O presunto estava muito orgulhoso de si mesmo por ocupar o lugar de destaque no expositor da loja de produtos gourmet. De faces rosadas pela massa de colorau que lhe aplicaram, sentia que a sua condição de presunto de “porco preto ibérico”, com o título nobre de “pata negra”, foi reconhecida, ao ser exibido como a estrela da companhia naquela montra, longe da plebe da sua espécie, aqueles “Zés Ninguém” dos presuntos de Chaves e de Lamego.
Recostado entre garrafas de vinho tinto reserva especial, recordou o exercício físico que fez em longas caminhadas pelos montados de uma grande herdade alentejana, alimentado a bolota, alternadas com sestas à sombra dos “chaparros”, até ao dia em que foi para abate numa empresa de Barrancos. Aí “nasceu” como presunto, foi salgado e temperado com todo o cuidado, para depois passar por uma cura de trinta meses “refastelado” numa câmara de temperatura controlada, uma espécie de “SPA dos presuntos”.
Durante esse período de cura teve longas conversas com o seu irmão esquerdo, que queria acabar os seus dias na mesa dum proletário, enquanto o seu sonho era “ser servido à mesa de um rei ou de um nobre” mas, como estão falidos ou vivem de recordações e glórias passadas – mais ou menos o mesmo que acontece aos benfiquistas – preferia terminar os seus dias na mesa de um banqueiro (mesmo que fosse do BPN ou do BPP) ou de um grande industrial, “num salão iluminado por candelabros, com louça da Vista Alegre, copos de cristal e talher de prata”, dizia ele ao mano.
E ali exposto de “pata para o ar”, recordou os elogios dos técnicos depois de lhe tirarem uma amostra para análise: “Fibras de um vermelho rosado entremeadas pelo branco da gordura e boa percentagem de ácido oleico. Textura, aroma e sabor singulares, resultantes da quantidade adequada de bolota ingerida. É excelente”. E foi assim que o seu “Ego” cresceu.
Admirado e desejado por muitos, foi um industrial da construção civil que o levou para casa, juntando-o a outros já pendurados numa grande cozinha. Por ali ficou sem que nada acontecesse até ao dia em que o dono entrou de rompante e disse à mulher: “Já sei quem é a pessoa que vai escolher o candidato para aquele lugar que a nossa filha quer. Somos amigos e vou lá falar-lhe”. “Se vais a casa dele, leva-lhe um presunto” responde a mulher. “Tens razão” diz ele, aceitando a sugestão. E retirou um do varal, deixando o nosso amigo desgostoso por não ir parar à mesa de um diretor.
E foi daquele canto da cozinha que viu serem levados todos os seus vizinhos, um a um, como “chaves” para “desbloquear” situações e “abrir portas”, com destino a casas de gente importante com que ele tanto sonhava.
Um mês mais tarde, já sozinho, a conversa dos donos voltou a interessar-lhe. O filho do industrial dizia ao pai que tinham de tirar dois andares a um projeto senão, não era licenciado. “Não pode ser, quero manter esses pisos. Pensando bem, até já sei com quem vou falar” disse o industrial. “Oh home (abreviatura de homem), leva-lhe aquele presunto…” sugeriu a esposa. “Cala-te mulher, não sabes o que dizes. Um presunto? Não faltava mais nada. Tem é que ser “untado”…” responde-lhe o marido. “Quer dizer que lhe vais dar azeite?”, diz ela ingenuamente. “Oh mulher, não digas mais asneiras e deixa isso comigo” respondeu o industrial rematando a conversa. Ao ouvir isto, o presunto sentiu-se preterido pelo “azeite”, ele que era um “pata negra”.
Mas não seria a única vez que se isso aconteceria, pois umas semanas mais tarde, pai e filho conversavam sobre a forma como conseguir uma grande empreitada, quando o industrial se lembrou de um político muito influente para conseguir tal negócio. “Leva-lhe o presunto” voltou a mulher a sugerir, um pouco receosa da reação do marido. No seu canto, o presunto ficou todo contente porque, finalmente, ia parar a uma mesa respeitável. “Qual presunto, qual carapuça”, reage o industrial, “o que ele quer é “massa”, quer “cacau”, aquilo com que se compra os melões, percebes”? Mais uma desilusão. “Trocado por “massa”, “cacau e melões”? Que é isto? Qualquer produto vulgar é mais importante do que eu?” lamenta-se, vendo a esperança a esfumar-se.
Mas ela chegou, e da forma mais inesperada. Quando caía a tarde de sábado, o empresário entrou pela porta adentro e deu ordens à mulher: “Levei os homens à quinta para me arrumarem as lojas, mas o trabalho demorou mais do que eu contava e é preciso dar-lhes de comer. Arranja qualquer coisa”. “Olha, só tenho azeitonas e broa. Se calhar, é melhor levares aquele presunto”, diz-lhe ela.
O presunto ficou escandalizado. “Ser comido por gente simples? Mas porque é que não me servem a alguém da minha condição? Não posso ser mais ofendido”, pensou.
Mas, querendo ou não, de repente viu-se em cima de uma mesa tosca a fazer companhia à broa, às azeitonas e a um garrafão de vinho. “Que espetáculo de presunto” diz um dos trabalhadores. “Estou desejoso de saborear esta beleza” diz outro. Ao ouvir estes elogios, o presunto animou-se e, à medida que as finas fatias da sua carne deliciavam aqueles homens, choviam os ditos como “nunca comi nada tão bom”, “é a melhor coisa do mundo”, “que sabor, que aroma” ou “que rico presunto”. E ao crescerem os elogios, crescia-lhe o Ego. Foi então que o presunto acordou em si sentindo-se dignificado, e até abençoado, dando graças a Deus pela oportunidade de ser tão apreciado, de ter alguém que fazia justiça às suas qualidades, ao contrário do que sucederia se tivesse caído numa mesa seleta repleta de iguarias e de gente (provavelmente) enjoada.
E à medida que ia fazendo a delícia e deleite daqueles trabalhadores, o presunto mais maravilhado e agradecido ficava, dizendo para si mesmo: “Obrigado bom Deus por não me fazeres moeda de troca para pagar “fretes” ou comprar consciências em tráfico de influências ou corrupção. E pensei eu encontrar a felicidade na ilusão e no fausto, quando o segredo para a felicidade está em saber encontrar a nossa alegria na alegria dos outros…”