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Este mundo de hipocrisia e inveja …

Ora agora que eu tinha tomado a decisão de ir assistir ao primeiro jogo de Portugal contra no Qatar a contar para o Campeonato do Mundo de Futebol, contra o Gana, quando já mandara fazer reserva da viagem de avião, além de me sujeitar a ter de dormir num hotel de Mascate, em Omã, por falta de capacidade hoteleira no Qatar, é que “soube” não ser país recomendável e ninguém de um país “civilizado” como o nosso deve viajar para lá, muito menos para assistir a jogos de futebol em estádios construídos com mão de obra de migrantes, especialmente asiáticos e africanos, a  trabalhar em condições sub-humanas. Como é que só soube isto a tão poucos dias do embarque? Claro que, mal me inteirei do que os “catarianos” fizeram, fui logo a correr à agência de viagens e desisti das reservas que fizera para ver se ia a tempo de não pagar nada da viagem e hotel, caso contrário ia ter de me ver e desejar para reaver o meu rico dinheirinho como já me aconteceu num passado recente. E ainda bem que a imprensa e os nossos políticos estavam bem atentos e descobriram a tempo estas coisas …

Se eu andasse neste mundo a “ver passar os comboios” até me podia ter acontecido algo parecido com isto que escrevi, mas não é o caso. A verdade é que, logo que em 2 de Dezembro de 2012 se soube que a Rússia organizava o Campeonato do Mundo de Futebol em 2018 e o Qatar em 2022, algumas vozes denunciaram a eventualidade de ter havido corrupção para o Qatar ter conseguido algo de impensável, dado ser um pequeno país, sem peso no mundo do futebol e onde os direitos humanos são letra morta. E nessa altura não se viu nenhum movimento sério para contrariar tal decisão e muito menos se falou nem contestou a Rússia que iria organizar a edição de 2018. Ora, que se saiba e sabia já nesse tempo, a Rússia não é nenhum país modelo no que toca a direitos humanos, o que veio a ser comprovado muito recentemente com os crimes cometidos na Ucrânia. Mas, o Qatar e a Rússia não mudaram (aliás, esta mudou para muito pior) e não se viu ninguém com responsabilidades a promover campanha de rejeição à participação tanto num país como no outro, como se isso fosse uma forma de validar o regime ou qualquer política de discriminação.

Já se sabia então que nos tribunais do Qatar o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem ou nem sequer o aceitam. Que nesse país a poligamia é permitida e a flagelação é usada nos castigos de quem consome álcool ou tem relações sexuais ilícitas. O adultério é castigado com chibatadas e as relações homossexuais com a pena de morte. Que os trabalhadores estrangeiros de mão de obra pouco qualificada são muitas vezes explorados e quiçá remetidos à condição de escravatura com espancamentos, retenção de pagamento, confisco de passaporte, cobranças indevidas, restrições à liberdade, ameaças e agressões sexuais além de prisões arbitrárias. E como se isso não lhes bastasse, muitos deles são explorados por engajadores no seu país a quem têm de pagar taxas exorbitantes. E cá entre nós, se pensarmos bem, não ouvimos já falar de algumas coisas parecidas em Portugal?

Claro que, mediante o coro inicial de contestação, o regime do Qatar prometeu fazer mudanças em todas as questões relativas a direitos humanos, para garantir a organização do Mundial de Futebol naquele país do Médio Oriente (que veio a conseguir através de meios pouco ortodoxos e lícitos) e que levariam à demissão de altos dirigentes do mundo do futebol. Mas, o certo é que o evento foi atribuído ao Qatar e não se viu no mundo civilizado nenhuma tentativa de boicote quando tal era possível e justo. Por isso, “quando a noiva está no altar” e nós somos “convidados” de pleno direito e aceitamos, esperando apanhar o “ramo de flores” com que os portugueses sonham, hoje mais do que nunca, não faz sentido que, agora, se levantem “virgens ofendidas” e moralistas de meia-tigela a gritar “aqui d’el rei” e a apontar o dedo, e quando já validaram coisas piores. E que moral temos para falar de “exploração de migrantes” se fechamos os olhos ao que fizemos aos emigrantes de Ourique e outras “paragens” nacionais onde é precisa mão de obra barata? Quantos anos andamos a assobiar para o lado? E até já nos esquecemos que milhares deles continuam por cá, muitos em situação que “valha-nos Deus”! Nem de propósito, hoje foi notícia mais um caso no Alentejo …

O Mundial do Qatar foi decidido em 2010 por uma quadrilha de gente corrupta, afastada (de bolsos cheios) por indecente e má figura, mas tem sido essa a realidade do mundo do futebol. Só os ingénuos creem no Pai Natal, mas mesmo assim esperam receber prendas! Sendo ele jogado no deserto, na areia, faria mais sentido ser futebol de praia e já a contestação não teria o mesmo mediatismo. O maior problema é que, debaixo dos oito estádios existe um enorme barril de petróleo e gás natural que dá para fazer o Campeonato mais caro da história e sobra uma riqueza imensa mesmo depois de umas quantas “prendas” que muitos mais gostariam de ter recebido. Não sei se é hipocrisia ou inveja o que meio mundo político anda a fazer chafurdando na lama, ma sem querer sujar-se.

O Qatar é um país pequeno, sem expressão, mas onde há dinheiro de sobra para querer o Mundial. E tem esse direito de se pôr em “bicos de pé” para ser visto por todo o mundo e a ter as regras e normas de vida que entendem. Perceberam que o futebol é uma boa montra, daí a aposta ter sido muito alta. Daí terem apostado forte nas estruturas, como apostaram na FIFA e nas pessoas que a serviam e decidiram a escolha do organizador, sabendo da sua fragilidade: recetividade à corrupção. E como dinheiro não era problema … 

O certo é que nenhum país impediu a sua seleção de participar, que se saiba nenhum jogador se recusou a estar presente por ser naquele país, os governantes apesar de mandarem uns bitaites, lá vão parar a título de dar força à sua seleção e as poucas manifestações são muito envergonhadas e discretas para não ser posto em causa o direito de jogar ou até assistir, coisa que ninguém quer. Esse ruído deveria ter sido muito forte e atempado sobre a FIFA e os representantes das Federações nacionais, os únicos responsáveis por o Mundial se estar a realizar ali. Porque os governantes do Qatar fizeram o seu papel. E quem não gostar de ir lá, que fique em casa, mas seguramente vai ver a seleção do seu país, ainda que pela televisão.

No entanto, o barulho provocado por milhares de vozes ao gritar golo e os cânticos dum estádio inteiro a incentivar a sua seleção abafarão o “ruído” fora de tempo à volta do país que acolhe o Mundial, calam as promessas de Marcelo em ir falar lá sobre direitos humanos, como nos farão esquecer “misérias” internas que nos deviam envergonhar.

Mas que não fiquem dúvidas: Eu sou dos que invejo e muito todos os cerca de 313.000 cidadãos do Qatar, porque gostaria de usufruir do mesmo privilégio que eles têm. Não, não é o facto de terem o Mundial em 8 estádios espetaculares, nem de poderem ver os jogos ao vivo. Só os invejo por serem dos poucos habitantes deste planeta que não têm de pagar impostos … 

O sucesso de uma sociedade: Educação

Tive de parar o carro perto da porta de entrada duma escola e dei comigo a observar o caos provocado pelo enorme movimento de carros, de pais e mães a recolherem os filhos para o regresso a casa. E pensei no quanto mudamos em relação à minha infância e de como somos agora tão diferentes dos japoneses onde os pais não levam os filhos à escola. São as crianças que começam desde os 6 anos de idade a ir sozinhas ou em grupo, quando muito acompanhadas por alunos mais adiantados. É assim que aprendem a ser responsáveis. Quando era criança também era a pé, sozinho ou na companhia dum vizinho que ia para a escola, em liberdade e com alguma responsabilidade.  

O sistema de educação japonês é reconhecido mundialmente e o povo é famoso pela sua inteligência, saúde, educação e bem-estar. Mas o que é que torna essa nação tão diferente do resto do mundo? Uma das razões está no sistema de ensino, que é diferente e interessante. Defendem eles que as crianças devem aprender boas maneiras antes de conhecimentos. Assim, a escola nos 3 primeiros anos não as julga pelos seus conhecimentos, mas procura incutir-lhes as boas maneiras e desenvolver-lhes o caráter, sendo ensinadas a respeitar as outras pessoas e ser gentis com os animais e a natureza. Aprendem ainda o que é a generosidade, coragem, justiça, compaixão, autocontrole e empatia. Para eles, de nada serve o conhecimento se um ser humano não cultiva a generosidade e os valores morais antes de tudo mais. Não me parece que estas sejam as preocupações principais do nosso ensino básico nos 3 primeiros anos, nem sequer nos anos seguintes. Mas que fazem muita falta às nossas crianças e futuros adultos, não restam dúvidas! E só não vemos se não quisermos …

No Japão, antes de começar o ano letivo cada estudante recebe um calendário escolar com todas as atividades e se algum professor faltar, a aula não será suspensa e não haverá “furo” pois qualquer aluno está capacitado para a dar graças ao facto de ter o programa consigo. Em quase todas as escolas não existe equipa de limpeza. No Japão e noutros países asiáticos. Desde muito pequenos, eles são ensinados a trabalhar em equipa e a ajudar-se mutuamente. É por isso que, tanto professores como alunos, têm a responsabilidade de limpar a escola. Sempre! E é assim que o tempo e esforço gastos nas tarefas de limpeza faz com que as crianças respeitem o seu trabalho e o dos outros. Ponho-me a imaginar o que diriam ou até o que fariam alguns “papás” cá do burgo ao saber que os seus adorados filhinhos faziam a limpeza da escola! Coitados dos professores. Se mesmo sem isso já “levam no focinho” de alguns pais imbecis e destravados …

A educação começa em casa. Os pais ensinam seus filhos e dão ênfase ao respeito pelas pessoas da terceira idade. Fazem-no principalmente para honrar a sua experiência e sua sabedoria. Nesta cultura, o valor familiar é fundamental. Eles valorizam a família sobre todas as coisas. O amor, a confiança e o carinho, devem permanecer entre as diversas gerações, desde os pais aos bisavós. Além dos assuntos tradicionais, os estudantes japoneses ainda aprendem caligrafia japonesa e poesia. As duas classes ensinam as crianças a respeitar a sua própria cultura e as tradições seculares. Pelo contrário, cá entre nós, a “malta” acha que as tradições são “coisas de velhos” e não interessam a ninguém!

Quase todas as escolas japonesas exigem que os seus alunos usem uniforme, com o objetivo de eliminar barreiras sociais entre eles e promover um sentido de comunidade entre estudantes. E é curiosa a taxa de presença escolar: 99,9%!!! É que os estudantes japoneses não costumam faltar às aulas. Quem mais se pode orgulhar disso? Já para não falar na quase nula taxa de analfabetismo …

Quanto aos professores, são as pessoas mais respeitadas e admiradas da sociedade e por isso chamados de “senseis” (mestres), pois além de terem a responsabilidade de passar seus conhecimentos às novas gerações, têm ainda a difícil tarefa de ajudar a formar o caráter dos jovens. O governo assume que são de importância crucial e por isso capacita-os regularmente e paga-lhes excelentes salários. Diz-se até que são os únicos que não têm de fazer vénia ao imperador. Ora, se virmos bem, cá em Portugal os professores estão “muito melhor” que os seus congéneres japoneses. Ó se estão! O estado pede-lhes sempre muito, mas dá-lhes sempre pouco e assim fica equilibrado. Os pais dos alunos de vez em quando presenteiam-nos com alguns “mimos” com que eles não contam, mas que deviam estar à espera. Os alunos, sempre que chamados à atenção, prometem-lhes a “atenção” dos “papás”! Quanto à sociedade em geral, preocupa-se mais quando falta o picheleiro ou o eletricista (com todo o respeito que eles merecem)!

Por tudo isto podemos perceber porque é que o Japão, apesar de não ser um país com a dimensão da Rússia ou do Brasil, apesar de ter no seu território mais de 200 vulcões com 100 deles ativos, apesar de ter saído da Segunda Guerra Mundial derrotado e devastado com a sua economia no fundo, tem hoje um PIB (Produto Interno Bruto) que é 20 vezes maior que o nosso e que faz dele a terceira maior economia mundial, somente atrás dos Estados Unidos e da China. E tudo se deve à grande aposta que este país fez na educação, a causa principal do seu sucesso e do milagre económico.   

A grande lição que o Japão nos dá é de que devemos começar sempre pela educação. É a base fundamental de qualquer sociedade e um dos seus grandes pilares. Assim o entenderam e puseram em prática os japoneses com o sucesso que lhes é reconhecido. Talvez devêssemos meditar sobre os seus méritos e, quiçá, aprender com eles, a começar por essa coisa de se ensinar “boas maneiras” às nossas crianças além de valores morais antes mesmo das ciências e da matemática, para no futuro termos uma sociedade de “boas pessoas”, cidadãos educados, responsáveis e solidários, se é que achamos que isso pode interessar ao nosso futuro comum …

A lei do “menor esforço” e a fatura que aí vem …

Os investigadores justificam a existência da “lei do menor esforço” através das orientações que o nosso cérebro dá ao organismo para economizar energia, isto é, atividade física. E na realidade, a vida dos seres humanos foi sendo feita no sentido de reduzir o esforço físico em todos os trabalhos fazendo-se substituir pelas máquinas. Assisti a esse “filme” desde a minha infância, num tempo em que a maioria das profissões exigia das pessoas muito esforço, sacrifício e sofrimento. 

Há setenta anos atrás não existiam máquinas e todo o trabalho era manual. Quando muito, tendo o auxílio de algum animal, como o boi e o cavalo. O braço e a sua força eram o motor, se bem que todo o corpo era esforçado, em muitos casos ao máximo. Para se ter uma noção do que isso significava basta dizer que o adubo era embalado em sacos de … 100 kgs, transportado por via-férrea em vagões carregados de sacos até ao teto e descarregados do vagão para o armazém, às vezes a dezenas de metros de distância, às costas de meia dúzia de homens, carregando cada um o seu saco, um atrás do outro até o vagão ficar vazio. E havia épocas em que era saco a seguir a saco e vagão a seguir a vagão. E o que acontecia com o adubo acontecia com muitos outros produtos embalados em sacos de 100 quilos …

Os pedreiros construíam as casas com grandes pedras de granito a pesar centenas de quilos cada, fazendo-as subir aos trambolhões sobre vigas de madeira à força de braço até ao seu lugar em cima da parede. Só quando esta chegava à altura dum homem se utilizava a engenhoca rudimentar feita com um sarilho e dois eucaliptos em V invertido com uma roldana no vértice para levar as pedras ao cimo da parede em construção.

Ora, o trabalho era duro e sujo, tanto para o carregador, como para o pedreiro, lavrador, carpinteiro, ferreiro ou jornaleiro. Ainda tenho viva a imagem do senhor Moura, jornaleiro de profissão, a “saibrar” uma mata. Cavou o terreno todo com um metro de profundidade e, enquanto cavava, ia enterrando mato para o aligeirar e enriquecer de matéria orgânica. Eram vidas suadas, esforçadas, sofridas, apesar de mal alimentadas.

Mas o engenho humano foi capaz de criar todo o tipo de mecanismos para o aliviar das tarefas pesadas, pelo que hoje já (quase) ninguém carrega grandes pesos, a não ser no ginásio. O senhor Ricardo chegou no furgão, estacionou e tirou a botija de oxigénio que colocou num carrinho de transporte apropriado. Com toda a facilidade levou-a até casa e só demorou o necessário para trocar as botijas, regressando com a vazia também colocada no carrinho. Quando lhe perguntei se era fácil, respondeu: “Hoje isto é um luxo. Mas já trabalho há muitos anos na empresa e no princípio às vezes era muito duro. Tinha um cliente que vivia no 12º. andar, mas os elevadores não funcionavam porque lhe roubaram os cabos. Eu tinha de carregar a botija às costas pelas escadas, para cima e para baixo. Era duro”. Já o António saiu do camião, agarrou num comando e fez baixar uma plataforma traseira para onde se passou voltando a fazê-la subir ao nível da carga. E aí, com um porta-paletes manual, passou duas cargas para a plataforma que fez baixar com o comando até ao chão sem qualquer esforço. 

Apesar das décadas de evolução em que o espírito inventivo do ser humano e a necessidade e vontade de fazer mais em menos tempo fizeram com que surgissem as máquinas e acessórios mais diversos para ajudar o homem nas suas tarefas, quando não a substituí-lo, de já quase nada se carregar às costas, mas em mecanismos diversos e de uma máquina rasgar mais metros de estrada numa hora que um batalhão de homens escavava num dia, de se reduzir o peso de quase todas as embalagens (os sacos de adubo passaram de 100 quilos para 50 e depois para 20, havendo já embalagens de 10, de 5 e 1 quilo), a verdade é que algumas profissões continuam a ser de trabalho braçal e sujo, um estigma que afasta os jovens de hoje. É verdade que essas ninguém quer. Pelo facto de se ter o 12º ano, que mais não é que a antiga quarta classe, e sem experiência profissional, já se exige “um emprego limpinho”, algo como serviços administrativos, trabalho de receção, fiel de armazém. Enfim, uma rejeição liminar de empregos que exijam um pouco mais de esforço físico e não seja necessário ter de “pôr as mãos na massa”. Daí ser um drama e uma impossibilidade, conseguir um jovem para trabalhar na construção civil, seja pedreiro, trolha, serralheiro, carpinteiro ou outra do gênero. Um empresário da construção dizia que já não tem um “moço de massa” há mais de vinte anos e o dono de uma serralharia, que já lá vão oito anos sem que lhe entre porta dentro alguém que queira ser aprendiz.

É uma atividade onde a falta de mão de obra só poderá ser resolvida com a entrada de emigrantes e onde os valores salariais dum artista podem ultrapassar os de muitos licenciados. E ao dizer isto recordo a conversa que há mais de trinta anos tive com um grupo de franceses. Já nessa altura em França ganhava mais um operário da construção do que uma grande parte das pessoas licenciadas pois os franceses só queriam os “empregos limpinhos”, rejeitando as profissões “braçais” tidas por “menores”. Essas ficavam para os emigrantes. E muitos anos volvidos, aqui estamos nós na mesma situação. 

Na Costa Rica, onde a riqueza produzida por habitante é metade da nossa, esse tipo de empregos é sempre ocupado por emigrantes, no caso principalmente oriundos da Nicarágua, porque os cidadãos da Costa Rica se recusam a desempenhar tais funções. E o mesmo se passa em muitos outros países. Isto traz-me à memória uma frase de um cínico: “Nunca faças o trabalho que podes mandar alguém fazer por ti”. É assim que hoje nos vemos a braços com o problema de falta de mão de obra nessas profissões, alegadamente porque os jovens as rejeitam (muitos nem sequer querem ouvir falar nessa “coisa” a que chamam “trabalhar” …), pelo estigma e porque não, já para não falar da “sociedade de dependentes do estado” que os (des)governos vão aumentando constantemente e que não tarda muito a ser maior do que a daqueles que criam riqueza … e trabalham.

Shoichiro Toyota, que durante anos presidiu à Toyota, justificava o declínio do ocidente da seguinte forma: “Uma sociedade que mede o seu bem-estar por aquilo que não faz, pelo tempo de lazer que tem, está condenada ao fracasso”. Será só filosofia oriental ou nós vamos mesmo ter de pagar essa fatura pesada um dia destes?  

Chorar quem parte ou celebrar a vida

Num cemitério da Lituânia um homem para diante de uma sepultura e chora convulsivamente durante alguns instantes. Depois recompõe-se, vai um pouco mais adiante e detém-se frente a outra sepultura e entoa cânticos em honra da pessoa ali enterrada. E, passando de uma a outra, vai visitando mais algumas até se retirar na companhia da mulher que o espera e conforta. É o “visitador de campas” contratado por descendentes dos falecidos e pago para chorar ou cantar certo número de vezes por ano, conforme os seus desejos. Os mortos não são da sua família e muitos deles nem os conheceu. Diante daqueles em que tem de chorar, torna-se mais difícil pois tem de se comover, pensando em momentos tristes que o emocionem para que o choro e as lágrimas corram naturalmente. Já o faz há muitos anos, sendo um “trabalho” difícil para ele que é sensível e emotivo, embora tenha na mulher um apoio para superar a sua tristeza. O curioso da história é que alguns “contratantes” querem que chore diante da campa, mas outros desejam que cante. Quem estará certo? Diante de um túmulo devemos chorar ou cantar? Sem querer julgar tal costume cultural de chorar ou cantar, muito menos por interposta pessoa, penso que ambos têm razão. O choro ou a cantoria, a tristeza ou a alegria, são duas faces de uma mesma moeda: homenagear o morto.                                                                                                    O choro é o mais tradicional direito e expressão de luto. Sai-nos do interior quando sentido e faz parte dos rituais de separação e entrega dos entes queridos que partem. Mas a cantar também se chora, isto é, celebra a vida de quem parte como aquilo que foi mais importante e deve ser celebrado. Essas diferenças na despedida ao defunto são tão antagónicas de cultura para cultura, de país para país e até de região para região. Mas o que importa neste processo, é honrar a memória de quem nos deixa e consolar quem fica em sofrimento, cedendo-lhes o ombro para chorarem à vontade.                                                               No Brasil os funerais acontecem em 48 horas no máximo, reflexo de como o brasileiro encara a morte e na tentativa prática de encerrar o sofrimento o mais depressa possível. No México, o Dia dos Finados é uma das festas mais populares e alegres do mundo. É comemorado com muito entusiasmo, amor, música, comida e fantasias da tradição asteca e católica. O funeral na Rússia é uma manifestação alegre, com roupas coloridas, para honrar quem nos deixou e consolar quem fica. Na Irlanda, o velório ainda é melhor do que um casamento. A família convida os amigos para o pub (bar) preferido do defunto, onde existe muita comida, cerveja e uísque, muitas histórias alegres, risos, alegria e música ao vivo, para festejar e rever as boas memórias do falecido. Nos enterros tradicionais em Nova Orleães, nos Estados Unidos, uma banda acompanha o cortejo fúnebre e, da casa do morto ao cemitério, toca música jazz, triste e dolorosa, com a multidão de rosto sério e ar carregado. Porém, mal o caixão esteja debaixo de terra, a banda passa a tocar música animada, a festa inicia-se e não tem hora para acabar, com todo o mundo a dançar, a comer e beber. O funeral começa com as pessoas a chorar, manifestando tristeza por quem morre e termina com risadas e grande alegria, canto, bebida e festa, em celebração e homenagem à vida do defunto na sua passagem por este mundo.                                                                                                         Em Portugal a tradição ainda é o que era e choramos, embora sejam bem conhecidas as frases: “o choro é uma expressão de fraqueza”, “o choro é a arma dos fracos” e, numa variante um tanto machista, dizer: “homem que é homem não chora”. Porque o choro, apesar de ser um fenômeno físico-biológico em que o corpo, ou melhor ainda, os olhos, derramam lágrimas, também é a forma de exteriorizar as emoções, os estados de alma e sentimentos. É um facto que o ser humano chora.                                      Entre nós já não existem as carpideiras, mulheres vestidas de negro, completamente, e estranhas ao morto, contratadas para chorar nos velórios e enterros alheios, com a intenção de aumentar a emoção no funeral e a popularidade desse defunto, embora ainda continuem a existir nalgumas zonas do Brasil, Itália, Grécia e até na China. Ainda assisti a esse ritual de choro histérico e encomendado que me ficou gravado na memória pelo choque e medo que apanhei porque era eu uma criança muito pequena quando o ouvi pela primeira vez. Mas, e apesar disso, tanto no velório como no funeral, ainda é no choro que encontramos a melhor forma de comunicar o sentimento de perda e dor, embora num ambiente menos pesado que outrora. O chorar como expressão do luto, como forma de trabalhar a perda dos entes queridos e aliviar a dor, faz parte do ritual das Exéquias e, mais ainda, é um direito. O choro é catártico, tem uma força curativa, é parte dos ritos de separação e de entrega dos nossos entes queridos que partem. Precisamos disso como parte do luto de cada um. Porém, para quem prefere formas alternativas de manifestar nas despedidas, as agências funerárias mais credenciadas já dispõem de um serviço de música tocada e cantada ao vivo, com temas que vão dos clássicos, ao gospel e litúrgicos, adequados à cerimónia e ao gosto de cada um.                                             Durante o confinamento por causa da pandemia, alguém desabafava: “Chorei muitas vezes na vida. Chorei quando levei algumas palmadas da minha mãe, mas o choro mais profundo e doloroso foi quando ela morreu sem ter a possibilidade de me despedir dela e estar presente no seu enterro. Embora tenha chorado muitas vezes e saiba chorar, já não sei como o fazer, porque a morte passou não apenas a ser vista, mas a incomodar, a apavorar, sem o direito de chorarmos os nossos mortos e cauterizar as feridas através dos ritos porque, o sofrimento e dor, podem ser uma ocasião que aproxima o ser humano de Deus”.                                                                                                                       A morte faz parte da vida, mas não fomos educados para isso. A nossa educação tem essa lacuna e a morte é-nos estranha até à hora em que chega. E então, irrompe a dor e as lágrimas porque é assim na nossa tradição de séculos. E não me parece que tão cedo adotemos o canto, a comida, a bebida e até a alegria para celebrar quem morre, pois lá bem no fundo estamos formatados no modo triste e choroso e não há volta a dar. Mas, como “a vida é feita de mudança” …