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Os “falsos amigos” da nossa língua …

Os estrangeiros dizem que o português é uma língua muito difícil de aprender, se bem que o grau de dificuldade depende de pessoa para pessoa conforme a língua que fala. A aprendizagem é mais fácil para um espanhol do que para um alemão ou russo, mas são reconhecidas as grandes dificuldades que se colocam a alguém de fora que queira aprender a nossa língua: os sons nasais (tom, cão, mãe, Airães, etc.), os verbos e especialmente a sua conjugação, os “s” com som de “z” como “quiser”, “pus” ou “lisa”, os sotaques regionais em especial dos outros países de língua portuguesa pois a pronúncia dos brasileiros não tem nada a ver com a nossa, nem com a angolana ou timorense. E as regras, não tanto por si, mas pelas exceções – daí a célebre frase de que “não há regra sem exceção”. 

Além disso, para baralhar o processo de aprendizagem da língua de Camões, existem expressões populares onde o sentido do que se diz quase sempre não tem nada a ver com o significado das palavras usadas na expressão. Daí que, se eu fosse um inglês a aprender a nossa língua e já conhecesse o significado de cada uma destas palavras – coisas, Arco e Velha – que conclusão tiraria da expressão “coisas do Arco da Velha”? Com toda a certeza, nada do que realmente significa e do sentido com que a usamos. E o mesmo se passaria com tantas outras como “é aqui que a porca torce o rabo”, “resvés Campo de Ourique”, “verter lágrimas de crocodilo”, “não poder com uma gata pelo rabo”, “para trás mija a burra”, “do tempo da Maria Cachucha” e muitas outras em que o nosso vocabulário é tão rico …

Mas para tornar o processo de aprendizagem ainda mais complicado existem os chamados “falsos amigos”, isto é, as palavras que têm uma sonoridade semelhante ou igual, mas um significado completamente diferente. Voltando a colocar-me “na pele do inglês, como é que eu perceberia que há uma diferença bem grande entre a “sela” e a “cela”, sendo que se pronunciam da mesma forma embora a primeira sirva de “assento” quando a outra só dá para “ver o sol aos quadradinhos” e nenhuma das palavras tenha “acento”?  Hoje ouvimos falar muito de “emigrantes” e “imigrantes”, tantas vezes sem se perceber que os primeiros somos nós ao sair de cá para outro país e os “imigrantes” são os que vêm de outros para cá. Eu quando tenho de “emergir” nas águas de um “rio” não me “rio” da situação, até porque não me posso esquecer de “imergir” para não me faltar o ar. 

Dizia-me um pai que a sua filha Joana não “vinha” da “vinha” às onze e tal da manhã quando a mãe a viu e lhe perguntou de onde “vinha”, a pensar que a moça estivera a trabalhar na “vinha” desde muito cedo. Afinal ela estivera num “concerto” musical num recinto improvisado que no final ficou sem “conserto”. O que é que um “concerto” tem em comum com o “conserto”? Nada, a não ser a mesma sonoridade nas duas palavras. O mesmo posso dizer por não gostar de me “apressar” a “apreçar” aquilo que procuro numa loja e nem comprar uma coisa de “cem” euros “sem” primeiro saber se os tenho. Porque “sem” um “cento” de euros nem sequer entro e muito menos me “sento” para comprar uma peça de “cem”. É que “penso” que até para comprar um simples “penso” para aplicar no corte dum dedo ou arranjar “penso” para o gado é sempre preciso ter o “vil metal”, aquilo com que se compra um “melão”, sem ter de ficar com um grande “melão” por falta dele.

Confesso que “sinto” que o meu “cinto” está a dar o berro e já não o “verão” no próximo “verão”. Sem ter “laço”, ficou “lasso”, tal como o meu blusão azul que comprei a um “russo” já está “ruço” de tanto uso. Além disso a “manga” tem uma nódoa do sumo de “manga” que deixei cair sem contar e já não “fecho” o “fecho” porque está “preso” embora não seja um “preso” comum.

Hoje ouvi “soar” as 10 badaladas no sino cá da terra, quando já vinha a “suar” da caminhada matinal. Depois de tomar banho, “como” quase sempre alguma coisa simples, algo “como” uma banana ou laranja. Ao almoço gosto mais de peixe, grelhado ou “cozido”, deixando o outro “cosido” para remendar a roupa.  Costumo ir às compras para “sortir” a “despensa” sem ter “dispensa” de o fazer, o que vai “surtir” efeito nas refeições, sendo um “hábito” normal na casa onde “habito”. Na nossa cozinha, há dias em que resolvem “estufar” a carne (pois para “estofar” o sofá vou ao senhor Oliveira), mas quando temos alguém “distinto” (que nada tem de “destinto”, de desbotado), normalmente “asso” carne em tabuleiro de “aço”, com batata e chuchu.

Esta conversa já está a revelar falta de “senso” por ser longa, sem que se tenha feito qualquer “censo” que eu saiba. Na verdade, com todo o arrazoado, nem sequer tenho “voz” para me “dirigir” a “vós”, mesmo sem estar a “dirigir” qualquer veículo. Já não “jogo” ao “pião” se bem que ainda movimento o “peão” no “jogo” do xadrez quando me quero “recrear”, sem necessidade de “recriar” coisa alguma. 

 Ao mostrar este jogo de palavras que fazem a vida negra a quem tem de aprender a falar a nossa língua, pedi “conselho” a um amigo cá do “concelho”, mas as coisas “são” como “são” e, não estando eu “são” como um pero, tive de me aguentar com o comentário: – “Ouve” bem o que te digo, pois não “houve” tempo para mais. “Era” uma oportunidade para falares da “hera” que te cobre o muro, para te lembrares de “nós” quando comemos uma “noz” ainda meia verde, que há quem “meta” (sem cortar a “meta”) “dó” por não cantar sequer um “dó” afinado e que o “quarto” “quarto” de um hotel pode ser igual ao primeiro. Por isso, se arranjares uma “vaga” na Proteção Civil durante a “vaga” de calor, aproveita a oportunidade. 

Pois bem, aqui do meu “canto” já não “canto” mais, já não digo mais “nada”, mesmo sabendo que ele “nada” muito bem, porque os “falsos amigos” da nossa língua podem ser tão traiçoeiros como os outros …    

Carta aos mais velhos. E a mim …

Há dias alguém me perguntou a idade e, com a confiança que temos, provocou-me: “Está à espera de quê para gozar a vida, fazer o que gosta e lhe dá prazer? Viaje e conheça alguns países com que sonha. Já pensou quantos anos tem para fazer isso? É tempo de pensar em si e viver a sua vida e não a dos outros”, disse ele em tom de sentença. A verdade é que me pus a pensar em mim e me fez passar a mensagem. 

Assim, para quem já está na reforma, um conselho: é tempo de terem juízo e começarem a gozar a vida. Parem de se preocupar com a má situação financeira dos vossos filhos e netos e não se sintam culpados por se colocar em primeiro lugar e gastar o vosso dinheiro convosco. Provavelmente deram uma boa educação aos filhos, proporcionaram-lhes as “ferramentas” para fazerem pela vida sozinhos e aprender a voar sem a vossa ajuda. Pensem, já não estão na altura de sustentar ninguém da família, a não ser o cão ou o gato, animais que lhes fazem companhia e retribuem o que fazem por eles, muitas vezes mais que a família.

Está na hora de dar bom uso ao dinheiro que conseguiram amealhar ao longo duma vida de trabalho, convosco, sem sentimentos de culpa ou arrependimentos. O dinheiro é vosso, gastem-no com os caprichos e desejos que nunca satisfizeram. Parem de poupar e deixar de fazer aquilo que gostavam de fazer só para aumentar a conta bancária mais um pouco. Não se privem de satisfazer os desejos e sonhos que ainda habitam em vós dentro das possibilidades e lembrem-se sempre do provérbio chinês: “Se tu que podes viajar em primeira só viajas em segunda para poupar, está descansado que um dia os teus filhos farão isso por ti”. 

Todos conhecemos histórias de pessoas que passaram a vida inteira a trabalhar, sem descansar o suficiente, sem férias, sem usufruírem das coisas boas da vida, com um único objetivo: poupar. E acumularam e acumulam grande riqueza, mas muitas vezes “bateram a bota” antes do tempo por exagero no trabalho. E depois o que se vê? Os herdeiros a “consumir” a todo o gás o “pé-de-meia” que os “velhotes” fizeram ao longo duma vida, sem respeito pelo seu sacrifício, sem conta, peso e medida como se não haja amanhã. É para isso que dá no duro e anda a economizar, a deixar de fazer o que lhe apetece? É para poupar que não compra aqueles bifinhos de atum fresco, os lombos de salmão ou os bifes da vazia da raça Angus que o atraem e tanto deseja sempre que vai ao supermercado, acabando por levar para casa uns carapaus ou o costelão de boi que estava em promoção, mas cuja carne é mais dura do que sola de sapato? Pare, está na altura de ser egoísta, pensar em si e colocar-se em primeiro lugar. É que, se não começar a fazê-lo agora, vai fazê-lo quando? Quando “for com os pés para a frente” e lhe deitarem sete palmos de terra em cima ou fizerem de si churrasco para o reduzirem a cinzas?

Apesar da idade, viva, goze a vida porque ninguém é velho enquanto lhe restar inteligência e afeto. Coma bem, sempre o bom e o melhor, cuide da saúde física e psíquica, vá ao ginásio ainda que seja só para estar com os amigos e gaste o dinheiro com você, com as coisas que aprecia, gosta e até com os caprichos porque, após a morte, dinheiro só gera ódio e ressentimento. Nem viva angustiado por pouca coisa, pois “na vida tudo passa”, os bons momentos são para ser lembrados e os maus para ser esquecidos. Mantenha-se atualizado e interesse-se pelas coisas novas, mesmo pela opinião dos jovens, pois muitos deles estão tão bem preparados como nós na sua idade. E nunca use aquele termo que teimamos em repetir: “No meu tempo …”

Há um provérbio francês que se aplica bem a nós: “O pai é um banco proporcionado pela natureza”. Vamos mantê-lo “aberto” até ao fim?

Lembre-se que o seu tempo (e o meu) é agora … ou nunca, porque “estamos na fila”, empurrados pelos mais novos que foram entrando e não há como voltar ao princípio.

Não enterre a cabeça no sofá nem passe os dias a dormir, como quem espera pela sua vez. Arranje-se, saia, conviva e divirta-se. Mantenha-se atualizado e faça caminhadas sempre acompanhado. Experimente fazer as “levadas” na ilha da Madeira porque vai encontrar uma visão nova da “pérola do Atlântico” ou, se não quer sair do continente, tem por aí inúmeros trilhos para descobrir um Portugal que não conhece, fazer exercício e apreciar a variedade gastronómica do país. Mas se tal não o entusiasma, não deixe de se divertir com gente da sua idade e viaje, cozinhe, dance, leve o cachorro a passear, trate das plantas ou jogue as cartas com os amigos. E não se esqueça de falar pouco, ouvir muito, elogiar e não contar as suas histórias de vida, porque ninguém as quer escutar (até eu tenho de parar de contar as minhas histórias) e é muito maçador. Mais ainda, a gente repete-se muito sem querer.

Tire da cabeça essa ideia de querer viver em casa dum filho. Respeite a privacidade dele, mas especialmente a sua. Deixe os filhos em paz pois já têm sarna que chegue para se coçar neste mundo onde todos andam a correr e não têm tempo para nada, quanto mais para tomar conta de velhos. Lembre-se daquela prece: “Senhor, dai paciência às pessoas que não me suportam, pois não tenho intenções de melhorar. Com a idade, a tendência só é de piorar”. E agora já entende porquê?

Um último conselho: Continue a ter relações sexuais, ainda que seja só pelo Natal, mas siga as recomendações que circulam na internet:

“Use sempre os óculos para se certificar de que a sua companhia está realmente na cama. Ponha o despertador a tocar daí a três minutos, para o caso de você adormecer na função. Regule a iluminação, mas não apague todas as luzes para saber onde está. Deixe o telemóvel programado para o número da Emergência Médica. Escreva na mão o nome da mulher que está na sua cama para o caso de não se lembrar. Não faça muito barulho, pois nem todos os vizinhos são surdos como você. Se tudo der certo, telefone aos amigos para contar a boa nova do seu sucesso”. E entre de férias grandes para recuperar do esforço…

Heranças, partilhas e falta de senso…

Diz-se que somos todos iguais: “Nascemos nus e partimos nus, sem nada da “carga” que possamos ter nesta vida. Também nas partilhas pobres e ricos são iguais, pois não é preciso muitos “teres e haveres” para pôr irmãos contra irmãos, pais contra filhos, netos, sobrinhos e tios contra quem quer que seja. Tinha razão Gustavo Lázaro quando escreveu: “Herança é aquilo que os mortos deixam para que os vivos se matem”. Casos há em que não se deixa arrefecer o corpo do morto para começar a guerra pela herança, quais abutres à volta da carcaça. E outros há que fazem a partilha durar mais do que a “guerra dos 30 anos”, dando tempo para tudo, até para alguns dos beligerantes irem ficando pelo caminho sem sequer chegar a “pôr as mãos na massa”.

Quando morreu uma mulher num Lar de Idosos, apareceram vários filhos que nunca tinham a visitado, mas preocupados e interessados nos brincos da pobre senhora, o seu único bem. A cena acabou num arraial de pancadaria entre os herdeiros à porta do Lar, na tentativa de ganhar o direito aos brincos talvez pelo maior número de murros, uma nova forma (se calhar, de sempre) de ter prioridade na partilha. Penso que só quem não tem mesmo nada de seu é que está livre de vir a saber no outro mundo que os filhos fizeram da partilha uma luta ou mesmo uma guerra. Mas onde menos compreendo essas batalhas é em heranças milionárias, com valores que deixam bastante bem os herdeiros. Se calhar até compreendo, porque nunca estão satisfeitos.

Anna Sommer, mãe do milionário António Champalimaud, faleceu há cerca de 44 anos e o processo de partilha da sua herança arrasta-se nos tribunais onde permanece ativo. Já morreram os 4 filhos e alguns netos, mas a partilha não. Entre muitos absurdos deste processo há o caso do Mercedes 220 S da falecida. Quando foi vendido por 3.500,00 euros, já tinha pagado de estacionamento em garagem mais do dobro desse valor e havia dado origem a 50 requerimentos e despachos. O mesmo acontece com a herança de outro milionário, Manuel Vinhas, falecido no mesmo ano de Anna Sommer, cujo processo de partilha continua a ser uma fonte de rendimento para … advogados e tribunal. 

Quando falavam ao Cardeal Cerejeira de uma família onde os irmãos se davam muito bem ele costumava dizer: “Já fizeram as partilhas”? E a pergunta era pertinente …

Há tantos irmãos que começaram a vida a brincar felizes e inocentes e acabam os seus dias sem se falarem por causa de partilhas, tal como os filhos, primos, tios e sobrinhos. Dizia-me uma senhora já com certa idade que, para salvaguardar a excelente harmonia que existia na sua família e garantir que os filhos continuariam unidos quando partisse desta vida, tinha resolvido a partilha em vida a contento de todos. 

Os advogados recomendam que, não havendo acordo amigável entre os herdeiros sobre a partilha dos bens, o melhor para a resolver é o processo de inventário, que passa pela nomeação do cabeça-de-casal a quem cabe identificar os herdeiros e os bens a partilhar. Só que não é garantido um processo tranquilo e de fácil entendimento, porque há egos difíceis por se acharem demasiado grandes, interessados que ganham mais fomentando a discórdia e que são parte do problema, velhos rancores que saem do baú. Quando está em causa a divisão de bens de valor diferente e avaliação um tanto subjetiva, demasiadas vezes vem ao de cima a inveja, a cegueira, a ganância e as rivalidades, que fazem da partilha um cozinhado difícil, feito de suspeitas e falta de senso, quando não de má-fé.  

Mas a tentação por “deitar a mão” ao que não se ganhou é tal, que até se usa de oportunismo e desonestidade para “engrossar” a herança e conseguir que o “naco” seja maior, o que não é para admirar quando se trata de bens, numa ganância e invejas desmedidas muito típicas dum ser humano. Foi o que aconteceu com os filhos de um agricultor na região, “caseiro” de uma quinta que tinha nos vários filhos, como era habitual, a sua maior riqueza. Entre eles estava Maria, moçoila bonita apesar de humilde, que não passou despercebida aos olhos de um tio, emigrante no Brasil que conseguira amealhar um património interessante em terras do Pica Pau Amarelo. E, apesar dos cochichos e ditos que isso viria a gerar pela diferença de idades, o tio brasileiro pediu-a em casamento, tendo ela aceitado e rumado com o já marido para o outro lado do Atlântico, depois de se despedir da família que amava tanto e onde havia sido feliz.  Passados anos, querendo ajudar a família que por cá ficara, mandou ir um irmão que, com a ajuda do seu marido, montaria uma padaria (negócio típico de portugueses naquelas bandas), vindo a subir na vida com o sucesso do negócio. Em certa altura foi posta à venda uma casa com um grande quintal muito bem localizada na terra natal e uma pessoa amiga informou-a de que seria uma excelente oportunidade de negócio. À distância, pediu ao pai para lha comprar o que viria a acontecer e para o efeito foi enviando remessas de dinheiro com que ele liquidou o valor do prédio, tendo este sido posto em nome dele. Mas os anos “voaram”, a filha brasileira foi envelhecendo e o pai faleceu. Quando o pai morre os filhos juntam-se para conversar sobre as partilhas dos “tarecos” e, apesar do prédio ter sido comprado com o dinheiro da filha e para a filha, os irmãos ignoram-no e consideram que é parte integrante da herança e, como tal, tendo de entrar nas partilhas de que eles são “legítimos” herdeiros. Dum momento para o outro, estalou a guerra naquela família tão unida, feita de acusações, rancores, traições e ameaças, numa questão em que a filha “brasileira” viria a sair bem prejudicada por aqueles que considerava e deviam ser, seus irmãos e amigos. Anos mais tarde ela confidenciaria a um amigo de infância que tinha muitas saudades do tempo em que era pobre, pois tinha uma família grande e feliz, com todos os irmãos a darem-se muito bem e em que era um por todos e todos por um. Porque tudo aquilo que o dinheiro lhe trouxera não compensara o muito que perdera. Fora a pior coisa que lhe aconteceu não por ter de ceder aos outros parte dos direitos que eram só seus, mas porque a partilha destruíra a união da sua família de que sentia tantas saudades e não gostaria de ter perdido por preço nenhum.

Ainda hoje um pai questionava se valerá a pena deixar alguns bens de herança aos filhos, temendo que em vez de serem meios que os possa unir, sejam antes armas de arremesso numa guerra que transformará amor fraternal em ódio, falsidade e traição.  

Como às vezes a pior coisa que se pode receber é uma herança, vale a pena pensar se devemos deixar cair essa “bomba” no meio dos filhos e demais família no momento em que “recebemos guia de marcha” e que pode “rebentar” com a união familiar, deixando feridas em várias gerações. Ou se temos a obrigação e dever de deixar tudo preparado atempadamente, funcionando como árbitros isentos num “jogo” onde todos devem sair vencedores. 

Mas, ao enveredar por esse caminho, é bom não esquecer que não se pode cair na tentação de entregar tudo a eles antes do “fim do nosso tempo” sem salvaguardar os meios para viver condignamente, só por que se continua a pensar demasiado nos filhos, apesar de já terem a obrigação de “voar” sozinhos. Por isso devo lembrar as lições de um velho provérbio que é preciso ter presente: “Quem dá tudo o que tem antes que morra merece levar com uma cachaporra” …

E conheço tantos casos num caminho cheio de arrependimentos!!! 

Cuidado, já abriu a “época de caça”…

Estava eu a dormitar, mais para lá do que para cá, quando senti um arrepio na espinha sem saber se estava a sonhar ou acordado porque descobri que, para mal dos meus pecados, eu também sou um “ele”. E

este ano esse “ele” é bem importante. “Ele”, aquele que se vai levantar da cama, enfiar uma roupa limpinha, sair à rua faça chuva ou faça sol, se dirija à escola local, sede da Junta de Freguesia ou até, em caso de recurso, à capela mortuária, se deixe ficar na fila de máscara colocada a aguardar a sua vez para ser identificado e depois lhe entregarem um papelinho onde vai pôr uma cruzinha (se quiser pôr, porque tem esse direito) e onde quiser, mesmo que não escolha os quadrados. Porque “ele”, o “eleitor”, é uma espécie rara em vias de extinção. Não basta estar inscrito como eleitor para o ser. É preciso ir lá, votar, caso contrário não conta, a não ser para efeito das estatísticas. Basta olhar para o nível da abstenção em eleições autárquicas, tal como noutras eleições e que tem vindo a subir de ano para ano. Se continuar assim, temos de concluir que o “eleitor” é cada vez mais valioso. Neste ritmo crescente dos preguiçosos e desiludidos da política, qualquer dia só aparecem os candidatos e famílias, para se elegerem a si próprios …

Ora o “eleitor”, como espécie rara que é, precisa de ser acarinhado, bem tratado, compensado por ter saído da cama só para botar uma cruzinha no boletim de voto, mesmo que não acerte no quadrado. É que ele tem de fazer um grande esforço para escolher, talvez não o melhor, mas o menos mau dos candidatos. Mais ainda, se por acaso sair num dia estival que convida a uma ida à praia, é precisa muita força de vontade para resistir à mulher e filhos que querem lá saber da “botação”. Para atrair esta espécie rara e levá-los a votar, já que não se podem atrair “pelo cheiro da comida” como se fazia nos dias de comício ou convívios partidários, nem pelas “cantigas ao desafio” ou pelo “cheiro a bacalhau” do Quim Barreiros, seria oportuno copiar os americanos de Nova Iorque e pagar 100 euros a cada um para os atrair e levar a votar …

Embora a campanha eleitoral não tenha começado oficialmente, a “temporada de caça ao voto”, por alguns tida por “temporada de caça ao eleitor”, já está aberta e onde vale tudo ou quase. Aliás, diz-se que “para conquistar o poder, os homens praticam todas as ações, mesmo as boas”. É que o voluntariado na política acabou há muito. Já lá vai o tempo em que o presidente da Junta de Freguesia não ganhava nada a não ser uma carga de trabalhos, embora nunca faltassem candidatos para aparecer nas listas por qualquer partido. O importante era ser convidado. Há muitos anos, dizia-me um presidente de Junta, muito sentido ao saber que para as eleições seguintes o partido pelo qual fora eleito havia já anunciado um outro candidato para o substituir sem sequer o avisar: “Sabe, vou-me oferecer ao partido adversário e vou ganhar. É que, isto de ser presidente da Junta não vale nada, não se ganha nada, nem dá prestígio a ninguém. Mas, bem lá no fundo, todos querem ser”.  

A dois meses das eleições autárquicas a “corrida” ainda não começou e tudo parece estar a cozer em lume brando. Os porcos podem andar descansados e rumar ao São Bento da Porta Aberta em peregrinação à pata e agradecer o paradoxo de ter sido precisamente uma doença a poupar-lhes muitas vidas, porque não vai haver “porco no espeto” …

Mas é pura ilusão e os sinais estão aí, disfarçados da forma habitual já que, ano de eleições é ano “anormal” de obras. Por vários razões tive de percorrer alguns concelhos da região e em muitos locais esbarrei com os tais sinais duma campanha eleitoral encapotada: inúmeras estradas interrompidas em reparação, ruas esburacadas, construção de infraestruturas de todo o tipo, pavimentações novas, pinturas de passadeiras e outros riscos mais para dar vida ao piso e segurança a quem passa, passeios lavados. Os trabalhadores municipais não têm mãos a medir, as máquinas não param e, mesmo assim, não dão conta aos tantos pedidos que é preciso satisfazer até Setembro, apesar da arregimentação de empreiteiros e sub-empreiteiros que também não chegam para as encomendas, até porque estão com dificuldades em conseguir mais pessoal. Trabalha-se dentro e fora de horas, por conta da câmara, da Junta de Freguesia ou dos Fundos Europeus, numa luta contra o tempo já que é o “agora ou nunca”. Nestes períodos, vem-me sempre à memória a imagem de um presidente da câmara da região à frente da máquina, qual sinaleiro a orientar o trânsito, tal o empenho na recandidatura e o apego ao lugar, orientando o manobrador sem deixar de fazer conversa com os munícipes beneficiados pelas obras, a lembrar que cumpria sempre o prometido qual propagandista em feira de ano, num espetáculo quase patético e indecoroso. 

Por muito que o poder seja “interessante e agradável”, o objetivo não justifica o uso de todos os “argumentos”, muito menos os “meios públicos” para colher dividendos partidários e pessoais em ano de eleições, atirando areia para os olhos do eleitor e fazendo dele um imbecil que não vê a estratégia por detrás da “obra de última hora”. A ser assim, melhor será que os mandatos sejam anuais e todos os anos sejam também anos de eleições … e de obras. Pobre votante que escolhe, escolhe e (quase) sempre escolhe mal, para depois, feito bobo, ficar a reclamar das taxas, da burocracia, da demora em conseguir uma licença, como se houvesse tempo para cuidar dessas ninharias …

Tenho muita dificuldade em entender este tipo de governação, que é um mal crónico da nossa “democracia”, orientada prioritariamente para atrair a caça ao voto e a perpetuação no poder, defendendo-se a manutenção deste como um fim em si e não como o meio para servir. Aliás, desta mesma doença padecem os governos da nação. Winston Churchill disse que “a diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pensando sempre nas próximas eleições, enquanto o estadista decide a pensar nas próximas gerações”. 

Nos quase 50 anos de democracia não aprendemos nada. Antes pelo contrário, perdeu-se a ética e a transparência, deixando a nu a “chico-espertice” e arrogância do poder, que fizeram dos cidadãos pedintes de serviços públicos que deveriam ser direitos seus, e são, mas pelos quais têm de mendigar quando deveria ser o contrário, agora com o argumento da pandemia como desculpa para tudo. E, quando acabar a pandemia, há de arranjar-se com certeza outro “bode expiatório” “para não sairmos da cepa torta”, da baixa produtividade de que o estado a todos os níveis é o maior responsável e nos faz perceber que a verdadeira democracia é uma miragem, enquanto o país caminha para mais pobre da União Europeia, mendigando a solidariedade com a mão estendida, já que só estaremos em condições de a receber …