Fim da tarde de sexta-feira. Quando passava diante de um estabelecimento comercial que tem máquina registadora dos jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (e é sempre bom referir que as receitas dos “ditos jogos sociais”, para além da “fatia” do Estado, são pertença daquela Misericórdia, e só dela, sem que nenhuma das mais de trezentas que estão espalhadas pelo país “abiche” sequer uns trocos), vi uma fila de pessoas à espera para registarem a aposta, fila que ia do balcão até à porta, com um amontoado de carros na rua. “Ah, é hoje que estão em jogo cem milhões de euros…”. Ainda fui assaltado pela tentação de parar e ir a jogo também mas, aquela fila “veio em meu auxilio” e fez-me desistir. Segui em frente e fiquei a pensar “com os meus botões”: “Afinal, há muita gente que tem esperança, por mais breve que seja, de ganhar uma batelada de massa”.
Quando cheguei a casa lembrei-me do tal prémio taludo e, como qualquer um dos milhões de “sonhadores”, questionei-me: “O que faria se me saísse o Euromilhões?”
O normal seria saltar de contentamento, chamar a família para contar a boa nova e ir diretamente ao stand da Mercedes, não sei mesmo se da Rolls Royce, comprar o modelo mais caro. Sim porque, com tantos milhões, só podia andar de automóvel com motorista privado pois o ato de conduzir é para os “pelintras”. Os meus filhos também teriam direito a carro novo e até lhes dava liberdade de escolha. Eu só cá estaria para passar o cheque…
A casa era a segunda questão a tratar pois aquela onde vivo não estaria a condizer com o estatuto de milionário. Teria de adquirir de imediato um terreno em local privilegiado (e colocava de fora a hipótese de um pedaço do jardim do Senhor dos Aflitos somente por não ser suficientemente grande para a minha nova posição social) e entregar o projeto a um arquiteto famoso que não podia estar abaixo de Siza Vieira, Frank Gehri ou Santiago Calatrava, para que a mansão tivesse “assinatura”. Claro, a casa seria um autêntico palácio em luxo e dimensão, para poder fazer festas de arromba e receber os “amigos” em grande. É que, um homem com muito dinheiro, passa a ter muitos “amigos”, embora se diga que “um homem rico não tem amigos à mesa , mas sim comensais”.
Teria de arranjar um mordomo inglês. Sempre me fascinou essa personagem e era uma forma de não me preocupar com o comando da “criadagem”, de ganhar importância e vingar-me desses ingleses “emproados”.
Compraria uma mansão de férias num sítio “badalado” como Miami, Flórida, Cannes ou Ibiza e metade do ano andaria em viagem pelo mundo, mesmo que não me agradasse, mas para me dizer “viajado”.
Ah, as pessoas com quem me relacionaria a partir daí mudavam radicalmente. Já não podia falar com qualquer um como o faço hoje, por ser desadequado ao meu estatuto. Só poderia encontrar-me com gente “brilhante, honesta e incorruptível” como políticos, banqueiros e outros seres mediáticos que se passeiam com toda a naturalidade pelos corredores do poder e do… dinheiro.
Não, não ia desperdiçar dinheiro em doações, ajudas ou contributos a instituições sociais ou pessoas com necessidades porque, senão, que seria de mim? Já me podia considerar um grande benemérito ao fazer uma “doação voluntária” de vinte milhões ao Estado. É que o dinheiro não “estica” e não dá para tudo (nem para todos).
Mas, faria mesmo assim?
Um amigo disse-me um dia que, “por mais rico que fosse, não conseguia comer mais do que comia. Que a sua barriga era sempre a mesma e, com a idade, a tendência seria para comer menos”. Eu acrescentaria que, por mais dinheiro que tenha, continuarei a ter mais prazer ao comer sardinhas assadas com pimentos do que um qualquer prato de caviar cozinhado pelo chefe mais célebre.
O dinheiro serve para o que serve. Essencialmente, para nos tornar a vida mais cómoda, pois permite-nos comprar conforto e segurança. Mas estes podem ser assegurados sem necessidade de recurso aos exageros que visam mais a ostentação – e, seguramente, a inveja – do que a satisfação pessoal e a felicidade.
Mas nós somos quase sempre dominados pela ambição desmedida e nem sequer nos apercebemos disso. E o exemplo típico é o Euromilhões. Porque será que em dias de prémio “gordo” como o dos cem milhões, as pessoas até se atropelam para registar a aposta e chegam a ficar incomodadas quando não têm oportunidade para o fazer, como se só “esse” prémio as deixasse felizes? Não deixa de ser interessante que, em dias de “prémio normal”, isto é, quando estão em jogo uns “míseros” quinze ou vinte milhões, não há filas nem o “passa palavra” entre amigos para não se esquecerem de jogar, sendo poucos os interessados em prémio tão “foleiro”…
Será que quem tem cem milhões é mais feliz do que quem tem dez ou quinze? É certo que não, nem a felicidade é medida pelo tamanho da conta bancária. Dá jeito mas está longe de ser o essencial.
O problema é que, quando nos “colocam” na mente a “semente” do “jackpot”, ela germina mais depressa que o habitual e bloqueia o pensamento racional, fazendo-nos correr atrás do sonho e da ilusão. E nós não resistimos e vamos…