Monthly Archives: December 2013

Na tempestade… o porto de abrigo

O Alfredo estava desempregado há meio ano e vivia somente com o rendimento precário da mulher, muito curto para sustentar uma casa com quatro pessoas, sendo que os dois filhos já estavam em idade escolar com tudo aquilo que isso implicava. Para se poder manter, económica e emocionalmente, só teve uma solução: Regressar para o rés do chão da casa dos seus pais de onde saíra há oito anos, apesar de lhe custar muito. Teve de engolir o orgulho e a arrogância para voltar à casa paterna. E os pais? Nada questionaram, abriram-lhe a porta (e os braços) para lhe darem abrigo. Ganhou outro folgo ao deixar de pagar renda, água e eletricidade, assegurando grande parte das refeições e quem lhe tomasse conta dos filhos.

A industrialização criou uma sociedade migratória que provocou a ruptura das estruturas familiares, afastando os membros, isolando-os do grupo, pondo em risco a solidariedade e coesão familiar. No entanto, as grandes dificuldades por que passam inúmeras pessoas neste terrível vendaval da vida que estamos a atravessar, tem provocado um movimento inverso em busca de  abrigo à sombra dos mais velhos, das árvores com raízes mais profundas, onde sabem encontrar proteção mesmo que, às vezes, tenham de fechar velhas feridas, calar revoltas, esquecer azedumes. É o aproximar das famílias na luta pela sobrevivência, unindo-se, uma oportunidade de estreitar laços se, além da necessidade, houver amor.

Para muita gente, a crise veio recolocar a família no seu lugar, como o porto de abrigo para onde voltar nos dias de tempestade. E este retorno a casa, que acontece sempre nas grandes crises, é como que uma reposição da passagem da Bíblia do “regresso do filho pródigo”.

Diz-se que, quando se decompõe uma sociedade, o que se acha como resíduo final não é o indivíduo mas sim a família, o mais admirável de todos os governos. E, apesar das leis que visam a sua destruição, ela resiste porque, na longa jornada da vida, uma família apoiando, orientando e caminhando a nosso lado, é um verdadeiro presente de Deus a ser conservado para a eternidade.

Numa sociedade materialista e consumista como aquela em que vivemos, ela também tem passado por dificuldades pois muitos acham que está ultrapassada e, por isso, é substituível ou até mesmo descartável.

É certo que nem sempre os pais são a boa “cola” a unir os membros do grupo, pelos seus “desvios”, maus exemplos que não ajudam, se bem que a família não precisa de ser sempre perfeita para que nos ame até porque, se não formos capazes de ser felizes com ela, com muita dificuldade o seremos com nós mesmos.

Não devemos esquecer que tudo tem um preço. O desejo da maioria das pessoas é terem uma família de sonho, um bom casamento, uma boa relação com os filhos e isso também tem um. É preciso estar disposto a pagar esse preço, o preço de investir tempo com os seus, abdicar de ter sempre razão, dar-se ao conjugue e aos filhos. A família não nasce pronta, constrói-se pouco a pouco, dia após dia, num laboratório de amor. Entre pais e filhos pode-se aprender a amar, ter respeito, fé, solidariedade, companheirismo e muito mais. Se nos juntarmos mais com a família, mesmo que seja só nas refeições, viveremos momentos inesquecíveis com quem amamos.

Quando se trata de família, somos sempre crianças qualquer que seja a idade, porque precisamos sempre de um lar para lhe chamar lar, o nosso canto para onde podemos regressar em qualquer momento da jornada porque, sem lar e sem as pessoas que mais amamos, não podemos deixar de nos sentirmos sozinhos neste mundo.

Podemos até querer afirmar a nossa independência, regra geral mais fruto de frustrações do que de desejo porque, como animal social que somos, temos necessidade desse lugar de acolhimento.

O sucesso da geração de amanhã está no resgate dos valores de família de hoje, como pilar social, lugar de formação da nossa identidade. E se esses valores não forem preservados e postos em prática, não se perde só a família mas também a sociedade.

Tenho o necessário para viver, não tendo pouco nem muito. E, não tendo uma família perfeita, tenho uma família que me ama e que eu amo e, como a felicidade não está no ser feliz todos os dias e nem em precisar de estar a sorrir todos os dias, sou feliz porque me contento com o que tenho.

O amor de família é uma coisa quase inexplicável pois nem como pai consigo dizer aos meus filhos o quanto os amo e nem meus filhos me conseguem dizê-lo, mas tão somente, o demonstramos.

Nos encontros e reencontros há um momento especial que nos faz viajar de carro, apanhar o comboio ou o avião e fazer milhares de quilómetros, para regressar a casa, ao encontro das raízes, ao seio da família. Esse momento está aí e esperamos sempre que ele seja o reencontro com os nossos, pais, filhos, avós e netos, todos ao redor de uma mesa mais ou menos engalanada para a Ceia de Natal, numa celebração do nascimento de Jesus mas também numa celebração da família. É como se respondesse presente ao chamamento da voz da consciência ou do desejo da criança inocente que há no fundo de cada um de nós.

Neste Natal em especial, saibamos renovar a solidariedade familiar, unir forças mesmo na fraqueza, estreitar laços e fazer sentir aos que vieram de mais ou menos longe como são bem vindos a casa porque, o melhor da viagem, é sempre o regresso a casa.

E nunca nos esqueçamos que, melhor que todos os presentes debaixo da árvore de Natal, é a felicidade pela presença da nossa família.

O desejo que… não passa disso

Estava a olhar para as estatísticas – fica bem e dá um ar de entendido – e uma pergunta me vem à boca: Porque é que nas primeiras eleições autárquicas 2,5 milhões de comodistas ficaram em casa e mandaram o voto “à fava” enquanto nestas últimas, trinta e quatro anos depois, já foram 4,5 milhões que preferiram outros programas? A uma conclusão chego: Se a evolução da abstenção continuar neste ritmo, em poucas décadas só vão votar os candidatos e, talvez, as famílias.

Para mim, isso deve-se aos muitos “alternativos”, como ir ao centro comercial, ele para deitar o olho às “garinas” enquanto ela vê as montras e limpa o ranho às crianças, ou ir às vindimas no Douro ou até passear na Foz em dia de sol. Já para os analistas, a razão é o desencanto e o divórcio do povo com políticos e partidos.

A seguir à revolução, o povo depositou grandes esperanças naqueles que se guindaram ao poder, acreditando que, em democracia, a governação seria transparente, desinteressada e colocaria sempre e em primeiro lugar o país e o povo. Mas a realidade foi bem diferente, gerando muito maus governantes mas muito bem governados, com tráfico de influências e corrupção, distribuindo benesses e empregos à família pessoal e política, usando muitas vezes o poder de forma discriminatória, prepotente e arrogante, com tiques de caciquismo. Se houve casos de boa gestão e seriedade, felizmente, outros pautaram-se por um mau serviço à causa pública em prol do partido, do grupo ou dos interesses pessoais, sob um regime de impunidade.

Nas primeiras eleições havia inocência e candura na maioria dos envolvidos no processo, num tempo de aprendizagem das questões políticas em que (quase) ninguém tinha o objetivo de ser candidato, nem corria atrás de “tachos”. Puro idealismo. Mas, eleição após eleição, o idealismo foi dando lugar ao oportunismo e à corrida ao “poleiro”.

A verdade é que o povo acreditou, ou venderam-lhe essa ideia, de que ao outro dia da revolução todos eram democratas, sérios, pessoas de bem (e não à procura de bens),sem segundos interesses, como se renascidos, santificados e impolutos. Mas não eram os mesmos do dia anterior?

Claro que é ingenuidade do povo esperar que, quem os vai governar, esteja somente preocupado com os outros, com uma boa gestão e de tratar a todos por igual. É um desejo… que não passa disso. Não é um sonho? Uma utopia? Afinal, de onde é que eles nascem? De onde emanam? Não é do meio de nós, da sociedade que temos e somos? E o que esperamos, se somos a sociedade que somos? Que dela só ascendam ao poder os impolutos, uma espécie de semideuses que brotam purificados no meio disto?

É que todos sabemos (ou fingimos que não?) que somos uma sociedade de corruptos, vigaristas, golpistas e ladrões, da comissão, da “cunha e do favor, do compadrio descarado, do jeito, do presunto ou do cesto de frangos (agora substituído pelo envelope para comprar a capoeira, quando não, o aviário), da chantagem e da mentira. Ou temos medo de o admitir? Por quem aceitamos ser fiadores? A quem emprestamos dinheiro? Deixamos as portas abertas? Confiamos em quem?

Um antigo chefe dizia-me que toda a gente se vende, era uma questão de preço. No seu caso, só ainda não sabia qual. E não estava longe da realidade, pois há quem se venda (é um termo forte, talvez seja preferível dizer “disponibilize”) por uma jaqueta, um relógio (de ouro ou de latão), uma jantarada ou umas férias com a barriga ao sol cheia do “bom e do melhor”, por umas garrafas de vinho ou pela garrafeira. Mas há quem nada disto aceite até ao dia em que lhe oferecem uma moradia na praia ou um apartamento na cidade a troco de uma coisa tão simples como fechar os olhos ou assinar um papel…

Seria ingenuidade pensar que, se as pessoas no dia a dia são assim, se tentam enganar os outros das piores formas, quando se lhes entrega as rédeas do poder onde o controle praticamente não existe, o que é que se pode esperar? Milagres? Que só nos calhem os honestos? Ou os “santos” (esses estão mais confortáveis nos altares do que na cadeira do poder)? É como pôr uma raposa a guardar o galinheiro… Até se pode acertar e entregar o poder a alguém honesto e merecedor dessa confiança mas, aqueles que o carregaram às costas até à cadeira do poder, (quase) sempre acabam por apresentar a fatura…

É a nossa condição humana, uma questão cultural que a democracia e a instrução não resolveram. Pelo contrário, após a revolução de Abril os princípios e valores morais ruíram como um baralho de cartas, dando-se importância ao “Ter” a qualquer preço, num materialismo desenfreado que deixou os princípios à porta.

E os idealismos, as causas, as utopias? O que é isso, pergunta-se hoje? Coisas de antigamente, tipo bota de elástico. Importam os lugares para a rapaziada, o acesso às benesses e, se o poder mudar, haverá novos rapazes. Sim, porque em Portugal, sempre que muda o poder, e seja qual for o partido, encarregam-se de substituir todas as chefias dos serviços públicos por apaniguados, mesmo que incompetentes. Já depois destas eleições, um desses onde mudou a cor, dizia: “E onde vou agora arranjar um lugar a ganhar quatro mil euros?”

Os políticos são o espelho da sociedade, nem melhores nem piores, pelo que Eça de Queirós já recomendava que “políticos e fraldas devem ser mudados com frequência, pelas mesmas razões…”

A verdade é que quatro milhões e meio de portugueses, desiludidos, revoltados ou por comodismo, ao virarem as costas ao ato eleitoral, deitaram fora a única arma que têm para escolher ou dizer “NÃO, NÃO VOS QUERO”. E, ao abdicarem do seu uso, criam condições aos tais em quem não acreditam, para um dia se elegerem vitaliciamente e fazerem as suas próprias regras, sem que o povo faça parte delas. E há muitos a quem vontade não falta, por maior que seja a sua diarreia verbal sobre a democracia…

Nem de cá nem de lá. Estão no limbo

Na grande vaga de emigração para França dos anos sessenta e setenta, assisti à partida de muitos familiares, amigos e simples conhecidos. A aventura era enorme, exigindo uma elevada dose de coragem que o desespero foi vencendo, pois partiam “a salto”, a pé, com a roupa do corpo e uma mala cheia de esperança, fugindo das autoridades, entregues a “passadores” de credibilidade duvidosa a troco de dinheiro, sem garantia de emprego nem de nada, num mundo desconhecido e hostil, a começar pela língua. Ali chegados, foram explorados, viveram em bairros de lata, sofreram o isolamento, trabalharam sem horários nem salário digno, sujeitos a tudo para conseguirem amealhar alguns francos. Voltavam no verão, ano após ano, mais velhos, mais cansados, mais confiantes e mais bem instalados, para dar melhores condições à família e um futuro aos filhos, sem emigração.

Ao longo das décadas seguintes houve mais vagas sem a dimensão desta, com outros destinos mas pelas mesmas razões, já mais informados mas nem sempre livres de enganos e da exploração, procurando apoio em compatriotas que por lá andavam.

A crise que estamos a viver abalou a nossa sociedade, trouxe a falência das empresas e o colapso do emprego. Com a falta deste, uma grande avalanche de gente rumou ao estrangeiro, tristes ou até revoltados, em busca do que deixaram de encontrar no seu país, apesar das habilitações académicas de muitos deles, que de nada lhes serviu por cá.

No coração de cada jovem que se vê sem emprego e sem perspetivas de o vir a encontrar, mora a angústia de pensar que terá de seguir o caminho que fizeram os pais ou os avós, deixando a família, a terra, os hábitos e a cultura para sobreviver, para resolver o drama de cada um, atirando para o caixote de lixo ou do adiamento, os sonhos de viver, trabalhar e fazer parte da construção do seu país.

É longe de casa, do seu povo, da sua aldeia, que se sente a separação, que o coração aperta e a memória relembra os entes queridos. Sentem-se as saudades do sol maravilhoso, do calor das pessoas, dos amigos, dos cheiros e dos sabores, ganha-se noção do que é ser português. E sente-se o fado, porque o fado passou a ser a sua vida.

Como o desconhecido mete medo, o escape é juntar-se a outros portugueses, em clubes, associações ou nos bairros, em todo o tipo de festas como motivo de se reunirem, se animarem e apoiaram uns aos outros, em sardinhadas ou jogos de futebol, mas sempre juntos.

Sempre tive um profundo respeito por todos aqueles a quem a vida empurrou para a condição de emigrante, e sinto-o hoje muito em particular com a ausência dum ente querido, tendo de abdicar das suas vidas para abraçarem outra vida, deixando tudo para trás, carregando o pesado fardo da saudade, da amargura e da solidão.

O curioso, é que nem sempre é reconhecido esse sacrifício e esse mérito, nem onde se está nem de onde se vem, havendo mesmo casos de falta de respeito pela sua condição. Mas, mesmo sabendo que a sua terra não lhe deu condições para cá viver, não deixa de enviar as suas economias para os seus, para o seu país, acabando por ser uma força económica ao seu serviço, apesar de estar fora.

E a verdade é que, ser emigrante, é sentir que não se pertence lá mas também já não se pertence aqui. É como ficar no limbo, esvoaçando no espaço virtual entre fronteiras, suspenso sobre o nada…

Como testemunho dessa realidade, não resisto à tentação de transcrever algumas passagens de um desabafo quase dramático de  Alexandre Rodrigues, emigrante em Londres:

“Já não sou o mesmo que partiu. Essa personagem é hoje uma velha memória. O país que me acolhe vai moldando a minha consciência e, no entanto, sou suficientemente estranho nele…

…E o português em mim morre a cada dia que passa, cada vez menos português, cada vez menos ruidoso, cada vez menos refilão, cada vez menos deprimido… Cada vez que vou a Portugal sinto-me como um turista, um visitante (sou um visitante), que se sente cada vez mais distante do passado e que vê a vida dos amigos e familiares continuar sem ele.

Sou como um morto. Quando alguém morre, sente-se saudade e tristeza, mas a vida continua… Sinto-me como uma espécie de morto que de vez em quando se levanta do seu túmulo frio e visita os familiares e amigos…. Depois, a vida encarrega-se de os distrair e o morto volta para o seu túmulo, lá para esse país onde vive, essa espécie de paraíso ou inferno conforme os olhos de cada um. Por mim, é o limbo…

…E, no entanto, sinto a falta das pessoas que deixei para trás… e nós saímos do nosso outro mundo, do túmulo, para estar com eles… e depois queremos voltar para o país de acolhimento, sete palmos debaixo de terra ou sete mil léguas de distância, tanto faz…”

Mas, apesar de ter descido aos infernos ou subido ao céu, o sonho de todo o homem é voltar à terra que o viu nascer, se possível, bem sucedido.

Saibamos ser dignos do seu sacrifício, honrando-os e respeitando-os (e nem sempre tem havido respeito), até porque neste mundo em que tudo muda tão depressa, não estamos livres de ter de lhes seguir o caminho. E, à boa maneira portuguesa, estarão lá de braços abertos para nos receber…