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Obrigados a viver 100 anos… Ou mais…

Se a estatística estiver correta, os portugueses já vivem em média até aos oitenta anos. Aliás, para ser mais correto, as mulheres passam acima dos oitenta e três enquanto os homens ainda não chegam aos setenta e oito anos de idade. E todos sabemos as razões pelas quais elas duram mais do que nós … 

Isto quer dizer que, nos últimos vinte anos, os homens viram a sua esperança de vida aumentar em cerca de cinco anos, enquanto elas tiveram um acréscimo de quatro. Será caso para perguntar se vamos continuar a durar mais e mais, até passar a média dos cem anos, ou se daqui para a frente as melhorias vão ser mais lentas e reduzidas. A ver vamos, se cá estivermos. 

Mas apetece-me dizer que, por todas as razões e mais uma, temos a obrigação de chegar aos cem anos e até ultrapassá-los muito. Porque não cento e vinte ou cento e trinta já nesta geração? É que temos tudo para lá chegar: o conhecimento, a sabedoria, a informação, os técnicos de nutrição, os alimentos e a internet. E nem falo dos clínicos e todos os meios que estão ligados à medicina, cuja evolução das últimas décadas é uma das causas de sucesso no aumento da nossa esperança de vida.

Para se viver mais anos e melhor só é preciso ser dogmático e saber utilizar a informação que circula na internet. Porque lá, está tudo o que precisamos. Não é preciso mais nada. Basta seguir as instruções.Senão, vejamos: se não queremos sofrer de doenças cardiovasculares, que são das principais razões que nos passam a “guia de marcha”,  só temos de seguir à risca as “boas práticas alimentares” prescritas, comendo, pelo menos, duas vezes por semana peixe grelhado ou assado, feijão, aveia, tomate, beterraba crua ou cozinhada (apesar de odiada por muitos), meia cebola crua, três dentes de alho (reduz o colesterol mau e aumenta o bom), airelas vermelhas (uma baga que vem da Finlândia), abacate, banana, laranja, morango, kiwi e goiaba. O menu pode e deve contemplar um copo de vinho tinto ao almoço e outro ao jantar e uma pequena porção de chocolate negro para fazer a boca doce. Se formos bem comportados, nada de comer gorduras, açúcares, sal e de beber álcool (excluindo o copito de vinho tinto). E usando estes produtos com regularidade, vamos ter um coração mais forte do que o motor de um camião, a acreditar naquilo que dizem os “entendidos da net”. É difícil? Nada, mesmo nada …

Mas se o problema é o envelhecimento, a fórmula recomendada para o travar também passa pelo controle da boca, por forma a combater os chamados “radicais livres”. Por isso, se quer ficar por cá muitos e bons anos com cara de quem tem dezoito, há duas coisas que tem de se preocupar: não se deixe matar antes do tempo de forma estúpida debaixo dum automóvel e pratique um regime alimentar que o não deixe envelhecer. Assim, faça uma dieta “detox”, aquele preparado de chá verde, alcachofra, própolis, legumes, limão, fruta e verduras, tudo bem batido. Se não gostar do resultado e não for capaz de olhar para essa “mixórdia” nem sequer de cheirá-la, feche os olhos e engula, se não quer envelhecer. Além do “detox” deve comer abóbora, cenoura, batata doce, germe de trigo, mamão, laranja, limão, castanhas, açaí, maçã, pera, uvas, morangos, nozes e amêndoas. É capaz de cumprir estas indicações tão “simples” e “agradáveis”? Não sabe onde pode encontrar alguns destes produtos de nome estranho? A internet fornece-lhe todas as indicações para os conseguir. E vai ver que se o fizer a rigor, mantem-se jovem e fica com a pele lisinha e macia como de um bebé. Ou não acredita nas “verdades” da internet?

Como vê, é muito fácil (a acreditar no que nos dizem…) de impedir o envelhecimento e as doenças cardiovasculares. Mas já o ouço dizer: “E as outras doenças e males que nos limpam o sebo”? Tenha calma, pois também há soluções para tudo. Quer emagrecer? Deixe-me só procurar uns instantes e … cá está. Comece por comer brócolos crus ou em saladas. São excelentes para perder peso. Vá por mim. Até ouvi uma médica dizer que “é comida de gajas”, pois é habitual comerem para andarem “na linha”. Mas não basta. Nas carnes, vá pelo frango, peru e lombo de porco e nos peixes o salmão e outros peixes gordos. É que eles são gordos, mas não engordam. Têm Òmega-3. Grelhados, claro. Acompanhe com arroz castanho, sem o pintar, muitos legumes como repolho, cenoura, couve flor, além de aveia, cevada perolada, lentilhas, vinagre, grãos integrais e abóbora. Como sobremesa coma banana, maçã, pera, laranjas, abacate e acompanhe com um copito de vinho tinto, mas não abuse. Para fazer boca doce, chocolate negro, uma porção. E noutras ocasiões, use ovos, chá verde, chia e mirtilos. Se der resultado e ficar com o peso ideal, registe a receita e pode ganhar uns tostões na internet. Vá por mim… 

Pensando bem, o seu (e o meu) problema para não ultrapassar muito a barreira psicológica dos cem anos, é que não levamos a sério estas “bíblias da nutrição” de que a internet está bem “abastecida”. E falo por mim. Estou “condenado” a comer um “arroz de frango pica no chão”, um “cozido à portuguesa”, um “cabrito assado no forno” seja na Pitarisca ou mesmo em casa, uns “rojões” à nossa moda ou à moda do Minho e é melhor não continuar para não abrir mais o apetite – o seu e o meu. A verdade é que hoje temos demasiada informação, muitas vezes contraditória.

E, mais ainda. Quando nos dizem que este ou aquele produto é bom porque tem antioxidantes, não resolvemos nada se comermos “à fartazana”, pois a necessidade que temos deles pode ser mínima. E, se abusarmos, o mais certo é ficar de “caganeira”, pois o excesso não serve para nada. Devemos comer com peso, conta e medida, numa alimentação variada quanto rica, se queremos chegar lá. Mas não basta. É preciso muito mais do que isso … 

As (boas) recordações duma época…

Há sessenta anos atrás, fizesse chuva ou sol, ia da casa dos meus pais à vila de Lousada de bicicleta para frequentar as aulas no Colégio Eça de Queirós, um pequeno farol a brilhar no meio do deserto do ensino secundário de então. De tal forma que, para fazer exames do segundo, quinto e sétimo ano, tínhamos de ir … ao Liceu de Guimarães. Mas fui um felizardo porque a maioria dos meus colegas de escola primária não teve essa chance. Aliás, muitos deles nem sequer completaram o ensino primário. Outros tempos e muito mais dificuldades. 

No Eça de Queirós vivi boa parte dos primeiros anos da adolescência, alguns dos que mais marcaram a minha vida. Foi lá que desenvolvi o saber e o gosto pela matemática, disciplina que viria a ser muito importante em numerosos aspetos do meu futuro como homem e profissional. Também foi ali que encontrei o professor que mais me influenciou enquanto estudante. Apesar da sua licenciatura ser em medicina, o doutor Abílio soube conduzir-me pelo mundo infinito dos números. A ele devo muito mais do que o simples ensino da matéria para passar nos exames. Nunca cheguei a manifestar-lhe quanto lhe sou devedor. Lá vivi experiências e momentos inesquecíveis, tal como o torneio de futebol do Colégio que a minha turma ganhou, as sessões mágicas de hipnotismo do padre Jorge, o espetáculo de variedades organizado e ensaiado pela D. Palmira Meireles e levado a efeito na antiga sala de espetáculos dos Bombeiros de Lousada, a ida de carroça até Paredes para um jogo de futebol contra o Colégio local, os torneios internos de ténis de mesa e voleibol, a participação nos torneios de atletismo e tantos outros momentos. E fiz amigos para a vida ao longo desses anos de que guardo gratas recordações.

Como a casa dos meus pais ficava a mais de três quilómetros da Vila de Lousada, o meu pai comprou-me uma bicicleta “roda 26” (mais pequena que o normal, porque eu só tinha dez anos quando entrei no colégio) para me deslocar no dia a dia. Dessas viagens de bicicleta de casa para o colégio e de regresso a casa, guardo memória do perigo que representavam as curvas atrás do Hospital de Lousada. Passar por ali em dias de “neve” (termo pelo qual se designava o gelo na estrada), era um desafio arriscado, um perigo constante. Apesar de tomar sempre as cautelas necessárias, dei alguns “sopapos” naqueles “paralelos”, pois tão depressa estava sentado no selim da bicicleta como, de repente, estava estendido no chão. Uma manhã o Arnaldo estatelou-se à minha frente, apesar de estar confiante de que nada lhe aconteceria. Quando o vi estendido ao comprido na estrada, não consegui conter uma grande gargalhada porque o que “estava a ver”, era a “arrogância apeada do pedestal”. Um pouco antes de chegar ali, vinha-se a gabar que não havia “neve” que o deitasse ao chão. Mas não cheguei a acabar e tive de engolir o riso, pois vi-me “acampado” ao seu lado, com o rabo a congelar do frio dos “paralelos” da estrada. Quando recordo esse episódio, vem-me à cabeça o provérbio “não te rias do vizinho que o teu mal vem pelo caminho”. Nessas curvas atrás do hospital, onde o sol não chegava no inverno para derreter o gelo, este tornava o piso muito escorregadio, fazendo cair ciclistas como o Arnaldo e eu, despistar automóveis, patinar e cair pedestres por mais cautelas que tivessem. Num desses dias de geada, até a leiteira levou consigo na queda a bilha cheia de leite e a perna. Ambas ficaram em péssimo estado … Retive a imagem do leite derramado na estrada, se bem que “não vale a pena chorar” sobre ele …

Desse tempo, recordo as idas à festa da Santa Águeda, em Sousela, em romagem anual a que não podíamos faltar, além do pequeno/grande merendeiro improvisado com aquilo que cada um conseguia desviar de casa, fosse um salpicão, uma garrafa de vinho ou algum pedaço de broa, para comermos em grupo, acantonados na encosta sobranceira à capela. E se o convívio e animação eram motivo mais que suficiente para ir àquela romaria, petiscar e beber alguma coisa era o perfeito complemento. Porque nesses tempos de “cinto apertado”, qualquer patuscada que incluísse “comes e bebes” só por si era uma benesse. 

E dei eu esta volta por esses tempos do colégio Eça de Queirós para recordar o meu primo Luís. Quando entrei para o primeiro ano ele ainda por lá andava e, confesso, já não sei dizer quantos anos ainda estivemos juntos. Saiu para a vida ativa muito antes de eu deixar o colégio, mas não se esqueceu dos companheiros que ali deixou. Foi trabalhar na Repartição de Finanças de Lousada e, de vez em quando, no final do trabalho ia ter connosco e desafiava três ou quatro de nós para o acompanhar. O local de destino era sempre o mesmo: a “loja do Meireles”, situada na rua de Santo António, ali a dois passos do estabelecimento escolar. Não era preciso perguntar ao que íamos pois sabíamos de antemão que ele mandaria servir duas ou três latas de atum com cebola picada e broa a acompanhar. Para “molhar a palavra”, um jarro de “remessa”, feita de vinho com cerveja e açúcar. Invariavelmente, o programa era este, em convívio muito animado. Ele tinha prazer em convidar amigos e pagar a despesa, não só por ser o único que já tinha salário, mas por um desprendimento natural e invulgar. 

Esses tempos, da chegada da televisão a Portugal, do Elvis Presley e do rock and roll, do Pelé e do Sputnik, o primeiro satélite lançado pelo homem a atingir a órbita ao redor da Terra, deixaram-me gratas recordações, imagens de uma adolescência distante onde os amigos ocupam lugar de destaque. E a amizade é sempre um bom motivo para celebrar a vida …

Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não…

Julgo que ninguém sabe ao certo qual foi o valor que os portugueses tiveram de pagar por dívidas que não eram suas, mas sim de bancos, banqueiros, vigaristas e ladrões, por decisão unilateral de políticos e burocratas. Dizem que já passa de dezassete mil milhões, embora os buracos que se vão descobrindo irão fazer com que ultrapasse em muito os vinte mil milhões de euros. Dinheiro que saiu e continua a sair do bolso de todos nós, através de múltiplos impostos silenciosos, em que os políticos são peritos. Mas há povos que resistiram a esse “assalto administrativo” e não aceitaram que os governantes se ajoelhassem perante os poderes, político e económico.

“No ano de 2011, pela segunda vez, a população disse não às ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI). O FMI e a União Europeia tinham decidido que os 320.000 habitantes da Islândia deveriam assumir a bancarrota dos banqueiros e pagar todas as suas dívidas internacionais, que dava a base de doze mil euros por cabeça. Essa sociabilização pelo avesso foi rejeitada em dois plebiscitos. Diziam:

“Essa dívida não é nossa. Por que vamos pagar”? Num mundo cego e enlouquecido pela crise financeira, a pequena ilha perdida nas águas do Norte deu-nos, a todos nós, uma saudável lição de bom senso”.

No seu livro “Os filhos dos dias”, o escritor Eduardo Galeano”, nascido no Uruguai, dá-nos conta deste e de outros contrassensos que alguns políticos e dirigentes assumiram em nome do povo, mas que o povo rejeita liminarmente “quando é consultado”. Mas quase sempre não é ouvido, nem no seu sentimento nem nas suas aspirações. Alguém nos perguntou se queríamos pagar as dívidas que os banqueiros fizeram? Alguém nos questionou se deveríamos aderir à União Europeia? Ou ao euro? Como em tantas outras coisas, alguém decidiu por nós. Até acham que não temos “maturidade democrática” para tomar certas decisões e recusam ouvir-nos. Mas, às vezes, como dizia a letra da canção, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. E o povo toma a decisão nas suas mãos.

Ainda de Eduardo Galeano: “Há uns trezentos e sessenta milhões de anos, as plantas vêm produzindo sementes fecundas sem nunca receberem um tostão por esse favor que fazem a todos nós. Mas, em 1998, foi outorgada à empresa Delta and Pine a patente que santifica a produção e venda de sementes estéreis, que obrigam a comprar novas sementes a cada semeadura. E, em meados de 2006, a empresa Monsanto apoderou-se da Delta and Pine e também dessa patente. E assim, a Monsanto consolidou o seu poder universal. As sementes estéreis, chamadas de “sementes suicidas” e ainda de “sementes Terminator”, integram o muito lucrativo negócio que também obriga a comprar herbicidas, pesticidas e outros venenos da farmácia transgénica. Na Páscoa de 2010, poucos meses depois do terramoto, o Haiti recebeu um grande presente da Monsanto: sessenta mil sacos de sementes produzidas pela indústria química. Os camponeses juntaram-se para receber a oferenda e queimaram todos os sacos numa imensa fogueira”.

De vez em quando, vinga esta consciência coletiva do que é realmente importante para a sociedade e melhor serve o seu futuro, mesmo que os “rótulos” nos vendam o contrário. Neste caso, todos precisamos de perceber as consequências a longo prazo da utilização daquele tipo de sementes, que vêm eliminando as sementes naturais, fecundas e com capacidade de se multiplicarem. Ao seguir por esse caminho, colocamos todo o potencial reprodutivo das culturas importantes para a alimentação humana nas mãos de uma empresa monopolista, sem escrúpulos pelos reais interesses da humanidade, para quem o lucro é o objetivo sagrado. E só. Os camponeses do Haiti perceberam isso, como perceberam os de Valpaços quando se confrontaram com uma grande plantação de eucaliptos na sua região, falha de água e onde tal árvore é estranha e problemática. Sem medo, disseram não.  

A 31 de Março de 1989, o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale do Lila para arrancar 200 hectares de eucaliptos que a Soporcel tinha plantado na região. Quando o sino da aldeia tocou a rebate, oitocentas vozes entoavam juntas “oliveiras sim, eucaliptos não” e arrancaram à mão os eucaliptos plantados pouco antes, enquanto fugiam à ação da polícia que as tentava impedir. Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras, amendoeiras, oliveiras e pinho. E nunca ardeu …

E, tal como o povo de Valpaços não permitiu que os eucaliptos lhes invadissem e ocupassem a região, também os bolivianos souberam escolher entre a ilusão publicitária da “comida de plástico” e a sua cozinha tradicional, sem alardes, mas com sabedoria. E, mais uma vez, retiro do livro de Eduardo Galeano este registo “alimentar”: 

“Em 2002, fecharam as portas os oito restaurantes McDonalds na Bolívia. Apenas cinco anos demorou essa “missão civilizadora”. Ninguém a proibiu. Aconteceu simplesmente que os bolivianos lhes viraram as costas, ou melhor, se negaram a abrir-lhes a boca. Os “ingratos” negaram-se a reconhecer o gesto da empresa com mais êxito no planeta que, “desinteressadamente”, honrava o país com a sua presença. Os “anos de atraso”, impediram que a Bolívia se atualizasse com “comida de plástico” e os vertiginosos ritmos da vida moderna. As “empanadas caseiras” derrotaram o progresso. Os bolivianos continuaram a comer sem pressa, em lentas cerimónias, teimosamente apegados aos antigos sabores nascidos no fogão familiar. Foi-se embora, para nunca mais, a empresa que no mundo inteiro se dedica a “dar felicidade às crianças”, a mandar embora os trabalhadores que se sindicalizaram e a multiplicar os gordos”.

As democracias modernas, muitas vezes mais não são que regimes de milhentas pequenas ditaduras contra as quais nos devemos impor ao assumir uma cidadania plena, para as denunciar e dizer “Não”. Poder político e poder económico andam de braço dado e associam-se com demasiada frequência por “interesses comuns”, que nem sempre são os interesses dos cidadãos. A recusa dos islandeses em pagar a conta que não lhes pertencia, a consciência dos agricultores do Haiti de que a oferta daqueles sacos de sementes era “um presente envenenado”, a determinação do povo de Valpaços em não permitir que o poder económico, sob a capa de “investimento”, lhes ocupasse as terras com árvores invasoras e desajustadas à região e a escolha acertada dos bolivianos pela cozinha tradicional contra a “comida de plástico” como se fosse sinal de desenvolvimento (quando é de colonização), mais do que um sinal de esperança, são exemplos de determinação na defesa do que verdadeiramente interessa.    

Só que não passam de pequenos oásis no deserto da indiferença dos cidadãos de todo o mundo, incluindo o nosso … 

Escravos da tecnologia, perdemos o momento …

Noite de Natal. À roda daquela enorme mesa de madeira maciça, mais de trinta elementos da família estavam reunidos para a Ceia de Natal, na celebração do amor, da partilha e da pertença. À chegada dos que vieram de mais longe, dois deles do outro lado do oceano, a alegria do reencontro e o entusiasmo por estarem juntos tinham enchido a casa de vozes animadas, em conversas cruzadas de quem quer saber tudo ao mesmo tempo. Já sentados à mesa e depois das crianças pequenas terem comido, serviu-se o tradicional bacalhau com batatas cozidas e o ruído das conversas foi baixando de tom, com as bocas ocupadas noutra função. Numa ponta da mesa, uma “jovem” viúva de sessenta anos que viera da cidade, com o garfo na mão esquerda e o telemóvel na direita, ao mesmo tempo que “dava ao dente” tirava fotografias a tudo e a todos, escrevia e publicava de imediato as imagens da Ceia e ia lendo mensagens e os comentários em voz alta, numa comunicação permanente com todos os “amigos do Facebook” a quem se dedicava de alma e coração, em “pescaria” para “fisgar” algum “peixão” que lhe acabasse com a solidão. Enquanto recebia mensagens de cada um dos seus “amigos”, comentava os “resultados” dos encontros com eles. Na verdade, foi uma Ceia de Natal em que quase só esteve “presente” lá longe, ligada em direto ao aparelho que a sua mão direita manipulava muito bem apesar das seis décadas de uso, até regressar à cidade.

Apesar de já alimentada, a pequena Catarina que ainda não tinha três anos de idade, ora corria à volta da mesa obrigando o pai a atenção redobrada, que não evitou duas quedas, ora choramingava para pedir atenção ou colo. Quando a mãe manifestou sinais de incómodo pelo comportamento da criança, o pai resolveu o problema depressa e da forma habitual: levantou-se, foi ao móvel da entrada recolher o seu moderno telemóvel e, sem se dar ao trabalho de o ligar, entregou-o à “pequerrucha” que o agarrou com as duas mãos. Foi como quem deita água no lume. A pequena Catarina, que mal podia com o sofisticado aparelho, desatou a carregar aqui e ali, ligando-o, abrindo a aplicação que tinha o jogo com os bonecos preferidos e não mais foi vista aos gritos ou a correr. Acabou por adormecer sozinha, com o telemóvel entre as mãozitas, provavelmente cansada de matraquear nas teclas da tecnologia que parecia dominar melhor que os mais velhos ali presentes.

Como as coisas evoluíram: se antigamente as mães, para calar as crianças pequenas lhes enfiavam na boca a “boneca”, um pequeno embrulho de pano de linho embebida em aguardente e açúcar, fazendo “adormecer” as mais impertinentes “por anestesia”, agora dá-se-lhes para a mão um pedaço de tecnologia que manipulam instintivamente e as deixa “pedradas”, “ausentes” e anestesiadas para o que se passa em seu redor. Já nem sei o que é melhor …

O João, adolescente de quinze anos, intercalava cada garfada com as mensagens que escrevia a grande velocidade à namorada, com a mão debaixo da mesa e sem olhar ou lendo as respostas que lhe punham algum brilho nos olhos. Quando a Ceia ia a meio, mais de metade dos “participantes” estava “ausente” através desses aparelhos que toda a gente carrega no bolso ou na bolsa, mais preocupados em comunicar com quem está longe do que com quem lhe está encostado, ombro com ombro ou “de caras”, pelo “Facebook”, “Instagram”, “Twitter” e outras redes sociais. Talvez a dificuldade seja no ter de olhar o outro olhos nos olhos … Até uma jovem mãe “despachou” o ainda bebé para a madrinha ali presente, que teve de se haver com duas “descargas” intestinais da criança e uma “borradela” dos pés à cabeça, para se dedicar a essa “ingrata e difícil” tarefa de se “agarrar” ao “Facebook” enviando mensagens e fotografias dos doces de Natal da sua ceia, enquanto recebia outras, numa oportunidade para criticar: “Esta não tem vergonha de pôr farturas à mesa” ou ainda “vejam se isto é um arranjo de flores que se ponha numa mesa de Natal…”. Entretanto, a madrinha cuidava de limpar o rabinho à criança!!!

Perto do final da sobremesa, dos trinta e tal comensais só quatro continuavam “a cear” em “amena cavaqueira”. O que já não era mau. Todos eles tinham alguns fatores em comum: idade avançada, não dominavam as novas tecnologias e, quanto a redes, certamente só conheciam as de arame … Além disso, com as dificuldades de audição próprias da idade, se alguém lhes falasse no “Instagram” poderiam reagir como alguém que conheço: – Se “está grande”, não é meu.

Quando um elemento desta família me relatou esta Ceia de Natal, percebi o sentimento de “frustração” na voz e no olhar porque, no seu imaginário, gostaria de ter encontrado ali um espaço de convívio e partilha da família num momento que é único, em vez de uma triste manifestação da “dependência tecnológica” de que a maioria de nós hoje enferma, para se entregar ao instinto básico de “exibicionista”, de “mirone” e “comentador encartado”, quando não cáustico, nas “trocas de galhardetes”.

Ao ficarmos vidrados nos telemóveis, tabletes e outros aparelhos com que a tecnologia nos vem brindando como se fossem o caminho para sermos felizes, ligados à net porque sim, ao Facebook porque é baril, ao Instagram porque está na berra, a quem está longe talvez porque não tem rosto, durante as refeições de família e, muito em especial nesse acontecimento único que é a Noite de Natal, perdemos momentos que não se repetem, conversas a que devíamos pertencer e estar integrados, pormenores, respeito e dedicação aos outros e a capacidade e dever de “estar presente”. Mas não. Estamos muito mais empenhados e interessados em fazer publicidade do que se está a passar connosco e à nossa volta, armados em “repórteres do diabo” e mirones, em lugar de sermos “parte integrante desse momento”. De que, estupidamente, nos demitimos …

Ela perguntou: “Du yu espic inglish”?

Há alguns anos atrás (o que é caso para dizer: “ao tempo que isto dura”…), questionava aqui “porque não mudar de língua”? É que o português, português (de Portugal), morreu, já não existe. Tirando alguns “nativos” das aldeias do interior que ainda incluem no seu vocabulário palavras como “bloques”, “presigo”, “lapada”, “tringalha”, “borra-botas”, “indireita” e muitas mais que os jovens de hoje já não conseguem “traduzir”, já não se fala o português de Portugal. Nem se quer, nem se sabe falá-lo e, pior, até parece que temos vergonha de o falar. Porquê? Porque é uma língua de pacóvios, arcaica, ultrapassada e tão fora de moda. Tentamos espalhá-la pelo mundo e o que se vê nos países “ditos de língua portuguesa”? Adulteraram-na de tal forma que não os entendemos. À mistura com palavras da nossa língua, têm muitos outros vocábulos que ignoramos ou nos induzem em erro e até podem provocar-nos embaraços. Ora, façamos um teste: quando um brasileiro fala em “veado” julgamos que se refere a um animal selvagem de grande porte. Errado. Quer dizer “homossexual”. Ou se disser “galera”, não se refere a uma nau, mas a um conjunto de pessoas. E muitas mais poderíamos citar. Se saltarmos do português do Brasil, para o de Angola, Moçambique ou Timor, torna-se ainda mais complicado.

Mas o que mais incomoda é que, a cada dia que passa, substituímos mais e mais palavras nossas por “estrangeirismos” que nada têm a ver connosco. É só uma questão de moda, de querer dar um ar de que se sabe estar, se é culto, como dizia uma velhota da aldeia, “de armar ao pingarelho”. E tem razão. E desses “estrangeirismos”, o maior uso e abuso é de palavras inglesas. Por tudo e por nada, lá estamos nós a “gramar” com o know-how ao falar de experiência técnica, report quando temos “relatório” para dizer o mesmo, budget no lugar de orçamento ou dá-me o teu feedback quando se pede “só” opinião. Já Eça de Queirós no episódio das corridas do hipódromo em “Os Maias” exagerava de propósito dos “estrangeirismos” para mostrar quanto é ridícula essa mania.    

Engolimos a selfiequando nos estamos a fotografar a nós próprios, tudo é topquando devia ser bom ou fantástico, o que até graduava melhor. Já não corremos, fazemos running. Dizer que criamos uma “marca” é para atrasados mentais. Tem de ser brand. Até os tascos, tão tipicamente portugueses, já têm escrito à porta take awayou hot-dog. Onde é que vamos parar? Nem falo nos festivais de música que enchem os verãos deste palco à beira mar de norte a sul. NOS Alive, Freedom Festival, EDP Beach Party, Rock in Rio,EDP Cool Jazz, e muitos outros, que “não seriam nada se não fossem “vendidos” em inglês, como se a maioria dos espectadores fossem ingleses ou estivéssemos na terra dos “camones”. E não é de admirar. Quando o poder político, num gesto claro de submissão e “baixar as calças” aos reformados ingleses que povoam o extremo sul do país, pôs a sua chancela na mudança do nome dessa região para “ALLGARVE”, é caso para perguntar: “O que vem a seguir”.

Hoje deu-me para voltar a “pegar” com esta mania, esta “vergonha” ou medo de falar em português, porque um amigo me fez chegar a

carta que uma senhora escreveu a um canal de televisão para que a lessem em direto, intitulada “Du yu espic inglish?”. E eu, não tendo qualquer indicação do nome da autora, transcrevo-a em homenagem:

“Desde que aos emblemas chamam pins, a maricas gays, às comidas frias lunches e aos elencos de filmes castings, este país não é o mesmo: agora é muito, muitíssimo mais moderno. Antes as crianças liam banda desenhada em vez de comics, os estudantes colavam posters pensando serem cartazes, os empresários faziam negócios em vez de business, e os operários, tão ordinários que eles eram, pegavam numa caixa ao meio-dia em vez de tupperware.

Eu, no colégio, fiz aeróbica muitas vezes, mas, que tonta que era, pensava estar a fazer ginástica. Ninguém é realmente moderno se não disser todos os dias cem palavras em inglês. As coisas noutra língua soam-nos muito melhor.

É evidente que não é o mesmo dizerbaconem vez de presunto, ainda que tenham a mesma gordura, nem vestíbulo em vez de hall, nem deficiente em vez de handicap… sob este ponto de vista, nós, os portugueses, somos moderníssimos.

Já não dizemos biscoito, mas cup-cake, nem temos sentimentos, mas feelings. Compramos tickets, tablets, comemos sandwiches, vamos ao pub, praticamos rappele raffting, em vez de acampar fazemos camping, e quando vem o frio, assoamo-nos com kleenex.

Estas mudanças de linguagem influenciaram os nossos costumes e melhoraram muito o nosso aspeto. As mulheres não usam meias, mas panties, e os homens não usam cuecas, mas slipse depois de se barbearem deitam after-shaveque deixa a cara muito mais fresca que o tónico.

O português moderno já não corre, mas faz jogginge footing; não estuda, mas faz masterse nunca consegue estacionar, mas encontra sempre um parking. O mercado agora é o marketing, o auto-serviço o self-service, a escala o rankinge o diretor, o manager.

Os importantes são vips, os auriculares walkmen, os postos de venda, stands, os executivos, yuppies, as babás, baby-sitterse até nannies. No escritório, o chefe está sempre em meetingsou brain stormse quase sempre com public-relations, enquanto a assistantenvia mailingse organiza trainings. Depois irá ao ginásio fazer gim-jazze encontrar-se-á com todas as do jet, que acabam de fazerliftings e com algumatop-modelamante de iogurte light e do body-fitness.

O arcaico aperitivo deu lugar aos cocktails, onde se oferece roast-beef. Ainda que pareça o mesmo, engorda muito menos que a carne.

Uns trabalham num magazine, não num programa. Na televisão, quando o apresentador diz várias vezes O.K.e dança rodando pelo palco, a isso chama-se show, muito diferente, como sabem, do antiquado espetáculo; já não põem anúncios, mas spotsque, para além de serem muito melhores, permitem-lhe fazer zapping.

Espero que tenha gostado … e que não tenha ficado com stress”.

E eu paro por aqui, sem dizer “stop”, que seria mais moderno e muito mais chique …