se o Ronaldo marcasse o penalti ao Irão, conseguíamos aviar os russos” … Mas já não há volta a dar, nem vale a pena chover no molhado. Mesmo o treinador Fernando Santos, que nos levou ao topo da Europa na final de Paris há dois anos, passou de herói a vilão nas bocas de alguns “fregueses”. “Se tivesse metido o A em vez do B” ou “se tivesse jogado com dois pontas de lança desde o início” …

E nas redes sociais, onde há espaço para a criatividade e a originalidade, chovem críticas para todos os gostos. Uma delas diz: “Este rapaz chama-se Gonçalo Guedes. É natural de Benavente, tem vinte e um anos e representou Portugal no Mundial da Rússia, não tendo feito absolutamente nada. Se fosse um jogador de futebol, todos partilhavam. Mas, assim, ninguém quer saber” … Em conclusão, não faltam comentadores de sofá nas redes sociais, onde quase tudo, senão tudo, é permitido. E nisto da bola, como não se tem de provar que se é capaz de fazer melhor, pode-se dizer tudo porque não paga imposto.

Fico com saudades desta euforia lusitana que nos contagiou durante duas ou três semanas. Valeu por ser capaz de nos tirar o pessimismo em que habitualmente vivemos, mesmo ficando provado que somos especialistas a empatar. Ganhamos um, perdemos outro, o que, só por si, dá um empate. E empatamos dois. Mas se recuarmos no tempo e nos resultados, muito mais igualdades tivemos, tornando-nos um país de empatas. No futebol, como na vida, somos bons a empatar. Valeu porque nos alimentou o Ego e provou que podemos ser tão bons quanto os outros e que é preciso acreditar. E valeu porque em todo o português que vive em Portugal ou em qualquer recanto do mundo, houve entusiasmo, alegria, esperança e orgulho. Porque a nossa seleção tem-nos dado motivos para estarmos orgulhosos de ser portugueses.

Com o regresso a casa da seleção, talvez já não tenhamos multidões entusiásticas a encher as principais praças do país, onde os autarcas mandaram instalar ecrãs gigantes para “ajuntar o povo”. E também o governo, os clubes de futebol que têm estado sob suspeita e todos os que eram notícia sem ser por bons motivos, estão tristes com este regresso prematuro da equipa das quinas. Enquanto toda a imprensa falava da seleção, informando-nos ao pormenor do que pensavam e faziam os nossos jogadores, esquecia-se deles por completo e já nem ouvíamos mais nada a não ser as notícias da bola, passando para segundo plano o aumento da dívida, as greves dos professores e da saúde, as buscas da PJ e do Ministério Público. É que, as notícias de impacto, são sempre as primeiras, as que abrem os telejornais.

Diz o ditado que “um mal nunca vem só”. E foi o que aconteceu. Com a derrota da seleção diante do Uruguai, acabou-se a festa e as notícias do Mundial centradas na equipa portuguesa. Mas, para desgosto dos que gostam de folhetins emocionantes, também já terminou (penso eu) a telenovela do Sporting, deixando-nos órfãos das surpresas diárias de cada episódio. Perante estas duas perdas, o que é que nós, cidadãos comuns, vamos “consumir” nos próximos dias? Sei que nos sobra ainda o “resto” do Mundial, mas já não tem piada. É como estar a assistir aos últimos capítulos de uma telenovela espetacular depois de morrer o herói, o protagonista principal de quem tanto gostamos. Perde toda a piada. Porque ainda gostamos muito de finais felizes.

Apesar da conquista do Campeonato do Mundo de Futebol ser um sonho para qualquer português, mesmo que não seja adepto da bola, temos de pensar que não passa de um jogo, um simples jogo, onde há emoção, irracionalidade, entusiasmo, tensão e uma gama imensa de sentimentos contraditórios. De tal forma, que a maioria até nem se importa que a sua equipa ganhe com lances ilegais. Mas que continua a ser um sonho, continua.

Deste Campeonato do Mundo, fica-me na memória a elevada nota artística no golo de Quaresma com aquele pontapé de “trivela”. Fica o golo de livre marcado por Ronaldo, com execução impossível de superar e repetir. Fica também uma defesa excecional do Rui Patrício contra a Espanha. E fica a alegria e entusiasmo de milhões de pessoas em Portugal e no mundo, apesar do sonho ter o fim antes do tempo para a maioria deles. E nós, portugueses, estamos nessa maioria. Mas, é só um jogo … e a vida continua.