Monthly Archives: May 2013

O último pudor…

Os pensadores do nosso tempo são claros: Os pudores do século XXI, de que somos herdeiros, deixaram de ser corporais e estão mais nos sentimentos. E há um em especial de que continuamos a ter muita dificuldade em falar, de encarar com naturalidade porque faz parte da vida de todos nós como seres vivos que somos: O da morte.

Ao longo dos últimos anos tenho observado mais de perto essa rejeição da morte como ponto de destino, a dificuldade em se falar dela, o pudor na sua abordagem.

Há momentos para viver mas também há momentos para morrer, uma lei da natureza e da vida. E quando esse momento é inevitável, importa olhá-lo com tranquilidade e tendo a preocupação de dar qualidade de vida ao doente retirando-lhe o sofrimento, esse sim, desnecessário, para que possa usufruir dos últimos dias com dignidade junto dos que o rodeiam.

Sei que é difícil ver partir alguém que amamos e estamos sempre com a esperança de um milagre para que se mantenha entre nós. E sei do que falo, porque perdi um irmão com 24 anos. Quando faleceu, o meu irmão António chegou junto de mim, deu-me um abraço e olhando-me nos olhos disse-me emocionado: “Hoje foi o Álvaro mas amanhã posso ser eu. Se isso me acontecer, quero que encares isso como um facto tão natural como foi o meu nascimento, que sigas em frente com a tua vida e que penses em mim como se eu estivesse vivo, porque eu continuarei contigo”.  Até parece que adivinhava o que vinha aí porque, pouco tempo depois e antes de completar os 33 anos de idade, morreu de forma fulminante.

Foi então o meu pai a dar-me ânimo, apesar de muito doente. No entanto, pouco tempo mais sobreviveu aos filhos, arrastando-se num sofrimento terrível nos últimos meses de vida, cego e com dores violentas, levando nesse martírio os que o rodeavam, especialmente a minha mãe.

A medicina evoluiu muito, ajudando-nos a aumentar a esperança de vida, que veio crescendo nas últimas décadas. E tal prolongamento quando acompanhado de qualidade de vida, é louvável e desejado, mas quando não faz mais do que manter o ser humano em estado vegetativo, artificialmente, sem esperança de coisa alguma, porque se recusa a possibilidade desse final inevitável, tantas vezes adiado sem sentido, sem humanidade e com tanto sofrimento?

É por isso que faço a apologia dos Cuidados Paliativos, um serviço de apoio às pessoas com doenças incuráveis, terminais ou em estado adiantado, cujos principais objetivos são prevenir e aliviar o sofrimento dos doentes e família, para que possam alcançar a melhor qualidade de vida possível. É a forma civilizada de atender estes doentes, em oposição à obsessão terapêutica e à eutanásia.

Hoje não estamos familiarizados com a morte, até porque a ideia de morte nos angustia e nos deixa indefesos. O que não se deseja é senti-la.

Quando alguém sabe que a sua doença é incurável, sente medo à dor. Mas há uma alternativa para a dor e para o medo, como também para o prolongamento artificial e inútil da vida do doente e essa alternativa passa pelos Cuidados Paliativos e pelos progressos conseguidos na última década no campo dos medicamentos para a dor. Mas para isso é essencial viver com a consciência certa de uma morte próxima, para usufruir dos últimos momentos da existência de uma maneira digna e plena.

Por tudo isso, a criação de uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital de Lousada seria um sonho que gostaria de um dia ver tornado realidade, embora essa realidade me diga no momento que o sonho tem de esperar, mas o sonho continuará.

É com vergonha e pudor, provavelmente o último grande pudor, que se fala da morte, tornada tabu, como se falar dela seja razão para a atrairmos. Temos de a encarar como  de algo que não desejamos mas que é inevitável, parte integrante da nossa condição de mortais. Ao encará-la com tranquilidade, estamos a criar a consciência de que devemos aos que lhe estão próximo o direito a um fim digno, humano, sem reservas nem sofrimento. E até porque ninguém merece estar só, muito menos morrer sozinho, sem o afago de uma mão amiga, sem o conforto da palavra de alguém.

E seria bom que na consciência de cada um não pesasse o estigma de ter prolongado o vale de sofrimento do ente querido para além do razoável, mas sim o alívio de sentir que tudo fez para que esses momentos fossem passados com serenidade e livres do sofrimento que ninguém quer. É que não é da morte que a maioria dos seres humanos tem medo, mas sim do sofrimento, sobretudo do sofrimento inútil e sem esperança.

E lembremo-nos sempre que a vida dos mortos permanecerá na memória dos vivos.

Primavera, dos cantos e dos encantos

Estamos a meio de Maio e pensei que estávamos na Primavera, mas parece que me enganei. Lá fora chove que se farta e faz frio e, em diversos pontos do país, até cai neve. Isto vai lindo… Se eu fosse velho diria: ”O tempo já não é o que era, porque no meu tempo”… Mas não digo, até porque no meu tempo na Primavera eu estava mais preocupado com a mudança de brincadeiras, deixando de jogar ao “espeto” e ao “pica” para jogar o “peão”, a “bilharda”, ir às cerejas e aos ninhos de fisga no bolso.

Sempre foi a época do ano minha preferida, não só pelo rejuvenescer das árvores, pelas flores e, sobretudo, pelos pássaros, a quem me dedicava muito. E com a melhoria das condições climáticas, já tinha mais liberdade para percorrer campos e montes, um passatempo que me dava muito prazer.

Cedo aprendi a subir às árvores, copiando o jeito de uma rapariga que o fazia com extrema habilidade: A Ana, da Albertina (Albertina era a mãe), essa maria/rapaz que não teve tempo de ser menina por ter de ser responsável antes do tempo. A necessidade de quem nada tem e para quem o pouco já era muito, fez com que ela cedo fosse apanhar sacos de pinhas para acender o lume em casa dos pais e para vender, para o que ia quase todos os dias ao monte, quando muitos proprietários nem sequer deixavam apanhar as “tonas” dos eucaliptos ou o “pinho”. Envolvia as pernas num saco de serapilheira para se proteger da casca áspera dos pinheiros (e dos olhares indiscretos dos rapazes) e, com uma ligeireza invulgar, trepava até aos mais altos – e nessa altura havia-os bem grandes .

Enquanto ela subia à procura das pinhas, eu subia atrás dos ninhos de pega, do tamanho de um cesto, ou de rola, essa preguiçosa que põe tão poucos gravetos que ás vezes as ovas até caem pelos buracos, ou de gaio, esse pássaro de cores bonitas. E arrisquei a subir também a alguns em que os meus bracitos não conseguiam envolver todo o tronco, só o suficiente para cravar as mãos na casca e conseguir segurar-me. Aprendi a conviver com todos os pássaros da região, a conhecê-los bem e a conhecer-lhes os hábitos, o canto e até o voo.

Era um prazer descobrir os ninhos dos “chascos” no meio do mato, uma espécie de quebra cabeças, de encontrar um ninho de ferreirinho nos poços ou de poupa em casas velhas, feito de trampa.

Gostava de observar através da janela do meu quarto os bandos de pintassilgos com canários à mistura pendurados nos cosmos, as flores que a minha mãe semeava atrás de casa, ou localizar os ninhos de tantas outras aves como as toldeias nos carvalhos, os tanjarros nos pinheiros, as “cerejinhas” nas ramadas, os petos em buracos escavados nas árvores, das andorinhas, das lavercas, dos pintarroxos, dos piscos, etc., etc..

Se eram as carriças e os rouxinóis os mestres do canto, eram os melros que mais me atraíam. A sua coloração preta e o bico amarelo dão-lhes um ar de solenidade, mas a sua variedade de cantos, desde a fase do namoro, mais requintado e complexo, à fase em que já têm filhotes, um som quase gutural, permitia-me conhecer pormenores da sua evolução.

E era a partir da cerejeira da Emilinha “Séria”, onde iam apanhar os frutos mais maduros, que os seguia para descobrir o ninho algures num silvado ou entre os rebentos de um lodo. Não havendo dinheiro nem mercado para comprar aves exóticas, o melro era o pássaro mais criado em gaiolas (eu nunca o consegui fazer) e o Tónio “Riço”, o empregado da minha avó, era especialista nessa criação, chegando mesmo a ensinar um a assobiar a música do “Avé”, de Fátima.

Ao observar os ninhos, às vezes era surpreendido ao dar com um filhote diferente da ninhada, geralmente maior, Era o preguiçoso cuco que ia aos ninhos dos outros comer um dos ovos e pôr um seu, deixando a terceiros o trabalho de chocar e criar o seu sucessor. Já adulto, viria a descobrir que entre os humanos também existe essa prática de pôr ovo em ninho alheio…

Mas tudo isto porque há dias voltei a ouvir uma notícia que já ouvira por diversas vezes: A de crianças que desenham o frango conforme o veem no supermercado, porque não o conhecem vivo.

E isso levou-me a refletir nesta tristeza de educar crianças desligadas da natureza de que fazem parte. É curioso que até lhe serão familiares através da TV aves exóticas como o flamingo e outras, mas não sabem nada sobre as “vidas” das que as rodeiam, vidas de seres que embelezam o cenário do seu dia a dia e que fazem parte do seu mundo, aliás, seres que fazem parte do mesmo ecossistema a que elas próprias pertencem, mas que lhes são invisíveis. Mas pensando bem, porque é que me devo admirar se nós mesmos hoje já não conhecemos a maioria dos nossos vizinhos?

Acaba por confirmar-se que “santos da casa” continuam a “não fazer milagres”. Mas seria bom que nos lembrássemos de que “antes de querermos conhecer os outros, devemos começar por nós”, neste caso, pelo pequeno mundo que nos rodeia e do qual somos parte integrante.

A evolução da retrete… (ou, da estrumeira à sala de banho)

Estava à dias sentado na sanita de uma casa de banho ultra moderna, com assento almofadado e tão macio que até me apetecia continuar ali para além do tempo necessário à função quando, face a tantos luxos para assentar o rabo, me vi a rever todo o tipo de instalações que conheci ao longo da vida, usadas para esse fim.

O rebobinar desse filme levou-me ao princípio, isto é, à infância, quando a maioria das casas da aldeia nem sequer tinha retrete. Só havia a “estrumeira”, um grande buraco feito em frente da porta da cozinha, cheio de fetos, pinho ou mato, e para onde se atirava tudo o que eram despejos, dejetos ou lixo. Ali eram feitas as necessidades de cada um dos moradores, diretamente na “estrumeira”, em pé ou agachado, ou indiretamente através do “penico”, que se usava debaixo da cama para utilização noturna.

Ao fim de alguns meses, normalmente a quando das sementeiras, a “estrumeira” era esvaziada, sendo o estrume utilizado como fertilizante orgânico no quintal da casa. E voltava a encher-se o buraco com fetos, pinho ou mato…

Na casa dos meus pais havia retrete, um espaço próprio fora da habitação mas com porta para o pátio e junto à porta da cozinha, o que já era tido como um privilégio. Lá estava aquela caixa de madeira com um buraco redondo, tapado por uma tampa com pega. Só tinha de levantar a tampa, sentar-me no buraco e “puxar”, sentindo as moscas e varejas a esvoaçar lá por baixo. E no final do serviço, dava-me ao luxo de me limpar a papel de jornal cortado aos bocados, coisa que só existia em muito poucas casas. Mas por ali, nunca consegui ler nada…

Na escola de Macieira, construída no Plano Centenário, já havia a sanita turca, uma que tem sítio para se colocarem os pés para nos agacharmos depois de descer as calças e tentar acertar no buraco estreito que está no chão, o que nem sempre acontecia. E até já tinha um cadeado para puxar o autoclismo, instalado lá no alto. Mas, quando fora da escola e na brincadeira no monte ou pelos campos, se a vontade chegava, era só procurar um qualquer recanto, fazer o serviço e limpar o dito com folhas de videira ou de couve, quando não com uma mão cheia de fetos (como são ásperos!!!…).

Já a estudar em Coimbra passei a dispor de sanitas em porcelana, mas sem tampa, “por razões higiénicas” diziam, desagradavelmente frias ao sentar. Encafuadas em cubículos estreitos, as paredes e porta estavam todas riscadas, com versos e todo o tipo de frases. A que me ficou gravada para memória futura dizia: “Neste lugar solitário, onde a vaidade se apaga, todo o fraco faz força e até o valente se c…”

No entretanto, as “estrumeiras” foram sendo substituídas por retretes colocadas num qualquer espaço exterior da casa, em geral no quintal, o que já era uma evolução.

O uso da sanita generalizou-se, democratizou-se, a retrete foi dando lugar ao WC, privado ou público, espaço de todo o tipo de leitura (não como quando o jornal era posto à frente do olho, nessa altura tinha outra função) e de escrita (nas paredes e portas)reveladoras do génio de grandes escritores e poetas, intelectuais que se terão perdido a “fazer força”. E, pela sua comodidade (e para matar o tempo de espera, que é variável de pessoa para pessoa), a sanita passou a ser um local privilegiado para ler o jornal, a revista ou o livro que se não quer perder, mesmo nesses momentos de “aperto”…

Com a melhoria das condições de vida a casa de banho passou a substituir o WC, uma designação mais abrangente, refletiva de um certo grau de desafogo financeiro, ainda mais expressivo nas salas de banho, sinal de opulência e prosperidade, crescendo em dimensão, na qualidade dos materiais de revestimentos (do azulejo ao mármore mais raro, da madeira ao cabedal), no tipo de louças sanitárias (das simples às mais rebuscadas ou até com assinatura).

As banheiras simples deram lugar aos jacúzis, que na maior parte dos casos ninguém usa mas que é bonito dizer que se tem. As casas de banho passaram assim a ser também uma exibição do luxo, da vaidade (e do dinheiro), apresentadas quase como monumentos à m……odernidade, um desperdício do vil metal ao querer-se que elas vão para além da sua função. Espalharam-se por toda a casa, muitas vezes em número superior ao dos quartos, prático para quem as usa, nada prático para quem as limpa.

Mas toda esta reflexão sobre a evolução da retrete, que foi mais extensa (embora nem sempre muito limpa…) mas que tive de resumir para a direção do jornal não me sanear, levou-me a uma questão que considero muito importante relativamente à nossa condição de seres humanos: Por mais rico ou poderoso que seja, por mais alto que suba ou mais longe que vá, por mais importante que se julgue ou mais arrogante que se mostre, todo o ser humano é colocado no mesmo nível quando sentado numa sanita, seja ela a estrumeira, a retrete, o WC, a casa de banho ou a sala de banho, numa posição de absoluta igualdade, independentemente da maior ou menor “força” que tenha de fazer, pela simples razão de que, QUANDO FAZEMOS, TODOS CHEIRAMOS IGUALMENTE MUITO MAL.

Sem uma única exceção… E será bom que nos lembremos disso, no dia a dia das nossas vidas, sobretudo quando temos a tentação de nos julgarmos superiores, diferentes ou “mais bem cheirosos” que os outros…

Só vemos o que eles querem

Ir à feira de Lousada nos anos cinquenta era entrar num mundo mágico, visto pelos olhos de uma criança. Para além de pequenas guloseimas, ficava encantado com os vendedores da banha da cobra e os propagandistas que começavam por atirar pentes ao povo para atrair a sua atenção, no meio de uma multiplicidade de sons e ruídos, pregões e chamadas pelo freguês.

Entre a multidão de compradores ou simples moçoilas – de cordão de ouro ao pescoço e faces rosadas (das papas quentes que comiam antes de irem para a feira atrair namorado) – eram os jogadores da “vermelhinha” que me despertavam mais curiosidade. Metido entre o círculo de homens à volta do jogador, ficava como que hipnotizado pela sua perícia a manusear as três cartas sobre o guarda chuva aberto e pousado no chão, tentando adivinhar onde estava a das pintas vermelhas. E se nas primeiras jogadas a descoberta era fácil e intuitiva, truque usado para convencer os basbaques de que era fácil ganhar, quando as apostas subiam ao nível pretendido a ilusão era tão bem feita que nunca acertava. Nem eu nem os “patos” que ali eram depenados.

Uma das formas que os ilusionistas usam para praticarem os seus truques é fazerem com que nos concentremos numa mão, como se fosse ali que tudo vai acontecer(focar a atenção), para fazerem o que pretendem com a outra, sem vermos nada. E foi isso que me aconteceu há dias.

Um miúdo chegou junto de mim e colocou-me o seguinte enigma: “Tu conduzes um autocarro, na primeira paragem entram 30 passageiros, na segunda entram 20 e saem 10, na terceira entram 10 e saem 5 e na quarta entram 5 e saem 8. Que idade tem o condutor?” A minha resposta foi tão rápida quanto a velocidade a que fiz as contas de cabeça: “42”, respondi eu. O miúdo deu uma gargalhada de quem apanhou um incauto: “Eu disse, Tu conduzes um autocarro…” Lembrei-me então de ter usado há uns anos atrás este estratagema, colocando a verdade à frente dos olhos para não ser vista. Eis a história.

Era diretor da ACML e tinha de organizar eventos diversos para angariar fundos . Para além das provas de perícia, o António Avelino convenceu-me a realizar também torneios de tiro aos pratos, prestando-se a dar-me apoio técnico e logístico para as provas.

Começamos por organizar um primeiro Torneio no campo de futebol de Lousada, de relativo sucesso financeiro, para a qual ele emprestou uma máquina de lançar pratos. Após o segundo torneio, aconselhou-me a comprar uma nova, tendo em conta que a que emprestara já avariara várias vezes e podia vir a ficar “pendurado” em plena prova.

Então fomos a Vigo, “onde as máquinas eram muito mais baratas” dizia ele. Acabamos por comprar uma por um bom preço no “El Corte Inglês” e regressamos em direção à fronteira depois de um almoço rápido. Colocou-se-nos então um problema: Como conseguir passar na alfândega? É que nessa época o controle fronteiriço era muito apertado e a guarda fiscal revistava tudo, não dando hipóteses de escapar. Paramos cerca de dois quilómetros antes da fronteira de Valença para pensar no que fazer. Sugeri então que a máquina deveria ser desmontada e as peças espalhadas no meio do furgão vazio em que viajamos, bem à vista, misturadas com as poucas ferramentas da viatura. Assim fizemos, mas ele fez questão de esconder a alavanca de armar a máquina debaixo do assento do condutor.

No controle fronteiriço o guarda fiscal mandou-nos sair e como dissemos que não tínhamos nada a declarar, revistou o furgão de ponta a ponta durante uns longos vinte minutos e… apanhou-nos. Foi assim que tive de pagar taxa e multa pela… … alavanca que ele descobrira debaixo do assento. É provável que a alavanca tenha sido importante neste caso pois serviu de “distração” , até porque esta é tida como uma forma elegante de controlar a atenção.

Se no jogador da “vermelhinha” é tudo uma questão de habilidade, onde o importante não é o que olhamos mas sim o que vemos (ou pensamos ver), já no caso da máquina confirmou-se que as pessoas são susceptíveis de cegueira por desatenção, neste caso por bloqueio ou focagem na alavanca debaixo do assento.

Os mágicos dominam perfeitamente a questão da atenção e sabem que o nosso cérebro só pode processar uma coisa de cada vez, por isso usam a cegueira por desatenção, isto é, a incapacidade de notar algo de inesperado quando a atenção está focada noutra coisa. Daí que muitas vezes não vemos algo que está mesmo à nossa frente. E ao pensar nisto, não deixo de me inquietar com a forma como as nossas vidas foram comandadas nas últimas décadas por “mágicos” de boas falas, ora mansas ora inflamadas, que nos distraíram com “palavreado barato e demagógico” enquanto faziam todo o tipo de “habilidades” diante dos nossos olhos, ao ponto de nos limparem a carteira, o emprego, os direitos e, pior… a própria esperança. E ao longo de todos estes anos, só vimos o que eles quiseram que víssemos…

Pudor: O equilíbrio necessário

O pudor é um sentimento complexo que incide sobre diferentes objetos, sendo o mais comum a vergonha da nudez. Nele, distinguem-se dois sentidos: O corporal (sexual) e o dos sentimentos.

Olhemos para o pudor corporal, que é o aspeto da educação que nos faz apresentar como pessoas de corpo e alma e evitar que sejamos vistos como simples objetos sexuais, estabelecendo uma espécie de equilíbrio entre a intimidade pessoal e a abertura social, para evitar o mal estar causado pela nudez e pelo sexo.

Cada tempo e cada sociedade definem os seus próprios “recatos”. Por causa do sentimento do pudor tapamos algumas partes do corpo, o que se tornou uma norma social que foi evoluindo ao longo dos tempos e conforme as sociedades.

Ainda me lembro de quando na escola primária a professora deu com a cana nas orelhas do Domingos por errar uma conta, para depois o ameaçar com uma palmatória grossa, de madeira. Nesse levanta e senta da professora a sua saia comprida subiu um pouco mais, deixando ver o tornozelo e um pouco da perna, o que nos fez esquecer os castigos corporais… Era tempo de corpos tapados, pudor no vestir, no falar, nos gestos, nos olhares. A palavra sexo não existia…

Com o passar dos anos as saias foram subindo e os decotes descendo, sempre motivo para olhares furtivos ao simples cruzar de pernas ou ao subir um degrau. Os limites do pudor corporal iam-se alargando pouco a pouco.

Já adolescente, ao passar junto de um café no fundo da Avenida dos Aliados, estranhei ver uma fila de 20 ou 30 homens todos alinhados, olhando uma mesa da esplanada. Depressa entrei no grupo dos que procuravam o melhor ângulo para observarem o cenário do cruzar de pernas de uma turista bem descontraída…

O sentido do pudor continuou a mudar ultrapassado que foi o sentimento da timidez ou vergonha, produzido pelo que pode ferir a decência, a honestidade e a modéstia. O que era impudico deixou de o ser, os limites passaram para além dos limites e a moda deu um forte contributo ao impor que se mostre sempre uma qualquer parte do corpo, correndo-se o risco, como dizia Cher, “de se ficar sem partes do corpo para mostrar”. Para além dos limites (ou talvez não…) relembro umas férias numa praia qualquer e uma das caminhadas ao longo da água, quando “tropecei” com três jovens de biquíni a jogar a bola. A imagem que me ficou foi a de “ tiras de tecido rodeadas de mulher por todos os lados”.

Os conceitos e mentalidades alteraram-se, o imoral passou a moral, o que era escondido passou a ser feito à luz do dia e o que era tabu passou a ser conversa normal de adolescentes, quando já não de crianças.

Diz-se que hoje há uma grande falta de pudor, expondo-se o corpo e a sexualidade de forma impensável, com comportamentos que deveriam manter-se na intimidade de cada um. Que se banalizou tudo, inclusive a sexualidade e a intimidade, expostas na praça pública como se não tivessem qualquer valor. E, pergunta-se, onde param os nossos valores?

Com a banalização do corpo, as relações são essencialmente sexuais e menos emocionais, vivendo-se exclusivamente o corpo físico no seu lado sexual, destituído de alma e sentimento. E com isso os limites da fronteira que separa o pudico do impudico foram alterados, como se  fosse sinónimo de modernidade, a tal ponto que há quem tenha vergonha… de ser recatado.

Nesses limites sem limite conta-se a história do marido que só reparou no exagero do decote do vestido da mulher quando começou a ver alguns pêlos ao fundo…

O pudor faz parte de um conjunto de valores sociais, como  a honestidade, a lealdade, o respeito, a solidariedade e tantos outros que são determinantes numa sociedade, porque uma sociedade sem valores tende a cair na anarquia e a ruir, como ruíram muitas civilizações. No entanto, não faz sentido um retrocesso ao tempo da minha escola primária, do tornozelo e da perna, nem sequer ao da minha adolescência e da perna acima do joelho (a “paisagem” não seria tão interessante). Mas que continua a ser importante na nossa vida social, não há dúvidas.

Até porque o pudor é como o medo: Em dose adequada é protetor e estruturante, resguardando-nos na nossa intimidade, mas em demasia pode ser prejudicial.