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Cozidos em lume brando. E felizes…

Há muitos anos atrás fui visitar uns tios que não via há algum tempo, absorvido no ritmo do trabalho e dos afazeres do dia a dia. O meu tio era muito formal comigo, mas gostava de falar e por isso tivemos de pôr a conversa em dia durante mais de uma hora, recostados em dois cadeirões na varanda da casa. Já a meio da tarde e com as novidades em dia, pediu à minha tia para arranjar um lanche, confidenciando-me em voz baixa, mas com orgulho: “vai provar uma pinga especial que eu cá tenho. É uma maravilha”.

Esperei para ver. Quando ela colocou os petiscos na mesa sobre uma toalha de linho branco, ataquei a broa e as rodelas de salpicão muito finas, mesmo a meu gosto. Depois de ter feito uma “boa cama” para a pinga prometida, ele segurou na cântara de barro, encheu-me o copo e disse com entusiasmo: “prove e diga-me lá se é ou não é bom”. Não sendo propriamente considerado provador, levei o copo à boca e bebi um trago, bochechando para apreciar melhor as características do vinho. Então, fui apanhado por um intenso choque gustativo: O raio do vinho era praticamente vinagre. Desprevenido, de repente vi-me num dilema diante do seu olhar expectante: entre o ter de dizer uma mentira piedosa e preservar-lhe o sorriso confiante naquele bom vinho ou contar-lhe a verdade nua e crua e matar-lhe a candura da ignorância. Claro que não tinha outra saída senão mentir-lhe. Era a chamada “mentira piedosa”, que não trazia nenhum mal ao mundo, mas que era muito importante para ele, até porque “a ignorância é feliz”.

Afinal, o que se tinha passado para alguém como ele beber um vinho avinagrado e considerá-lo excelente? A minha conclusão em função do que soube depois, é que se tratou de um fenómeno bem simples: os meus tios viviam sozinhos e só eram visitados ao fim de semana pelos filhos que residam fora. Ora, apesar disso, tinham aberto uma pipa de mais de quinhentos litros de vinho bom, mas era vinho a mais para duas pessoas com a sua idade consumirem em espaço de tempo razoável sem que se alterasse. Se o vinho era bom quando a pipa foi aberta – e admito que sim – com a entrada de ar na vasilha por força da saída do vinho criaram-se condições para o desenvolvimento das bactérias responsáveis pela acidificação, o que se veio a verificar, por aquele vinho ter sido consumido ao longo de muitos meses, tempo mais que suficiente para que a transformação do vinho em vinagre se tivesse verificado. Então como é que não se aperceberam que o vinho estava avinagrado? Por uma razão simples: começaram por beber um vinho bom ou até muito bom, durante algumas semanas. No entanto, com as condições de oxigenação ideais para se dar a acidificação, esta foi acontecendo muito lentamente e, também lentamente, foram-se adaptando ao novo paladar do vinho pois as alterações diárias eram mínimas e não lhes permitia aperceberem-se da diferença. Como não contrapunham com outra amostra, o seu gosto ia sendo “modelado” pelas mudanças lentas do vinho e mantiveram assim a classificação de “bom” para um vinho que de bom já nada tinha. É como quando temos um filho e não nos apercebemos de que ele cresce diariamente, porque as diferenças são sempre pequenas de um dia para o outro. Só quando vem alguém de fora que já não o vê há algum tempo, é que se apercebe do “salto” que ele deu e diz com grande espanto: “Como o rapaz cresceu desde a última vez que o vi”!!!

Lembrei-me deste acontecimento com o meu tio quando há pouco li uma breve história em que Olivier Clerc, através duma metáfora, põe em evidência as graves consequências de não termos consciência das mudanças que afetam a nossa saúde, as nossas relações, a evolução social e até o ambiente. E, como ela é uma pequena grande lição de vida que cada um de nós pode e deve guardar para si e dela tirar os proveitos mais convenientes, o caso do vinho só vem confirmar que podem ser efetuadas grandes mudanças em muitos aspetos da vida de cada um ou de todos nós se não nos apercebermos das pequenas alterações que forem sendo feitas ou se não lhe dermos importância. Porque muitas pequenas mudanças podem facilmente transformar-se numa mudança profunda. Mas vamos à história de Olivier Clerc:

“Imagine uma panela de água fria na qual nada tranquilamente uma pequena rã. É acesa uma chama debaixo da panela e a água começa a aquecer muito lentamente. E, como a água aquece devagar, a rã não se apercebe de nada. Pouco a pouco fica morna e a rã, acha-a muito agradável e continua a nadar. A temperatura continua a subir …

Às tantas, a água está mais quente do que a rã gosta. Sente-se algo cansada, mas não fica com medo. Até que a água fica bem quente e ela começa a achar desagradável. No entanto, já está muito debilitada e então suporta e nada faz. A temperatura continua a subir sem que a rã tenha forças para sair e acaba por ser cozida e morre. Se a mesma rã tivesse sido lançada diretamente na água a 50 graus, com um golpe de pernas teria saltado de imediato para fora da panela. Isto mostra que, quando alguma mudança acontece lentamente, escapa à nossa consciência e perceção e não desperta, em regra, qualquer reação, oposição ou tipo de revolta.

Se olharmos para o que tem acontecido na sociedade há décadas, veremos que temos sofrido uma mudança lenta no modo de viver e que nos estamos a habituar. Uma série de coisas que há 20, 30, 40 ou 50 anos nos teriam horrorizado, foram lentamente sendo tomadas como normais, deixando a maior parte das pessoas indiferentes. Em nome do progresso, da ciência, do lucro, vão sendo efetuados ataques contínuos às liberdades individuais, à natureza, à beleza e alegria de viver, lenta e repetidamente, com a cumplicidade das vítimas, desavisadas e, agora, já incapazes de se defender. As previsões para o futuro, em vez de suscitarem reações e medidas preventivas, preparam as pessoas para, psicologicamente, aceitar algumas condições decadentes e até dramáticas. Quando falei destas coisas a primeira vez, era para amanhã. Agora, é para hoje!!! Consciente ou cozido, precisa escolher! Então, se você não está como a rã já meio cozido, dê um saudável golpe de pernas antes que seja tarde demais” …

Ao recordar o orgulho que o meu tio tinha no seu “vinho”, que já não passava de vinagre em que fora transformado lentamente e entender a mensagem de Olivier Clerc, tomo mais consciência de que “estamos a ser cozidos em lume brando”, adormecidos e tornados coniventes das múltiplas transformações profundas que afetam a sociedade de que fazemos parte e o meio ambiente desta nossa casa comum, que podem pôr em causa o futuro das próximas gerações que são nossa responsabilidade. Conseguiremos reagir a tempo de manter o planeta habitável e evitar a descaracterização da sociedade efetuada muito sorrateiramente, em nome do radicalismo e de pretensas liberdades?

Um eterno presente de Natal …

Já foi há muito tempo. Tinha eu oito ou nove anos e fui com a família à Missa do Galo, onde já se podia “beijar o Menino Jesus” que, nesse tempo, era a Personagem central do Presépio e do Natal (mais tarde viria a ser substituído pelo homem das barbas brancas com fatiota vermelha a que chamam pai natal, pela árvore de natal e um montão de produtos comerciais impingidos pelas indústrias que capturaram a Festa). No órgão, estava um padre relativamente novo que eu nunca tinha visto, que foi tocando ao longo de quase toda a celebração ora a acompanhar o coro local, ora a solo como música de fundo. 

No fim da Missa e quando o celebrante iniciou a cerimónia para “dar o Menino Jesus a beijar”, daquele velho órgão saiu uma música sublime, tocada com delicadeza e elevação num controle perfeito na altura e duração do som, que me deixou maravilhado. Nunca ouvira aquele hino nem vira alguém tocar tão bem. Dei comigo concentrado naquela música que o organista conseguia tirar do velho órgão da igreja. Emocionado pela beleza dos acordes, senti os olhos húmidos. E continua a ser uma bênção e um privilégio ouvi-la, especialmente nesta época do ano. Por alguma razão a Unesco não ficou indiferente e considerou-a em 2011, e bem, Património Cultural Imaterial da Humanidade. 

O nome original dessa linda canção de Natal é “Stille Nacht” e já foi traduzida e cantada em numerosos idiomas. Na versão portuguesa é conhecida por “Noite Feliz”, se bem que na tradução do original devia ser “Noite Silenciosa”.

Vale a pena saber quem foram os seus autores e a história da pressa na sua criação para resolver um problema. Ainda bem que aconteceu:

Oberndorf é uma pequena aldeia austríaca à beira do rio Salzbach, na região de Salzburgo. Naquela véspera de Natal do ano 1818, o padre Joseph Mohr estava desesperado porque o órgão da igreja avariara, ao que parece com os foles roídos pelos ratos. Sem o órgão, o habitual concerto de Natal seria um fiasco. E logo no primeiro Natal naquela paróquia! No limite, pediu orientação a Deus. Então lembrou-se que, dois anos antes escreveu um poema simples, também na véspera de Natal, após uma caminhada pelos bosques nas montanhas da região. Encontrou o manuscrito do poema numa gaveta da sacristia e correu para casa de um professor e músico humilde chamado Franz Xaver Gruber a quem perguntou se podia musicar a sua letra para que toda a gente a pudesse cantar na Missa do Galo desse dia. Depois de ler o poema, Gruber disse que sim pois a letra era simples e permitia uma melodia fácil. Mas teria de ser tocada só com viola porque não havia tempo para fazer algo mais elaborado. Ele respondeu que não era um problema. Pelo contrário, até vinha a calhar já que o órgão estava avariado.

O padre Mohr agradeceu e voltou à igreja para organizar os detalhes da Missa do Galo, enquanto Gruber se entregou à tarefa de fazer em tão poucas horas a música para o seu amigo. O músico chegou cedo à igreja com a viola e reuniu o pessoal do coro para lhes ensinar o hino improvisado, já que a hora da Missa se aproximava. E naquela noite de Natal de 1818, os participantes nessa Missa do Galo da igreja de S. Nicolau de Oberndorf, em Salzburgo, cantaram maravilhados o hino singelo e tocante escrito por Mohr e musicado por Gruber, que viria a tornar-se na canção natalícia mais conhecida no mundo. 

E como se espalhou? Semanas depois, o técnico que foi consertar o órgão ouviu a história e pediu para tocar essa música. Impressionado com a riqueza melódica da composição, decidiu divulgá-la por todas as igrejas por onde passava, até que o caso chegou aos ouvidos do rei, Friedrich Wilhelm IV da Prússia, em 1838 e difundida de forma ativa. Depois, o Cristianismo levaria a música para todo o mundo através dos missionários, tornando-a global.  

O que começou como um momento de pânico e promessa dum fiasco, terminou com um eterno presente de Natal para toda a humanidade em forma de música.

A canção a que o padre austríaco Joseph Mohr deu letra, inspirada no humilde Natal de Jesus em Belém e o seu amigo professor e organista Franz Xaver Gruber a linda música, emergida das marcas das guerras napoleónicas e em tempo de pobreza, incêndios, inundações, falta de segurança e fome, tornou-se popular e um dos temas musicais mais conhecidos. A tal ponto, que conseguiu parar por uma noite a Grande Guerra. O poema foi criado em tempos muito difíceis para Salzburgo. Daí as palavras deste cântico expressarem uma ânsia de redenção e paz. A letra original do padre Joseph Mohr, em alemão, fala de Jesus que, “como irmão, abraça carinhosamente os povos do mundo”. E, passados 200 anos, a classe de Franz Gruber tem o tamanho de uma civilização.

A divulgação da canção pelo mundo em muitos idiomas resultou em traduções nem sempre fieis ao texto original, como é o caso da versão portuguesa. No entanto, geralmente mantiveram o sentido principal da canção: O Natal como festa da redenção e sinal de paz. Mas, nem sempre isso foi respeitado, como aconteceu com a versão nazi deste cântico. O regime nazi tinha um problema óbvio com o Natal: Jesus era judeu. Por isso, a sua equipa tentou remover todo o contexto religioso da celebração sem conter referências a Deus, Cristo ou fé e torná-la um louvor a Hitler.

Na versão do americano Bing Crosby, que aparece na terceira posição entre os singles mais vendidos em todo o mundo com cerca de 30 milhões de cópias comercializadas em todo o mundo ou na naquela versão simples que ouvi pela primeira vez na minha infância, “Noite Feliz” é um cântico celestial que nos toca os sentidos, conforta a alma e faz “regressar a casa” na noite de Natal …

Vai um cigarro? Não, obrigado…

A imagem mais remota que eu tenho de alguém a fumar é a do senhor Moura, jornaleiro de profissão. Já lá vão “uns anitos” … Encostado à enxada, tirava a caixa de mortalhas do bolso e um pequeno saco com tabaco a granel. Pegava numa mortalha, dobrava-a ligeiramente para lhe pôr dois dedos de tabaco e enrolava-a com as mãos. Terminava levando à boca a aba da mortalha, que molhava com a língua para a colar à parte de dentro e rematar o cigarro. Para o acender, usava um fósforo da caixa que trazia no bolso das calças. E retomava o trabalho com o cigarro pendurado no canto da boca. Cedo me apercebi que os cigarros feitos na hora, como os do senhor Moura, eram comuns nos pobres. Os cigarros “Fortes” já eram mais caros. Muito parecidos com os que o senhor Moura fazia, já vinham prontos, amarrados com uma tira de papel. Mais caros ainda eram os “Provisórios” e o “Português Suave”.

Já agora, posso dizer que tive a sorte de “ter passado entre a chuva sem me ter molhado”. Ou seja, nunca peguei sequer num cigarro para fumar, apesar de ter sofrido uma grande pressão própria dos tempos de juventude em que a malta apertava connosco para fumar, usando expressões fortes para nos convencer como “se não fumares não és homem” ou “fumar é para homens de barba rija”. E ainda hoje não sei se o nunca ter fumado se deve ao facto de não ter havido fumadores em casa dos meus pais ou à imagem que me ficou de certas pessoas agarradas ao cigarro, como se disso dependesse a sua vida. Bem cedo me ficou um sentimento de desconforto ao ver pessoas conhecidas a fumar com sofreguidão, escravos desse fumo na queima de folhas de tabaco enroladas, a arder lentamente.

Em criança não conheci nenhuma mulher que fumasse, pois era vício (quase) exclusivo de homens. Não “ficava bem uma mulher de cigarro na boca”, nem se imaginava um pai a autorizar. Se já era difícil para um rapaz, muito pior era com as raparigas, senão mesmo impossível. Só os homens podiam ficar horas seguidas a engolir fumo …

Já adulto, dizia-me um amigo que eu nunca conheceria o prazer que o cigarro dava a um fumador. E eu contrapunha sempre com o mesmo slogan: “Não conheço, nem quero conhecer”. Ele insistia, enumerando algumas (supostas) vantagens dos “inaladores de fumo ambulantes” como lhes chamava. Dizia então que “os fumadores sabem que vão morrer, enquanto os outros andam enganados”; “não preciso que me façam radiografias aos pulmões, pois sei o resultado mesmo antes de as fazer”; “os fumadores divertem as crianças a fazer anéis de fumo e têm o cigarro por companhia quando meditam”; “fumar é uma boa razão para ter cancro, mas quem não fuma não tem razão nenhuma”; “o cigarro aceso na mão dá estilo, uma aparência sexy e faz-nos mais homens”. Ora, terá sido precisamente o cigarro que lhe antecipou os dias, confirmando então uma outra suposta vantagem: “Os fumadores vivem menos, mas só deitam fora os últimos anos, ou seja, os piores”.

Para um fumador, pior do que não fumar, é não ter tabaco no bolso. É ter a sensação que, quando lhe vier a necessidade, pode faltar-lhe o produto.  É como sentir-se despido no meio do nada. Por isso, tem de encontrar rapidamente um local onde possa abastecer-se, ainda que não seja para fumar logo. Só o facto de sentir o tabaco no bolso já lhe dá tranquilidade. 

Nos anos 80 a Tabaqueira fez uma longa greve, que provocou falta de tabaco no mercado nacional. A partir de certa altura, era muito difícil encontrar cigarros à venda. Para quem se dispusesse a observar um qualquer centro urbano, rapidamente identificava o “corrupio” de pessoas a caminhar apressadas e cabeça baixa, de um café para outro, entrando e saindo sem se demorar, à procura de cigarros. Já nem se davam ao cuidado de pedir a marca que fumavam, pois a resposta era sempre a mesma. De tal forma era um drama que um dia o Lourenço, motorista de camião, num desabafo sentido, disse-me: “Sabe, nem imagina quanto sofro com a falta de tabaco. Nem é só pelos cigarros. Como ando por lá, sempre que vejo um café paro para ver se arranjo tabaco. Mas como fica mal entrar e pedir logo um maço, tomo uma bica e só depois pergunto se têm tabaco, para ouvir quase sempre: “Não temos”. E o que mais me custa é que tenho de tomar café atrás de café e … não gosto de café”. Nesse período, já um colega e amigo me confessava viver em pânico, com medo de ficar sem cigarros. “Só a possibilidade de não conseguir abastecer-me para o dia seguinte gera-me uma ansiedade terrível” … 

Não sendo objetivo desta crónica fazer qualquer campanha para que os fumadores deixem de consumir tabaco pelo respeito que tenho pelo livre arbítrio e o direito de cada um poder fazer as suas escolhas, boas ou más, não posso deixar de dizer que, não sendo fumador, fui muitas vezes incomodado no “meu canto” por aquela pequena coluna de fumo irritante que vinha dum cigarro qualquer, direitinha ao meu nariz, como de propósito, nalguns casos a vários metros de distância. No estádio, três filas à frente sentava-se um homem que fumava com muita frequência durante o jogo. E não é que aquele fiozinho de fumo saído do seu cigarro acertava sempre com o meu nariz!!! E não posso deixar de lembrar o ocorrido com o Vasco Lemos. Depois de fazer um exame aos pulmões, o médico ao olhar os resultados disse-lhe: “Você deve ser um grande fumador”!!! E ele, surpreendido, respondeu-lhe: “Senhor doutor, nunca na minha vida fumei qualquer cigarro”. Então o médico retorquiu: “Nesse caso, passa muito tempo junto de alguém que fuma, pois os seus pulmões parecem de um fumador crónico”. Aí, o médico acertou. A mulher dele fumava muito e até na mesinha de cabeceira tinha um maço de cigarros para fumar durante a noite, na cama … 

Os fumadores são uma legião com cerca de dois milhões de pessoas em Portugal, um campo que os governantes sempre exploraram com impostos obscenos sobre o tabaco, alegadamente para aliviar o custo que eles são para o Serviço Nacional de Saúde, já para não falar na poluição que provocam através das beatas e isqueiros descartados, além do fumo que se entranha nos espaços e roupas, mesmo dos não fumadores. Com tão grande “população votante”, não sei como ainda ninguém se lembrou de formar o PTA (Partido do Tabaco e Afins), capaz de vir a eleger um grupo parlamentar semelhante ao PAN para, em tempo de geringonças, exigirem redução de impostos, liberdade de fumar e incomodar os outros sem serem confinados. 

Recordo quando, em época de dificuldades, se ouvia com frequência um convite expresso na pergunta “vai um cigarro?”, efetuado por um qualquer fumador. Fui convidado muitas vezes e, apesar de “não ser fumador”, não deixava de responder com o agradecimento que esse gesto, de partilha e solidariedade, merecia: “Não, obrigado”.     

Vizinhos e o perigo de ficar em casa

Quando comprei o terreno para construir a casa onde moro, estava convencido que seria o único proprietário e residente deste pedaço de terra, que já cá estava quando nasci e por cá vai ficar quando eu “for de vela”. Ideia estúpida de quem não sabia o que dizia. Depressa viria a descobrir que, antes de aqui me instalar, já ele era ocupado por um grande grupo de residentes, na sequência do que já haviam feito os seus antepassados ao longo de muitos anos, talvez séculos, sem registo predial, escritura pública ou qualquer documento legal à luz da lei dos homens. Os primeiros que vi foram os pássaros, embora pensasse que estavam de passagem, e a seguir as cobras, que julguei desalojar facilmente ao saibrar o solo, construir casa e anexos, além de semear o relvado. Novo engano porque, nem uns nem outros me atribuíram grande importância, tendo a passarada, especialmente os melros e pardais, continuado a mostrar-se usufrutuários do espaço à descarada, a fazer ninhos e vir esgravatar no terreno à procura das minhocas e insetos, o que para mim foi um bónus tal o meu gosto por tais “clientes”.  Já as cobras, mantiveram-se escondidas como é seu hábito, mostrando-se somente de longe a longe, em duas ocasiões com a ninhada atrás. 

Quando o relvado cresceu e se transformou num lindo tapete verde, vim a descobrir que havia outros moradores de que não me tinha apercebido.  Um dia, de manhã, encontrei vários montículos de terra a manchar o tal “tapete”, sinal de que eu também tinha a companhia das toupeiras. Na gíria popular, são “de levantar”, porque atiram a terra escavada para a superfície. Ora bem: na minha estupidez, declarei-lhes guerra. Comecei por fazer “esperas” logo ao nascer do sol, à hora em que elas “entram de serviço”, escavando as galerias. E bem cedo lá estava eu, de enxada em punho, de olhos fixos nos montículos esperando ver a terra a mexer, sinal de que estava ali a empurrar a terra. Depois, levantava a enxada e cravava-a no monte, arrancando-o para o relvado e, com ele, a toupeira. Mas como não sou profissional, só resultou uma vez. Então, passei às armadilhas, mas o resultado foi pior. E finalmente, usei cianeto em pastilhas, sem sequer apanhar uma. Como não ganhei a guerra, elas ficaram por cá, na terra onde devem ter mais direitos naturais de propriedade e de residência do que eu e que, por isso, decidi abster-me de contestar e combater. 

E como não quero “recorrer à justiça” para revindicar os direitos que julgava só meus, chegamos a um acordo de convivência saudável, tendo elas se comprometido a viver “debaixo do solo”, enquanto eu e a família nos movimentamos “acima do solo”, sem que tenhamos de nos cruzar no dia a dia. Presumo que as famílias desses simpáticos “condóminos” se vão sucedendo por cá, geração atrás de geração, construindo a “residência” com várias “divisões” ligadas entre si por uma rede de galerias, “caminhos” do seu mundo por onde apanham as minhocas com que se alimentam. Pensando bem, tenho obrigação de respeitar ainda mais estes meus vizinhos porque, além de serem praticamente invisuais, passam a vida enfiados em túneis escavados “à pata”, sem qualquer iluminação, nem sequer um pequeno holofote na testa para “ver luz ao fundo do túnel”. Além disso, ainda têm de se cuidar pois a sua pele é muito cobiçada para fabrico de casacos para reis, aliás, rainhas. As minhas condóminas já não têm esse problema comigo e devem saber que deixei de as caçar e não as quero esfolar.

E contei esta pequena história deste “condomínio” onde vivo, porque cheguei à triste conclusão que a decisão do governo nos manter em casa “confinados” não foi bem pensada, pois não só não resolve esse problema do maldito vírus que veio da China (e ainda ninguém disse se ele fala chinês ou a língua de Camões), como nos arranja um monte de problemas, pelo facto de estarmos demasiado tempo em casa, ao contrário do que é habitual. Já bastava o agravamento dos conflitos pessoais e as discussões sem fim, em que os homens ficam sempre a perder. Ao ficar por casa, as pessoas têm tendência a “meter-se em trabalhos”, fazendo as coisas que foram adiando à espera de terem tempo (desculpando-se com a falta dele), e que agora, sem alibi, têm mesmo de fazer. Ora, ao quererem resolver os biscates pendentes lá por casa, num excesso de voluntarismo e sem cuidar da forma, acaba por dar asneira, conforme provam as estatísticas. Nestes dias em que a gente teve de ficar enfiada em casa, esta virou um lugar perigoso para viver. De tal forma, que os acidentes domésticos aumentaram e muito. 

E eu posso atestá-lo. Nunca na minha vida tinha caído de uma escada, mas foi desta que experimentei. No primeiro fim de semana de condicionamento resolvi aproveitar o bom tempo para fazer uma intervenção profunda numa sebe que me trava o vento há décadas. Vai daí, toca a cortar de um lado, do outro e por cima. Quando andava lá no alto, confiante que a escada se portaria bem, ao querer cortar um ramo um pouco mais distante tive de me inclinar e pressionei mais o lado direito da escada. Esqueci-me que tenho cá a tal família de toupeiras a viver no subsolo. Ora, ao colocar a escada no relvado junto à sebe deixei o apoio direito precisamente sobre “o telhado” de uma das suas galerias, por negligência, colocando em perigo a família desses meus simpáticos vizinhos. Quando o meu peso exerceu mais pressão sobre o apoio direito, este enterrou-se na galeria e, de repente, a escada tombou para o lado. Sem capacidade de reação, deixei-me ir. Do alto da escada à relva húmida foi um instante, tendo consciência de já não ter a força muscular de outrora para reagir em tempo. Meio atordoado, senti uma dor na perna esquerda, enquanto o meu filho corria para me ajudar a levantar. A canela da perna deve ter roçado pela escada abaixo pois estava esfolada e bem pisada, pelo que achei conveniente ir ao hospital. Sem nada partido, trataram-me da ferida e colocaram-me uma ligadura de proteção. Soube então que nesse dia aquele serviço tinha atendido muito mais sinistrados do que é habitual, vítimas de acidentes domésticos com consequências mais ou menos gravosas, resultado destas “estadias prolongadas em casa”.

Afinal, ao contrário do que diz a DGS, ficar em casa “não é nada bom para a saúde”. Eu diria, “nada recomendável”. E a minha perna, que três semanas depois continua a ser objeto de tratamento, é a prova provada que estão errados.

Ou serei eu que não estou a ver bem as coisas?