Estive na fundação e direção do Clube Automóvel de Lousada durante largos anos e contribui para a ascensão vertiginosa do CAL que o levaria a tornar-se um dos clubes mais importantes do desporto automóvel em Portugal. Foram anos loucos. Organizamos muitas provas ”interessantes” que trouxeram a Lousada milhares e milhares de espectadores. Quantos? Nunca o saberemos. Nem pelos jornais? Não me façam rir. Nem pelos dirigentes? De jeito nenhum. A haver alguém que soubesse dizer quantos foram, teria de ser eu, pois as bilheteiras, entradas e segurança também eram um das minhas responsabilidades. Mas, na realidade, só tinha controle sobre os “pagantes”, além dos elementos da organização, representantes da imprensa, convidados, pilotos e suas assistências. Os “borlistas”, escapavam à minha contabilidade, fossem eles autorizados como era o caso dos menores de doze anos, fossem eles “golpistas” que usavam todo o tipo de estratagemas para entrarem sem pagar. Ora, uns e outros, também eram espectadores. E muitos. Quanto aos números dos jornais, será preferível lerem o que se segue para perceberem da sua credibilidade e da forma como eram conseguidos.
Em Maio de 1991 organizamos a primeira prova pontuável para o Europeu de Ralicrosse, modalidade que não existia em Portugal. A prova fora-nos atribuída depois de, no ano anterior, realizarmos uma outra, de candidatura, onde apanhamos uma “banhada” de oito mil contos. Apesar do muito dinheiro perdido, valeu bem a pena o investimento, porque conseguimos trazer para Lousada uma prova conceituada. Como o orçamento para a organização era considerável, a nossa maior preocupação era o tempo, se ia chover ou fazer sol. Se chovesse, estávamos “feitos ao bife”.
Mas S. Pedro esteve connosco e deu-nos um fim de semana de sol. Por isso, no domingo tivemos “casa cheia”. Um sucesso. Até o prédio ao lado da pista, em construção e com uma “placa” carregada três ou quatro dias antes, abarrotava de gente. Ao ver aquela impressionante moldura humana pensei: “Estamos safos”. Já quase no final das corridas, um jornalista fez-me a pergunta sacramental: “Quantos espectadores estão aqui? Cem mil?” Engoli em seco, ignorei a sua ingenuidade e fraco conhecimento da realidade e “dei-lhe corda” sem desfazer a ilusão: “Ainda não sei, mas deve andar por aí”… Foi assim que, ao outro dia, o principal jornal desportivo da especialidade trazia na primeira página, em letras garrafais: “CEM MIL ESPECTADORES EM LOUSADA”. A notícia perfeita, muito para além do que poderíamos desejar. E logo na primeira página… Que melhor poderíamos querer? Tal como nas manifestações, era importantíssimo que os jornais noticiassem a presença de um elevado número de espectadores, uma publicidade gratuita mas valiosa. E aquele era um número gordo, muito gordo mesmo. E, como quanto maior é o número mais importância é atribuída ao evento… A publicidade para a ano seguinte estava meia feita. No entanto, toda a moeda tem duas faces e esta, também tinha o seu reverso, um risco já calculado e previamente assumido por nós, dirigentes. E nos dias seguintes esse risco veio ao nosso encontro através dos críticos do costume, que não se poupavam a comentários pelos cafés e esquinas da vila, do género: “Estes gajos é que se governaram. Vejam lá: Cem mil espectadores a três contos, são trezentos mil contos”. Insinuavam, especulavam, falavam do que não sabiam. Porque a realidade era bem diferente, mas eles não sabiam (nem queriam saber) que, espectadores “pagantes” (que são aqueles que verdadeiramente interessam para o efeito), haviam sido pouco mais de catorze mil e quatrocentos… muito longe dos propagados cem mil, se bem que, no interior do circuito, estivessem entre vinte a vinte e cinco mil pessoas se contássemos os “não pagantes” que referi. E não sabiam também que, antes da prova arrancar, eu e o Jaime Moura tínhamos o nosso nome “atravessado”, a avalisar mais de trinta mil contos de dívidas, fora todas as despesas do fim de semana… Havíamos corrido um enorme risco em nome de um sonho. E valeu a pena. Mas, se tivesse chovido?
Tudo isto para dizer que a utilização de falsas verdades ou mentiras descaradas, algumas vezes acidentais mas outras intencionais, são uma das forma pela qual se moldam conceitos, arranjam seguidores, recrutam consciências e mobilizam massas humanas. Todos os dias somos massacrados pelos meios de comunicação com todo o tipo de informação e contrainformação, verdades e mentiras, testemunhos a confirmar a veracidade de afirmações quando não passam de grandes mentiras. Porque nós temos de acreditar para sermos mobilizados e arregimentados para o rebanho de seguidores. Seja nos resultados alcançados pelos (des)governos, das políticas que nos (lhes) são favoráveis, das suas (in)verdades e dos (in)sucessos governativos. A minha irmã já se recusa a ver o telejornal porque “são só desgraças e mentiras”. Mas a minha mãe, à beira dos noventa e quatro anos, não perde um, pois “gosta de estar atualizada”. Quando lhe dizemos para não acreditar em tudo o que ouve, responde com um sorriso: “ Eu ouço tudo, mas só acredito naquilo que quero”.
A velocidade com que uma notícia posta a circular chega aos quatro cantos do mundo é impressionante, seja verdadeira ou falsa. Porque há fotos manipuladas, factos inventados, frases retiradas do contexto, títulos bombásticos e chocantes para notícias sem conteúdo, dados fictícios, números falsos, conclusões erradas, como se fossem grandes verdades mas sem hipóteses do contraditório. E vemos isso todos os dias…
A Bíblia diz que “os ouvidos julgam o valor das palavras assim como o paladar prova os alimentos”. Já o Rei Salomão escrevia: “O ingénuo acredita em tudo o que lhe dizem mas o homem esperto olha onde pisa”.