Monthly Archives: September 2020

Obrigado, senhor Pinto “da Adega”…

Há algumas décadas a Luísa sofreu um acidente de automóvel grave e foi transportada para o Hospital de S. João, onde permaneceu durante alguns dias e sujeita a intervenção cirúrgica. Quando a visitávamos, queixava-se de uma dor no peito, sintoma que também foi referindo ao médico que a acompanhava. Face à continuação dessas dores, no dia em que lhe deu alta o médico deu-nos um conselho: “Se querem a minha opinião pessoal, recomendo-lhes que a senhora vá fazer uma nova radiografia no Dr. Pinto Leite”, nessa altura uma referência na área de Imagiologia. Mal saímos do S. João, seguimos diretos à baixa do Porto onde ficavam as instalações do radiologista. A Luísa foi logo atendida, fez o exame e pouco depois tínhamos o diagnóstico: “Duas costelas partidas”. Perante a situação, lembrei-me de um ortopedista nosso conhecido com consultório no Porto, para onde seguimos logo. Atendeu-nos muito bem e depois de ver a Luísa e os exames, colocou-lhe uma ligadura bem apertada à volta do tronco, na zona do peito.

Quando regressamos a casa a Luísa continuava a gemer e satisfez-se com a possibilidade de “estar pisada”. No entanto, passou a semana a queixar-se do mesmo. Ao fim de oito dias, disse-me: “E se eu fosse ao sr. Pinto”? Admirado, respondi-lhe: “Já estive para te falar nele, mas como tu normalmente pões em dúvida as suas capacidades” … E, sem lhe dar tempo a arrepender-se, lá fomos a casa do senhor Pinto, que nos recebeu com a cordialidade e simpatia do costume. Informado do que se passou, tirou a ligadura, colocou-se em posição e percorreu as costelas uma a uma com os dedos até parar concentrado. Então disse: “A senhora tem razão continuar a ter dores, pois as costelas estão a soldar sobrepostas quando deviam soldar de topo”, enquanto usava os dedos para mostrar a posição. “E agora”, perguntou a Luísa? “Já começaram a soldar”, respondeu. “Por isso, pode ser um pouco mais doloroso”. Enquanto as mãos seguiam as costelas afetadas, ia falando sem parar, para a distrair. De repente, deu um esticão forte com os dois braços e ela reagiu com um grito de dor, seguido de um suspiro de alívio, enquanto dizia: “Ai, agora já não me dói”!!! E o certo é que não se voltou a queixar mais …

O senhor Pinto trabalhava na Adega Cooperativa de Lousada (daí ser conhecido por “Pinto, da Adega”) onde as nossas vidas se cruzaram quando ali prestei serviço durante duas ou três vindimas e foi fácil tornar-me seu amigo, porque era impossível não se gostar da sua humanidade, simpatia, disponibilidade e humildade genuína. O seu ar tímido e tranquilo, o respeito com que recebia e tratava quem dele se socorria e o dom que possuía na habilidade de mãos e sensibilidade dos dedos escondiam um homem com um enorme coração. Só soube dos seus dotes de “Endireita” durante esse tempo de vivência comum na Adega Cooperativa, embora já fossem muito conhecidos entre a população local pois era normal quando saía do serviço ter sempre à espera gente a precisar da sua capacidade para aliviar sofrimentos. E, depois de um dia de trabalho pesado na Adega, ele estava disponível para atender a todos com o mesmo sorriso tímido nos lábios. Conheci muitas pessoas a quem aliviou o sofrimento, desde simples entorses do tornozelo ao músculo da perna fora do sítio ou ao braço partido. Eu próprio recorri aos seus serviços bastantes vezes, especialmente ao longo dos muitos anos em que joguei futebol e hóquei em campo. E era ele que me aliviava das “medalhas” crónicas deste mau jogador amador, quer fosse no tornozelo, pescoço, dedos, mãos ou ombros. A verdade é que, fazendo uso somente das mãos para manipular ossos, músculos e tendões, conseguiu sempre endireitar-me o “esqueleto”, corrigir posturas e recolocar no sítio os elementos, fazendo com que a dor desaparecesse.

A sua fama passou muito para além das fronteiras de Lousada e do distrito do Porto, passada de “boca em boca”, somente à custa dos resultados do seu trabalho num tempo em que não existiam redes sociais nem as notícias circulavam à velocidade de hoje. Ao longo de mais de seis décadas ajudou muitos milhares de pessoas no rés do chão de sua casa, que faziam fila desde madrugada vindos dos quatro cantos do norte, quando não de outras regiões do país. Cheguei a ver à sua porta um homem curvado por um “mau jeito” na coluna e que veio propositadamente de França, crente de que ele seria capaz de resolver-lhe o problema. E resolveu …

A sua atividade não era bem vista por parte da classe médica, o que é natural, pois não se gosta de “concorrência”, ainda por cima alguém sem habilitações e com “resultados”, embora tivesse muitos médicos que recorriam ao seu serviço pessoal, para si e para toda a família. 

Um dia levaram-lhe um homem que caíra abaixo dum carro de bois carregado e em andamento, tendo-lhe uma roda passado por cima do peito. Com paciência, colocou-lhe no sítio todas as costelas partidas e, depois de ligado, recomendou-lhe o habitual repouso e a aplicação de álcool na ligadura. Viria a saber dele já depois de recuperado, porque o homem embebedou-se e foi para a frente da casa do médico que o havia visto depois do acidente, gritando-lhe que era incompetente e exaltando as competências do senhor Pinto … 

Além de usar os seus serviços para tratar as maleitas, acompanhei familiares e amigos e assisti a autênticos “milagres”, de resultados imediatos. Com os dedos conseguia “ver” o que os entendidos só viam através de exames radiológicos. E mais. Manipulava ossos, tendões e músculos, recolocando-os na posição correta, eliminando a dor e as consequências futuras, sem intervenção invasiva. Um primo meu que era descrente das suas capacidades, evitou a cirurgia já marcada à coluna ao aceitar entregar-se durante dez minutos nas suas mãos. Só! Manteve sempre a sua humildade e discrição, como se tudo isso fosse natural, evitando falar dos muitos casos que resolvera. Numa das últimas visitas que lhe fiz mostrou-me as pernas cheias de pisaduras negras, resultado de ter atendido dois meliantes durante a noite que lhe tocaram à campainha queixando-se um deles de estar muito mal. Na sua disponibilidade permanente, ao abrir-lhes a porta foi atacado pelos dois que julgaram ser fácil dominá-lo. Porém, esqueceram-se que, apesar de estar a caminho dos noventa anos, aqueles braços e mãos faziam muito exercício diário. Agarrou um pelo pescoço com a mão esquerda enquanto esmurrava o outro. O que estava preso pelo pescoço foi-lhe dando pontapés nas pernas (daí as nódoas negras) enquanto não lhe faltou o ar e o outro, quando conseguiu libertar-se, fugiu. Só largou o primeiro ladrão já fora da porta de casa, inanimado, tendo desaparecido durante a noite sem desejo de voltar. 

Não pude acompanhar o senhor Pinto na sua última viagem, mas ele sabe que só algo de imperioso me impediu de o fazer. Mas, enquanto não nos voltarmos a encontrar, fica-me a lembrança de um homem bom, discreto, humilde, apaixonado por Lousada e sem vaidades, que adorava cuidar dos cães e ir à caça, um dia de “descanso” para quem estava sempre disponível a acudir ao sofrimento dos outros. 

Tenho uma dívida que não lhe paguei: quando abriu a porta do fundo da Adega Cooperativa para eu entrar no Arraial Minhoto que ali se realizava, satisfazendo o desejo de um jovem adolescente, mas sem dinheiro para pagar a entrada … 

Em nome de todos aqueles milhares de pessoas que tiveram a sorte de beneficiar dos seus cuidados e do alívio de sofrimento que a todos trouxe, entre os quais me incluo, um MUITO OBRIGADO. E, em nome pessoal, um grande OBRIGADO por o ter como amigo … e pela borla.   

Máscaras, mascarados e os enganos

Nunca “corri o Entrudo” e nem sequer andei mascarado no Carnaval, apesar de me terem posto à disposição por diversas ocasiões vários modelos desse disfarce em épocas carnavalescas. O rosto à vista, a nu, é uma liberdade da nossa cultura de que não quis abdicar, ainda que por pouco tempo. O rosto não só é o que mais nos identifica, boa parte do “cartão de visita” de cada um, como o espelho das emoções, sentimentos, pensamentos, estados de alma. Tapado, é como um livro fechado que não se consegue ler. Ao olharmos um rosto atentamente, percebemos alegrias e medos, entusiasmo e tristeza, raiva ou ternura, porque tem comunicação direta com a alma e o coração.

Mas apesar do meu gosto pelo “rosto nu”, um “desconhecido” que não respeita países, fronteiras, sexos, raças, religiões, idades, riquezas ou limites, fez-me “ajoelhar” e pôr a máscara, transformando-me nesse “mascarado” que nunca quis ser, embora por razões sanitárias, mais para proteger os outros do que para me proteger do inimigo comum, esse desconhecido apelidado de covid-19. 

O uso de máscara começou por ser rejeitado tanto pela Organização Mundial de Saúde, Direção Geral de Saúde e ministra da Saúde como por Secretários de Estado, especialistas encartados e outros críticos do vírus, durante demasiado tempo, tido como perigoso, suscetível de provocar contágios, de uso não aconselhado e outros argumentos mais, que poderiam estar a esconder outras razões. E de repente, os “peritos” dão uma “cambalhota” e colocam-se na posição contrária. De veículo de transmissão passou a proteção principal, de produto de risco a uso aconselhado, de perigoso a obrigatório. Repentinamente, de rosto nu passamos a “mascarados”. De “namorada recusada” à “obrigação de casar” … mas não para todos. O presidente da AR Ferro Rodrigues recusou a ideia do uso de máscara em plena pandemia para as Comemorações da Revolução, afirmando: “Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril”? Mau exemplo de quem deveria dar o exemplo. E, coisa curiosa: uma semana depois o mesmo Presidente Ferro Rodrigues determinou ser obrigatório o uso de máscara dentro da Assembleia da República …

Ao mudar de paradigma, a máscara tornou-se objeto de “negócio da China”, tanto para os próprios chineses como para outros “chineses” disfarçados de portugueses, até nas feições, tal foi a especulação. E a moda entrou na “dança” com criatividade. Multiplicaram-se modelos, tecidos, cores, feitios, enfeites. Redondas, quadradas, retangulares, triangulares, com cores do país, símbolos de clubes, eventos, marcas. Descartáveis ou não, com filtro e sem, de elásticos ou alças a envolver a nuca. Até objetos de luxo ao condizerem o tecido com o vestido, as calças ou a blusa. Quando se pensava que a necessidade de tapar boca e nariz nos nivelaria, tornando-nos iguais, estávamos enganados pois tanto há máscara de pobre como de rico, de fabrico caseiro com resto de tecido ou em seda da Pierre Cardin ou Prada. É que há quem não se fique por uma máscara qualquer para ir sair com amigos, jantar fora, ir ao cabeleireiro ou um evento. Tem de condizer com a toilette, a pele, os acessórios. E ser “daquela marca” … sem importar o preço. Daí haver cartazes a promover máscaras para todos os gostos, bolsas e visuais, em pacote ou personalizadas com assinatura, grandes para encobrir misérias e manter anonimato ou pequenas para deixar que se veja a tonalidade da pele.

Se no início deste ano a máscara era sinónimo de risco de assalto, de quem esconde a cara para não ser reconhecido e um sinal de perigo, agora vemos o perigo vem precisamente dos que não a usam … o que me deixa uma pergunta no ar: “Será que nesta altura os assaltantes de bancos entram de cara descoberta para chamar a atenção e até se diferenciarem dos clientes ou com máscara especial onde se possa ler o aviso “Isto é um assalto”? É que antes havia bancos que fechavam no Carnaval por causa dos mascarados e atualmente não nos deixam entrar se não formos mascarados. Quem os entende?

Desde o princípio da pandemia, a questão central que se põe quanto ao uso ou não de máscara é sobre a sua utilidade. Já percebemos que as entidades sanitárias começaram por negar essa utilidade para vir depois dizer precisamente o contrário no que toca a proteger-nos e proteger os outros do risco de contágio do covid-19. No entanto, essa utilidade vai muito para além da contenção do vírus. Que o digam os feios (e feias), desdentados, narigudos e de verrugas estranhas no rosto, que podem encontrar no uso da máscara um meio excelente para passarem despercebidos e não se sentirem discriminados. Dizia-me um homem muito mais novo que eu: “Há dias ia uma senhora à minha frente com um perfil e visual tal, que me senti obrigado em continuar atrás dela no passeio para apreciar a sua beleza. O corpo, o balançar das ancas, o cabelo comprido e liso a cair-lhe nas costas, as pernas bem torneadas, tudo estava no sítio. Às tantas parou, virou-se de lado e não consegui ver o rosto porque usava uma grande máscara preta. Mas, de repente, deu um grande espirro e acabou por tirar a máscara. Foi então que apanhei um choque terrível: a cara não tinha nada a ver com o resto!!! Que desilusão”. Cá está, a máscara foi-lhe muito útil enquanto a usou. No entanto, uma mulher bonita já não pode dizer que a máscara a beneficia. Pelo contrário, ao esconder-lhe a “carinha laroca” retira-lhe protagonismo entre o mundo masculino, e não só …

Pergunta-se tantas vezes se a máscara é eficaz no combate ao vírus do nosso desassossego. Pode-se garantir que sim. Já viram máscaras colocadas no revisor do automóvel? Pois está provado que até agora nenhum retrovisor apareceu infetado!!! Aliás, o mesmo se pode dizer das máscaras postas no pescoço (tipo gola), penduradas na orelha e no braço (tal e qual as braçadeiras de capitão), além da cabeça (tipo óculos para a miopia cerebral). Já se conhece alguém infetado nestas partes do corpo? Claro que não, o que só comprova a sua eficiência …

E a máscara veio para ficar. Em definitivo. De tal forma se radicou entre nós que já a vemos com frequência nas valetas, caixotes do lixo e fora deles, regos de água, barracos, ruas, avenidas, praças, becos, rios e mares, enfim, por todo o lado. 

Apesar de tudo, as máscaras são para já a principal arma para conter a transmissão do coronavírus na falta de cura ou vacina. Cirúrgicas, bico de pato, sociais ou outras, só se exige que sejam usadas sempre que a situação o recomende e com responsabilidade, coisa que nem sempre acontece. Num restaurante com “serviço de refeições para fora”, para que serviam as máscaras de todos os colaboradores (4), tidos por responsáveis pelo “atendimento, cozinha e preparação da encomenda” se, durante os vinte ou trinta minutos que esperei, só serviram para “tapar e segurar o queixo”? Era para evitar os “queixos caídos”? Assim, não adianta ter ou não ter máscara, usar ou não usar. Mal por mal, é melhor não usarem nada, pois saberemos com o que podemos contar.

Deixemos de nos enganar. Ou somos responsáveis e rigorosos no uso da máscara para travar o contágio ou optamos por fingir que somos e fazemos dela um adereço incómodo que vamos mudando de um lado para o outro do corpo sem cumprir a função de tapar sempre o nariz e a boca.  E, quando esse vírus nos bater à porta – e anda mais perto do que pensamos conforme comprovam as notícias dos últimos dias – atiramos as culpas para cima de alguém, talvez o patrão, a empresa, o governo ou o inimigo mais à mão, um qualquer “bode expiatório” para que a “culpa não morra solteira”. Claro, mais um dos enganos do costume …

Quando a vindima era comunitária

Era na Festa de Sto. Ovídio, em Aveleda, a 8 de Agosto, que eu comia as primeiras uvas do ano, a prenda crónica dos meus pais. Nesse dia, queria sempre comer uvas … e saber se houve a pancadaria habitual! Nunca soube de onde vinham as uvas, nem me interessava. Voltava a comê-las uma semana depois, compradas na Festa da Sra. Aparecida. As de casa dos meus pais e avós, só muito mais tarde começavam a amadurecer. E eu sabia bem onde as havia boas, em casa e fora, às vezes pintadas com “roxo rei” para não lhe tocarmos. Por isso, nasci e cresci em comunhão com videiras e uvas, até quando só procurava o ninho de melro. Tenho excelentes recordações desse tempo, das uvas e vindimas, da alegria e prazer de viver. E as vindimas eram um hino à felicidade, próprio de bilhete postal. Por ser “véspera” de Outubro, lembrei-me das vindimas, tanto nos quintais de meus pais como no campo da minha avó. Neste, ainda vejo os homens a levantar escadas enormes de madeira de vinte e tal passais para ir colher as uvas das videiras que trepavam bem alto, agarradas às árvores, normalmente lodos, plátanos e mais raramente, castanheiros ou cerejeiras, no que chamavam “vinha de enforcado”. E era preciso ter um misto de força e equilíbrio para conseguir levantar uma dessas escadas compridas e encostá-la à árvore, como para a mudar para outra sem a deixar cair. À mínima distração ou pequeno desequilíbrio, a escada caía com estrondo, estendida no campo entre a erva e os “estrepes” dos pés de milho, às vezes desfeita em bocados. As vindimas eram sinónimo de festa e, sobretudo, de um dia em que se comia melhor. Participava a família, amigos e vizinhos, em colaboração comunitária sem qualquer pagamento, a não ser a comida. Armados de escadas de madeira, de abrir para colher nas ramadas, ou de passais para subir às árvores ou bardos altos. Geralmente eram os homens que colhiam para grandes cestas com gancho, enquanto as mulheres controlavam e carregavam os cestos à cabeça para o carro de bois ou diretamente para o lagar se fosse perto. 

Nós, miúdos, apanhávamos os bagos caídos na colheita, sob o olhar atento de uma mulher mais velha, que nos ia espevitando com a frase do costume: “conheço um homem que fez dez pipas de vinho só com bagos” …

A vindima era sinónimo de alegria e animação, misto de conversas, cantorias e começo de namoricos. De vez em quando, alegrada com um berro prolongado lá do alto da escada para chamar a atenção da mulher do cesto, sinal de que a cesta estava cheia, com um alegre “Oh cesteiraaaaaaaaa”!!!

À volta do campo onde a minha avó semeou durante muitos anos os melões “casca de carvalho”, existiam videiras a trepar pelas árvores acima, com alturas variadas, que davam um excelente vinho tinto no dizer dos “bebedores” que, nessa época, eram muitos. É que, “beber vinho era meia mantença” e desde tenra idade o vinho fazia parte da ração diária. Aliás, a miudagem era “iniciada” no consumo de álcool desde o berço, pois a forma de adormecer um bebé quando estava a berrar entre os trapos onde o embrulhavam , era meter-lhe na boca a “boneca”, um pano enrolado embebido em aguardente …

Vindimas também significavam sardinhas fritas sobre um bocado de broa, regadas a vinho tinto; mudar a escada de um lado para o outro; mulheres a carregarem os cestos de uvas à cabeça sobre a “rodilha”; e o arregaçar das calças, lavar (e mal) os pés no alguidar de barro para pisar uvas no lagar ou numa dorna. Nesse tempo, a quase totalidade das uvas eram tintas. É que, vinho, vinho, só era considerado o verde tinto. O verde branco, dizia-se, “era para senhoras”. E, como se vivia numa época de “machos”, sempre prontos a afirmar a sua condição, homem que se prezasse bebia verde tinto. Nem branco, nem maduro, nem cerveja. Só tinto. Era normal no final do dia de trabalho entrar-se na loja ou tasco, pedir um copo de vinho (tinto e de litro) e “virá-lo de tiro”, isto é, de uma vez só. As uvas brancas ou eram atiradas para o meio das tintas onde o “vinhão” compensava a falta de cor ou o caseiro da quinta fazia meia ou uma pipa de vinho branco para ser consumido pelo senhorio na parte que lhe tocava da renda. É que nas “lojas” ou “tascos” só se vendia verde tinto, que os apreciadores bebiam em canecas de porcelana depois de as agitarem duas ou três vezes para ver formar o “lasso”, sinónimo da qualidade da “pinga”.  

O vinho era muito importante para as pessoas desse tempo, porque fazia parte da sua alimentação, por mais pobre que fosse a casa. Em todas as refeições. E, como eram tempos difíceis, uma das formas de “esticar” a capacidade de transformar as uvas em vinho e aumentar a quantidade, era fazendo a “água-pé”. Depois de retirado o vinho do lagar para as vasilhas (pipas ou pipos), ao bagaço que ficava antes de espremido juntavam-se alguns almudes de água com vários quilos de açúcar. Depois de nova fermentação, obtinha-se a “água-pé”, aquilo que se poderia chamar de “vinho dos pobres”, com baixa graduação e pouco poder de conservação. 

Vieram-me à memória estas lembranças porque ontem um agricultor desabafava comigo sobre a grande dificuldade que tem de arranjar pessoal para a vindima. Dizia ele que tem de se desenrascar só com a mulher e duas filhas para vindimar toda a quinta, o que o obriga a prolongar a colheita por várias semanas. Da velha geração, recordava com muita saudade o tempo em que a vindima era um acontecimento comunitário, misto de trabalho e confraternização. E agora, mesmo pagando bem e alimentando melhor, não consegue arranjar gente para a vindima. “Sinal dos tempos”, dizia ele. 

Eu fiquei a pensar que é a “agricultura de sobrevivência” a dar lugar à “industrialização agrícola”. E, como diz o velho agricultor, “um sinal dos tempos” …

Melão? “Casca de Carvalho” é o Rei…

Diz o ditado que “em terra de banana qualquer melão é rei”. Ora, nós não estamos em terra de banana, nem estamos na Madeira (e nem chegamos à Madeira …). Por isso, aqui nesta terra onde nasci, para ser rei só há um melão: “casca de carvalho”. Pois não é um melão “pele de sapo” ou de Almeirim que tem direito a esse estatuto. Aqui, não!!! Fui educado assim e a minha avó materna incutiu-me os ensinamentos e o respeito por este fruto especial. Durante a minha infância e parte da adolescência passei longos dias nos seus meloais e acompanhei todas as fases da cultura, desde a preparação da terra à colheita; desde a abertura das covas com a largura de uma enxada que se enchiam de estrume da corte, bem curtido para fazer a “cama quente” (ideal para a semente germinar bem) ao “capar dos melões”, para produzir mais rebentos laterais; desde a “monda” de frutos, deixando crescer só um melão em cada haste, à rega feita com peso, conta e medida. A minha avó gostava muito de melão e percebia do assunto. Ainda me vem à memória a sua imagem a segurar o melão na mão esquerda e, com o dedo médio da mão direita, a tocá-lo para saber pelo toque se era bom ou não. E sabia. Porque um dos grandes problemas deste melão sempre foi haver “especialistas” capazes de saber se o melão é bom ou um grande fiasco. E nesse tempo de bons entendedores, também acontecia um fiasco de vez em quando, mesmo com os ditos … 

Comi muito melão casca de carvalho e a grande maioria era excelente pois até tinha “polpa dura, sabor doce e picante intenso”. E registei a máxima popular: “este melão tem dia e hora para ser comido”. Nem antes, nem depois. Sempre preferi os melões de polpa amarelada, se bem que também goste de avermelhados ou “gelados em verde”. E ao meter-lhes a faca gosto de os ouvir “bufar” e libertar o gás carbónico, requisito que indicia a qualidade. Isso não acontecia nos “rachados” ou “rebentados”, geralmente de excelente qualidade, mas que no pico do calor e do gás, acabavam por abrir, quase sempre ainda antes de estarem maduros. Apesar da idade, dei o meu contributo ao meloal, chegando mesmo a dar uso à casota onde se recolhia o Tónio para guardar os melões durante a noite. E até plantei pimentos para que saíssem mais “apimentados”, um mito popular que nada tem a ver com a qualidade dos frutos. Mas é a tradição …

Nesse tempo, “melão” queria dizer “casca de carvalho” que, diga-se, ou era bom ou só servia para os porcos, por ser pior que “botefa” (abóbora). Se alguém falasse no “melão de Almeirim”, era o mesmo que falar de “botefa”. A maioria dos agricultores que se dedicava à cultura do melão percebia da matéria. De tal forma que, fazendo uso somente da apalpação, toque, cheiro e peso, eram capazes de garantir e “afiançar” a qualidade do produto.

Foi já adolescente que conheci os primeiros sinais da “mela”, doença que viria a afetar significativamente os meloais da região e que faz com que o meloeiro morra pouco antes dos frutos amadurecerem. No entanto, alguns indivíduos pouco escrupulosos metiam esses melões no forno aquecido para ganharem um tom amarelado de maturação, para os impingir a incautos que apanhavam uma desilusão quando os abriam. Anos mais tarde e já depois de cumprir o serviço militar, fui trabalhar para um organismo agrícola que, ingenuamente, eu achava que existia para apoiar os agricultores. Logo na primeira semana falei com o chefe do serviço de fitossanidade e expus-lhe o problema da doença que estava a dar cabo dos meloais na região. Como eu passara a ser o responsável de uma propriedade agrícola do estado onde se faziam ensaios e estudos agrícolas, propus-lhe que se estudasse tão grave problema para ajudar os agricultores. Mas ele não me deixou continuar: “Nem pense nisso, pois não há solução. O problema é dos solos graníticos. As raízes do meloeiro, ao crescerem, ferem-se nas asperezas do solo, abrindo porta à infeção por “fusarioses” e à morte das plantas”, disse-me ele com ar catedrático. Ao ver que ali “a porta estava fechada”, respondi-lhe com ar cínico: “É capaz de ter razão. O problema deve ser mesmo do solo. Mas fica-me uma dúvida: como é que durante tantos anos os lavradores tiveram bons meloais e sem doença, sendo o mesmo terreno? E “como terão feito os meloeiros” para fazer crescer as raízes no meio da “aspereza” do granito sem se “ferirem”, coisa que hoje “já não sabem fazer”? 

Gostando de melão, continuei a comê-los aqui e ali, se bem que nem sempre com a qualidade própria dum bom “casca de carvalho”, mas nunca abdicando a favor do “melão de Almeirim. Porém, um dia ia a entrar em Penafiel e estavam a descarregar melões de Almeirim. No impulso de momento e sem razão consciente, parei e entrei na loja. Pedi dois melões ao empregado e ele retirou-os dum pequeno lote, pesou-os e paguei. Quando já ia a sair, o dono da loja que estava na descarga entrou e perguntou ao rapaz de onde tirara os melões que eu já tinha na mão. ”Foi daqueles que estão separados”, respondeu-lhe. “Mas esses não eram para vender”, disse o homem irritado. Como já tinha pago, saí porta fora com os meus melões. Só quando abri o primeiro compreendi o que se passara: o dono da loja, na descarga, avaliava os melões um a um e selecionava aqueles que ele achava serem de qualidade e colocava-os no pequeno lote onde o rapaz os foi buscar. E não é que o raio dos melões de Almeirim eram excelentes e até tinham “a polpa dura, sabor doce e um picante intenso” como os nossos???!!! Confesso que, ao comer cada talhada, me senti como que a “trair” a causa dos melões “casca de carvalho” …

Muitos anos volvidos, continuo a apreciar um bom melão, sem ser tão fundamentalista pelo “casca de carvalho” como era. Porque o melão é diurético, calmante e laxante, para além de ter outros benefícios para a saúde. Às vezes servem-no com presunto, mas se ele for bom, basta o melão, com um bom vinho, até porque o ditado diz que “com melão, de vinho um tostão a cinco reis o almude”.

Não tem sido fácil encontrar um dos “tais melões” da região. Por isso, vou-me contentando com os do Alentejo, que agora dizem ser os mais doces, como se a doçura só por si fosse sinal de qualidade. Há dias fui comprar um. Quando estava debruçado sobre a caixa cheia de melões a tocar e avaliar ora um ora outro, um cliente abeirou-se e disse-me: “Deixe-me escolher-le um. Percebo disto, pois vendi melões durante muitos anos”. Aceitei a amabilidade do “entendido”, que depressa me separou um tido por muito bom. Agradeci e, quando já ia pagar, “deu-me na veneta” e voltei à caixa de onde retirei outro que me pareceu “pesado”. Pois agora que já comi os dois, sem serem nada parecidos com um bom casca de carvalho, posso dizer que a minha escolha saiu melhor, o que me deixa desconfiado sobre os “entendidos” de hoje. Provavelmente, se o amável senhor que me ajudou soubesse, “ficava com um grande melão” …

Talvez por essa dificuldade em escolher um bom melão C. Mermet dizia que “os amigos são como os melões: Para encontrar um bom, você precisa de provar cem” …