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As cataratas que ninguém quer ver…

Nasci e cresci na aldeia e o mesmo é dizer no meio da natureza. Não seria a mesma pessoa se tivesse sido num meio urbano. Ficou-me a atração pela liberdade, pelos grandes espaços e belezas naturais que ainda pululam por este nosso mundo. Entre elas, estão as cataratas. Uma catarata, é uma queda de água de grande caudal, em cortina. Por regra, proporciona imagens espetaculares. Há mais de cinquenta anos tive a oportunidade de conhecer a segunda maior catarata de África. O acaso levou-me a fazer o estágio em Angola sobre a cultura do algodão e, depois de três meses em Luanda, fui “despachado” para Malanje, cidade onde se encontrava sediada a delegação do Instituto do Algodão para a Baixa de Cassanje. A partir dali, com um velho jeep Land Rover e um nativo que era “homem para todo o serviço”, desde cozinheiro a mecânico, lavador de roupa a guia, percorri extensas áreas dessa parte de Angola. Um dia o meu colega e amigo Zé lançou-me o desafio para irmos visitar as Quedas do Duque de Bragança – já batizadas após a independência de Angola de Quedas de Kalandula – e que ficavam a oitenta quilómetros de Malanje. Aceitei e de repente vi-me a grande velocidade numa “picada” (estrada em terra batida) ladeada de capim com dois metros de altura, como que voando num túnel e sujeitos a ver surgir um carro em sentido contrário e no mesmo trilho único. Mas não aconteceu nada. Minto. Aconteceu que descobri então uma imponente catarata com mais de quatrocentos metros de comprimento e cem de altura, num cenário selvagem fantástico, com imagens de uma beleza que só lá, e naquele estado virgem, se podiam encontrar. Foi o meu primeiro êxtase perante uma “queda de água”, uma obra prima da natureza.

Já neste século, devo ter feito as minhas duas últimas grandes viagens com os dois filhos, ambas aos Estados Unidos. E tinha consciência que assim seria. Por isso, quis aproveitar esses momentos, ainda antes deles “levantarem voo” e passarem a voar na companhia de outras “aves”. 

Numa dessas aventuras, quando estávamos em Nova Iorque, decidimos ir conhecer talvez as mais célebres cataratas do mundo, que ficam na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá e que são conhecidas por Cataratas do Niagara, no rio com o mesmo nome. Metemo-nos numa dessas viagens turísticas, um misto de avião e autocarro e, na realidade, valeu bem a pena. Tudo o que se possa dizer sobre essa maravilha da natureza é pouco, apesar de hoje estar “metida” entre dois núcleos urbanos que se desenvolveram à custa do turismo que tal atração gera. É que são “só” vinte milhões de turistas ao ano que por ali passam … E é preciso dar-lhes guarida, comida e todos os bens de consumo de que tal gente se alimenta, incluindo “recordações para a família”. Nos seus sessenta metros de altura e mais de mil e cem metros de comprimento nos dois países, não se pode ficar indiferente a essa obra prima da natureza. Como diz a publicidade, é uma das mais belas do mundo.

Um feliz desafio efetuado por um casal amigo também me levou a outro local onde as imensas massas de água e o terreno montanhoso do país fizeram com que ali existam muitas, grandes e belas quedas de água. Todos os rios da Islândia recebem água a partir de enormes glaciares e do clima atlântico que gera grandes quantidades de chuva e neve. A Islândia é um dos mais belos países do mundo para se ver quedas de água. E há muitas. Mas tem de se ir preparado para fazer longas caminhadas pois, nalguns casos, o carro não chega perto. E são indispensáveis agasalhos e mais agasalhos, porque faz frio a sério, muito especialmente quando o vento polar sopra com intensidade e nos trespassa os ossos …

Mais recentemente, ainda na companhia do mesmo casal amigo, tive a felicidade de me deixar maravilhar por aquela que se tornou para mim a catarata das cataratas. Fica no rio Iguaçu, na fronteira entre o Brasil e a Argentina. A sua beleza ainda é mais extraordinária porque as Cataratas estão integradas em dois Parques Nacionais, o brasileiro e o argentino, com uma dimensão enorme, numa demonstração séria de como proteger a natureza e a sua joia. Só lá se toma verdadeira consciência da sua dimensão, em tamanho e beleza. Por isso, os dois Parques Nacionais foram classificados de Património da Humanidade e o do Brasil escolhido como uma das sete maravilhas do mundo. Para termos noção da sua grandiosidade, trata-se de um conjunto de 275 quedas de água com o comprimento total de 2,7 quilómetros, encastradas na mata atlântica. Um assombro. O ponto alto desse conjunto é a chamada “Garganta do Diabo”, em forma de U, onde o visitante se sente no meio de uma enorme catarata com água a jorrar por todos os lados.

Mas, se adoro ver cataratas como estas que tive o privilégio de visitar e conhecer, cada uma com a sua beleza natural própria, há outras de que não gosto mesmo nada e “nem pintadas” as gostava de ver, muito menos nos meus olhos. Fazem com que a paisagem não tenha beleza, as letras não façam sentido, as pessoas tenham um rosto difuso. Pões óculos, tiras óculos, limpas as lentes para ver se o problema acaba, mas a “neblina” continua e vês tudo enevoado. Não adianta esfregar os olhos. Estás acordado, não é esse o problema. Piscas os olhos para ver se a imagem regressa ao normal, mas ela continua nublada, quase como se estivesses atrás de uma fina cortina de tule. Até que vamos ao oftalmologista e, depois de nos espreitar a alma através dos olhos, descobre algo e dá a sentença: “Você tem cataratas”. E, quando algum vos disser isto, não vale a pena sonhar com o que vos contei lá atrás, porque não vão precisar de viajar para chegar a elas, porque “elas” estão em vós, nos vossos olhos. É o cristalino, essa lente natural do olho, que ficou turvo. “Deu o berro”. E o cirurgião pode retirá-lo e substitui-lo por uma lente artificial, para regressar à normalidade.

Eu já esfreguei os olhos quanto baste, mas não passou. Nem passará. Já não tenho mais alibi para adiar o inadiável, se quero voltar a ver com nitidez as verdadeiras cataratas … E quero.      

Vozes de burro não chegam ao céu…

“Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixe de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. (…)”. Foram palavras de Guerra Junqueiro no ano distante de 1896, mas tão atuais, incluindo para o que aqui me traz.

Para quem não sabe, um provérbio é um dito de tradição popular que resume um conceito ou uma norma social. É curto, de autor anónimo e baseia-se no senso comum ou no conhecimento empírico. Por uma questão de princípio, devo confessar que gosto muito de provérbios e até comecei a fazer uma recolha há muitos anos. Esse rol dorme entre a anarquia dos meus papeis. Por isso escrevo, não só na condição de “fã incondicional” dos ditados e frases populares, mas também pelo respeito da tradição que passou de geração em geração e faz parte da cultura do povo que somos. E ainda como defensor dos direitos dos animais, se bem que já se estarão a perguntar “o que é que a cara tem a ver com a careta”. Mas tem. Já lá irei.

O PAN, partido dos animais, aderiu à campanha da PETA, organização com sede nos Estados Unidos, para alterar expressões que “reforcem comportamentos negativos contra os animais”, entre as quais alguns provérbios. Tiveram o desplante de propor “alternativas” para meia dúzia deles, quando ali “não vejo mata de onde saia coelho”. 

Sugerem que o ditado popular “matar dois coelhos de uma só cajada” deva ser alterado para “pregar dois pregos de uma só martelada” e ainda que “pegar o touro pelos cornos” deva ser substituído por “pegar uma flor pelos espinhos”. Diria o povo que é preciso ter cá uma “cabeçorra” !!! É que não é qualquer um que tem “inteligência” suficiente para tão arrojadas propostas. Trocar o “touro” por uma “flor”, é “genial. Será que perguntaram aos coelhos e aos touros se se sentem ofendidos por se verem nomeados na frase de um conceito? E mudar “cajada” para “martelada” – e cada um dá-lhe o sentido que quer – deu muito que pensar. Esta deve ter sido muito difícil …

Muita imprensa classificou este “devaneio absurdo” de autêntica “palhaçada”. Será que um deputado da nação não tem mais que fazer?Não sei se estas ideias peregrinas lhe surgem enquanto dorme no parlamento “embalado” pelos discursos desenxabidos e maçudos dos seus pares ou para ganhar protagonismo (que não tem). Há uns anos atrás um “pseudo intelectual” da nossa praça também propôs que se alterasse a letra do Hino Nacional. Dizia esse “iluminado” que já não fazia sentido a expressão “contra os canhões, marchar, marchar”. Foi ignorado e bem. Agora, estamos perante novo “iluminado”, com lugar de responsabilidade no Parlamento ao ser eleito pelos portugueses como deputado. É mais um assalariado do povo português. Ora, como não consegue resolver questões centrais do seu programa eleitoral – acabar com o abandono e maus tratos a animais – entretém-se com estes devaneios de fanatismo ridículo. Aprendeu depressa o jogo da política ao falar do acessório e esquecer o essencial, por ser incapaz de o resolver. Um absurdo. E assumindo as posições da PETA como suas causas, fez dos provérbios e frases populares que atravessaram séculos e passaram de geração em geração, um alvo a abater. Melhor, a adulterar, tal como o outro intelectual o queria fazer com o Hino Nacional. Devo ser “burro” – e espero que o digníssimo deputado não venha sugerir alterações à minha hipotética afirmação – pois não vejo no que as suas propostas possam ajudar a defesa dos direitos dos animais, se é nisso que está interessado.

A ser assim, se um “pato bravo” pode propor adulterar provérbios, porque não exerço eu também o meu direito de mudar alguns que já são “mais velhos do que a Sé de Braga”? Pode ser que a minha veia artística não lhe fique atrás, nem “no engenho nem na arte” e mais adiante, num próximo ato eleitoral, possa ser também candidato a um “tachito” na capital, com direito a dormir na hora do trabalho.

Considero desde já que o provérbio que serve de título a esta crónica deve sofrer uma pequena mudança para “Vozes de deputado não chegam ao Céu”, que é como quem diz, que ninguém está interessado nas suas propostas. Ou será mais adequado ser “vozes de burro…”? Afinal, voto pela manutenção do “burro”. Ajusta-se melhor à voz do proponente … Também, ao olhar para o ditado “pela boca morre o peixe”, acho que se pode substituir este pelo “político”, pois o que lhes sai da boca nem sempre lhes garante o futuro. Tal como “grão a grão, alguns (e todos sabemos quem) enchem o papo”.

Desde criança, sempre ouvi dos mais velhos variados provérbios que haviam aprendido com os mais velhos e assim sucessivamente, não se sabendo a idade de cada um deles. Mas, que são muito antigos, parece não existirem dúvidas. E, que se saiba, nenhum “inteligente” questionou de forma significativa o seu teor numa ótica de ofensa, estímulo à agressividade, ao mau comportamento ou ainda à boa saúde mental de quem quer que seja. Nomeadamente dos animais. Ou será que, afinal, quem está em causa são outros “animais”?

Provavelmente, também desistia…

Não fui, não sou, nem gostaria de ser professor, especialmente nos dias de hoje. Julgo que não teria paciência suficiente nem capacidade de encaixe. Por isso, admiro muito todos aqueles que se dedicam a essa nobre arte de ensinar, muitas vezes a quem nem sequer quer ser ensinado. E essa admiração é renovada sempre que ouço ou conheço testemunhos daquilo a que um professor está sujeito nos nossos dias. O jornalista e escritor Leonardo Haberkom era professor numa das universidades de Montevideu e escreveu um texto emotivo no seu blog pessoal, mas que um jornalista publicou e a internet fez chegar aos quatro cantos do mundo e que certamente tocou e toca muito a quem exerce a profissão de educador. Esse professor uruguaio atira a toalha ao chão e diz não poder mais com seus alunos e suas extensões tecnológicas, do twitter ao facebook. E que já não pode captar a sua atenção, nem alterar a sua profunda ignorância. Com o título “Me cansé … me rindo …”, declara o porquê de deixar o ensino, a profissão que antes o apaixonava. Diz ele:

“Depois de muitos anos, hoje dei a última aula na Universidade. Cansei-me de lutar contra os telemóveis, contra o whatsapp e contra o facebook. Ganharam-me. Rendo-me. Atiro a toalha ao chão.

Cansei-me de falar de assuntos que me apaixonam, perante jovens que não conseguem desviar a vista do telemóvel, que não para de receber selfies. Claro que nem todos são assim. Mas, cada vez há mais.

Até há três ou quatro anos a advertência para deixar o telemóvel de lado durante noventa minutos, ainda que fosse só para não serem mal educados, tinha algum efeito. Agora, não. Pode ser que seja eu que me desgastei demasiado no combate. Ou que esteja a fazer algo mal. Mas há algo certo: muitos desses jovens não têm consciência do efeito ofensivo e doloroso do que fazem. Além disso, cada vez é mais difícil explicar como funciona o jornalismo a pessoas que o não consomem nem veem sentido em estar informadas.

Esta semana foi tratado o tema Venezuela. Só um estudante entre vinte conseguiu explicar o básico do conflito. O muito básico. O resto, não fazia a mais pequena ideia. Perguntei-lhes (…) o que se passa na Síria? Silêncio. Que partido é mais liberal ou que está mais à esquerda nos Estados Unidos, os democratas ou os republicanos? Silêncio. Sabem quem é Vargas Llosa? Sim! Alguém leu algum dos seus livros? Não, ninguém!

Lamento que os jovens não possam deixar o telemóvel. Nem na aula. Levar pessoas tão desinformadas para o jornalismo, é complicado. É como ensinar botânica a alguém que vem de um planeta onde não existem vegetais. Num exercício em que deviam sair para procurar uma notícia na rua, uma estudante regressou com a notícia de que se vendiam, ainda, jornais e revistas na rua.

Chega um momento em que ser jornalista é colocar-se na posição do contra. Porque está treinado a pôr-se no lugar do outro, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. E então vê que estes jovens, que continuam a ter inteligência, simpatia e afabilidade, foram enganados e a culpa não é só deles. Que a incultura, o desinteresse e a alienação não nasceram com eles. Que lhes foram matando a curiosidade e que, com cada professor que deixou de lhes corrigir as faltas de ortografia, os ensinaram que tudo é mais ou menos o mesmo. Então, quando compreendemos que eles também são vítimas, quase sem darmos conta baixamos a guarda. E o mau é aprovado como medíocre e o medíocre passa por bom, e o bom, as poucas vezes que acontece, celebra-se como se fosse brilhante. Não quero fazer parte deste círculo perverso. Nunca fui assim e não serei assim. O que faço sempre fiz questão de o fazer bem. O melhor possível. E não suporto o desinteresse face a cada pergunta que faço e para a qual a resposta é o silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Eles queriam que a aula terminasse. Eu, também.”

Talvez o pior de tudo seja o facto daqueles alunos irem ser amanhã Adultos, sem terem crescido nem amadurecido, cheios de Direitos, sem Deveres nem Responsabilidades … alguns até Políticos ou Governantes …

Tinha escrito esta parte da crónica há uns dias atrás e acabei agora de a mostrar a uma jovem que estuda enfermagem. Depois de ler este desabafo, contou-me o que hoje mesmo se havia passado numa das aulas. O professor lecionava num auditório que não estava cheio e, em dado momento, enquanto ia debitando a matéria, saiu do lugar na tribuna e foi andando entre a plateia até parar junto de um aluno que nem se apercebeu da sua chegada, de tão concentrado no que estava a fazer. “Você já está agarrado ao telemóvel há mais de quarenta minutos”, começou ele na abordagem ao aluno. “Você não consegue, desligar-se, pois não? É muito importante estar a par do que se está a passar nas redes sociais”? O aluno não ficou atrapalhado, mas fez menção de desligar o telemóvel. O professor interveio: “Não desligue se não quiser. Não é isso que conta. Aliás, se preferir, tem ali a porta e pode ir lá para fora para ter mais privacidade”. E, voltando-se para a turma que os olhava em silêncio, continuou: “Vocês já alguma vez se interrogaram qual a razão porque querem tirar este curso? Já algum dia se perguntaram se a razão principal é por quererem cuidar de pessoas? Ou se, pelo contrário, é porque o pai ou a mãe querem que vocês tirem um curso, seja ele qual for? Mas é isso mesmo que vocês querem? Se pensam que eu fico preocupado, estão enganados. Tenho a minha vida organizada, atingi todos os objetivos a que me propus. Para isso, tive de trabalhar, tirar um curso, ser bom para poder tratar pessoas de carne e osso. Sinto-me realizado. 

E vocês? O que é que já alcançaram? Nada. Eu tinha de andar todos os dias cerca de uma hora de comboio e autocarro até chegar à universidade. Vocês, na maioria, vêm no carro que o papá vos deu e, se o destruírem, irão ter outro. Se calhar, melhor. Sem esforço, sem trabalho vosso. Será que vão acabar o curso? Talvez. Mas, será ele uma ferramenta de trabalho ou só um título para encaixilhar? É que, se pensam que saem daqui a saber o suficiente para exercer, estão enganados. Vai ser preciso trabalhar muito para se tornarem bons profissionais. O curso é uma ferramenta que os prepara para aprenderem. Mas precisam de ter a humildade e a força de vontade para o fazer. Aqui podem aprender mais ou menos conforme estejam disponíveis ou não e absorver o que vos ensinam. A escolha é vossa, entre isso ou atender prioritariamente ao que se passa nas redes sociais, como o vosso colega … e muitos outros”.

O silêncio foi a resposta. O mesmo silêncio a que nos remetemos tantas vezes enquanto pais, enquanto educadores … 

Heróis do meu dia a dia: Como se deve viver e morrer…

Quando morre um “Homem Bom”, todos perdem e o mundo fica mais pobre. Perde a família, perdem os amigos, perdem aqueles com quem se relaciona, perde a sociedade. Enfim, perdemos todos. Porque não é todos os dias que se encontra um “Homem Bom” (e com este título quero referir-me aos dois sexos para não ser acusado de descriminar a mulher). Rico ou pobre, um “Homem Bom” é raro, algo que quase já não se fabrica. Tem que conter em si um misto de genes da bondade e educação a condizer, respaldada pelo bom exemplo de vida dos pais, porque é fundamental. A principal característica que o “Homem Bom” transporta consigo é a de querer sempre o melhor para os que estão à sua volta, para estar de bem consigo. A bondade deriva do amor ao próximo. Daí a sua permanente preocupação com os outros, mesmo antes de se preocupar consigo. Por isso, nele esse egoísmo não existe porque dá prioridade às necessidades dos que o rodeiam. Diz o Salmo que “os passos de um homem bom são confirmados pelo Senhor … ainda que caia, não ficará prostrado” …

Paulo foi um jovem que não quis concluir o seu curso universitário e preferiu ir trabalhar com o pai, proprietário e principal responsável de uma empresa de média dimensão. Durante anos fez da empresa a sua escola para a vida e com o pai aprendeu tudo o que precisava aprender para o poder substituir no dia em que tomou a decisão de se reformar e entregar-lhe “o leme do barco”. Por isso, foi com toda a naturalidade que assumiu essa pesada responsabilidade, sendo que depressa ganhou o respeito e a amizade dos colaboradores. A sua juventude e dinamismo fizeram com que a empresa alargasse os seus horizontes a novos mercados, o seu humanismo fê-lo ganhar todo o respeito dos trabalhadores. 

Mas a globalização e a crise, associadas a perdas muito grandes com a falta de pagamento de clientes angolanos e espanhóis, arrastaram a sua empresa para a insolvência, apesar de todos os esforços para a salvar. E então, a sua maior preocupação passou a ser os trabalhadores, porque a empresa ficou sem meios para pagar os direitos que lhes eram devidos. Aí chegado, rejeitou a ideia de ficar a dever-lhes um cêntimo sequer. Podia fazer como a maioria faz nestas situações, escondendo os bens em nome de outros. Mas recusou-se e nem sequer deu ouvidos aos apelos de familiares e amigos para salvaguardar a casa e o carro. Não, tinha de cumprir com aqueles que o serviram e não podia ser de outra forma. Para isso, vendeu um a um todos os bens pessoais que tinha, desde a casa da família, o carro, terrenos (incluindo um onde projetava construir a nova residência), o mobiliário, a moto, as pratas e até as joias pessoais da mulher. Foi tudo. Só ficou a roupa de cada membro da família. Aos insistentes apelos de quem lhe era mais próximo disse sempre que não, com um argumento de peso: “Eu tenho capacidades e conhecimentos para me defender que a maioria das pessoas que trabalhava comigo não tem”. E aceitou, com naturalidade, ficar sem nada.

Recomeçou a vida do zero no Brasil por conta de um empresário que lhe prometeu salário e compensação pelos resultados. Mas viria a não cumprir. Regressou a Portugal para trabalhar, restabelecendo a vida profissional, económica e familiar baseado nos princípios que sempre o nortearam da retidão, verticalidade e preocupação pelo próximo. Mas o futuro nem sempre é justo para os justos. Quando tudo parecia voltar a sorrir, uma doença maligna atirou-o para as rotinas dos hospitais, sujeito a tratamentos intensos e agressivos, bem como aos avanços e recuos da doença. À quimioterapia, fez uma reação alérgica brutal que lhe deixou o corpo em ferida, num sofrimento horrível. Mas aceitou-o sem revolta nem desânimo. No final, só perguntou ao médico: “E agora? O que me resta”? Manteve a esperança intacta ou, pelo menos, soube transmitir essa esperança a familiares e amigos. Só quando quiseram extrair-lhe o tumor para lhe darem mais algum tempo de vida, recusou dizendo que, a partir daí, era uma questão de calendário, numa aceitação do fim sem queixas, apesar da violência das dores. Um ciclo duro, onde colheu alguns frutos do muito amor e generosidade que plantou na vida, ao ficar rodeado por familiares e amigos incondicionais que nunca o deixaram só. Até o patrão e amigo não deixou de lhe pagar o vencimento por inteiro ao longo de mais de dois anos, pela sua capacidade profissional e técnica, mas sobretudo, pela sua afabilidade e humanidade.

Sabendo que ia morrer a curto prazo, a sua preocupação foi sempre para a mulher, a filha e o irmão que padecia de doença semelhante, a ponto de comemorar com grande alegria a redução das metástases dele. O seu respeito pelos outros era tal que, quando o cunhado lhe fez uma adaptação para o sofá, sempre que ele estava presente tinha a preocupação de ficar ali sentado e só o abandonava já depois dele sair. Apesar daquela posição lhe ser muito mais dolorosa …

Nos últimos meses permaneceu na sua residência, mas quando sentiu que estava a ficar sem tempo, quis ir para o hospital para a sua filha não ficar com a imagem do pai a morrer em casa. Despediu-se da sua irmã, com quem tinha uma grande cumplicidade, com um “Obrigado por tudo. Um dia destes encontramo-nos outra vez” e pediu para lhe prometer “que à mulher e à filha não faltasse nada. E não falava de dinheiro”. Despediu-se daqueles de quem mais gostava, até pedir à irmã: “Por favor, não deixes vir mais ninguém, porque já não tenho força para mais despedidas”.

Mas a mais notável das suas ações, aquela que revela uma nobreza de caráter invulgar só acessível a alguns Homens, foi a vontade expressa de se despedir daqueles que o prejudicaram de uma ou outra forma, para lhes conceder o seu perdão. E fez questão de pedir ao padre celebrante para, na cerimónia do seu funeral, nessa hora de adeus, lhes dizer: “Àqueles de quem não me despedi, àqueles que me prejudicaram, às pessoas de quem a vida me afastou, eu quero dizer-lhes para não viverem mais com remorsos. Eu quero dizer-lhes que estão perdoadas. E não vale a pena viverem com ressentimentos, porque o que mais conta é o perdão. Que sejam muito felizes e não se deixem dominar pelas mágoas”. E ele sabia que estariam lá alguns … 

Em vida semeou amor e amizade, reunindo regularmente ao longo de anos com um grupo de familiares e amigos, para confraternizar. E a sua memória permanece viva nesse grupo, que continua a reunir com a mesma regularidade, a mesma alegria, o mesmo entusiasmo como ele gostaria que vivessem, tirando fotos que colocam no Facebook com uma dedicatória muito especial: “Para ti, Paulo” … 

Porque sabem que ele está lá para as receber …