Falhamos estrondosamente, a fatura é alta, continua a subir sem fim à vista e “o valor já pago não tem preço nem retorno”. Está perdido para sempre. E não vale a pena arranjar desculpas esfarrapadas nem enterrar a cabeça na areia. Todos temos de assumir o fiasco. Todos, a começar pelos governantes que se perderam nos autoelogios de um “sucesso falso” no combate à primeira vaga da pandemia, esquecendo de, atempadamente, planear e tomar as medidas convenientes, ainda que impopulares, para controlar o que veio a seguir. Pelos políticos que quiseram tirar dividendos da crise quando se deviam preocupar com as pessoas, que não são números. Pelos especialistas, que tentam encontrar um caminho feito de avanços, recuos e até contradições. Pelos jornalistas, que fizeram dos noticiários um autêntico massacre psicológico, com relatos estatísticos tão exaustivos quanto maçudos. E todos nós que ficamos agarrados ao nosso comodismo, liberdades, regalias, direitos adquiridos, hábitos e tradições, esquecidos de que há um valor maior que tem de estar à frente de tudo isso: a vida de cada um. A nossa, dos nossos familiares, amigos, vizinhos, novos e menos novos, conterrâneos, estranhos, pessoas como nós. E temos esquecido que a luta para nos mantermos vivos tem de estar acima de tudo e em primeiro lugar. Sem ela, o que vale o resto?
Pode parecer estranho, mas o melhor e mais inteligente discurso de um governante ao seu povo durante a crise do Covid-19 alertando contra as pessoas que se comportam mal neste período da pandemia foi do presidente do Uganda, Kaguta Museveni, que começou a dizer aos ugandeses: “Deus tem muito trabalho, pois tem o mundo inteiro para cuidar. ELE não pode estar aqui simplesmente, no Uganda, a cuidar de idiotas …” Mas vale a pena ler a sua declaração pública que, mais do que para os ugandeses, deve servir de lição para todos nós:
“Numa situação de guerra, ninguém pede a ninguém para ficar dentro de casa. Você fica dentro de casa por opção. De facto, se você tem uma cave, fica escondido lá enquanto as hostilidades continuarem.
Durante uma guerra, você não insiste na sua liberdade. Desiste voluntariamente em troca da sobrevivência.
Durante uma guerra, você não se queixa de fome. Você sente fome e reza para continuar a viver para poder comer de novo.
Durante uma guerra, você não discute abrir ou não o seu negócio. Você fecha a sua loja (se tiver tempo) e corre para salvar a vida.
Você reza para sobreviver à guerra, para poder voltar ao seu negócio (isto é, se não tiver sido saqueado ou destruído por um morteiro).
Durante uma guerra, você fica grato por estar vivo mais um dia na terra dos vivos.
Durante uma guerra, você não se preocupa se seus filhos não vão à escola. Você reza para que o governo não os aliste à força como soldados para serem treinados nas dependências da escola, agora transformada em depósito militar.
O mundo está atualmente em estado de guerra. Uma guerra sem armas e balas. Uma guerra sem soldados humanos. Uma guerra sem fronteiras. Uma guerra sem acordos de cessar-fogo. Uma guerra sem teatro de guerra. Uma guerra sem zonas sagradas. Nesta guerra o exército não tem piedade. É indiscriminado – não respeita crianças, mulheres ou locais de culto. Este exército não está interessado em espólios de guerra. Não tem intenções de mudança de regime. Não está interessado na riqueza dos recursos minerais. Nem sequer se interessa por hegemonia religiosa, étnica ou ideológica. A ambição dele não tem nada a ver com superioridade racial.
É um exército invisível, sem bases e impiedosamente eficaz. A sua única agenda é uma colheita de morte. Só ficará saciado depois de transformar o mundo num grande campo de morte. A sua capacidade de atingir o seu objetivo não está em dúvida. Sem máquinas anfíbias, terrestres e aéreas, possui bases em quase todos os países do mundo. O seu movimento não é governado por nenhuma convenção nem por protocolo de guerra. Em suma, “é uma lei em si mesma”.
É o coronavírus, também conhecido como COVID-19.
Felizmente este exército tem uma fraqueza e pode ser derrotado. Requer apenas a nossa ação coletiva, muita disciplina e tolerância.
O COVID-19 não pode sobreviver ao distanciamento social e físico. Só prospera quando você o confronta. Adora ser confrontado. Capitula diante do distanciamento social e físico coletivo. Ele se curva diante de uma boa higiene pessoal. Fica desamparado quando você toma o destino nas suas próprias mãos, mantendo-as higienizadas o mais tempo possível.
“Não é tempo de chorar por pão e manteiga como crianças mimadas. Temos de achatar a curva do COVID-19”.
Vamos exercitar a paciência. Sejamos guardadores dos nossos irmãos. Em pouco tempo recuperaremos a nossa liberdade, as empresas e a socialização. No meio da EMERGÊNCIA, pratiquemos a urgência do serviço e a urgência do amor pelos outros”.
O nosso problema é que “estamos numa guerra”, mas não tomamos verdadeiramente consciência de que essa “guerra” é real e temos de lutar pela vida contra um inimigo invisível. Era mais evidente se fosse um vulcão em erupção, um terramoto arrasador ou uma torrente de água e lama que nos arrastasse ribanceira abaixo com todos os bens a reboque. Aí lutávamos pela vida sem querer saber de nada mais que não fosse ficar vivo. Quando em 2005 o furacão Katrina atravessou Nova Orleans, deixou um rasto de destruição e quase 2.000 mortos. A grande preocupação dos habitantes da cidade foi “salvar a pele”. Para trás deixaram casas, carros, negócios, empregos e bens pessoais. Em suma, tudo. E ali ficaram sem eletricidade, água potável, um teto para se abrigar, sem segurança e proteção. Agora nós, com mais de 10.000 mortos, que tudo indica passarão do dobro muito em breve, estamos ocupados em defender os direitos que a constituição nos confere, que os filhos continuem a ir à escola, que as nossas vidas continuem a ser iguais ao antes da pandemia! Também continuamos a comportar-nos como idiotas não respeitando o confinamento, distanciamento social e higienização frequente das mãos, talvez à espera dum milagre ou se calhar, convencidos que a chegada de alguns milhares de vacinas já nos imunizou a todos, como por encanto! Quando vamos acordar?
Esta “guerra” é difícil porque o “inimigo” não se mostra, mas está cá; dá-nos uma falsa sensação de segurança, que por ser falsa é perigosa; leva-nos a pensar mais nos bens materiais que estão em risco do que na vida que se pode perder num momento. E, sejamos francos, já não nos choca o número obsceno de mortos que a televisão nos atira à cara diariamente, cada vez maior, como se fosse banal tombarem a cada dia 250 pessoas ou mais. Porque não nos dizem respeito? São números de um “filme” diário que ouvimos, mas não sentimos. Já não mexe connosco. Ao que chegamos!!! E esquecemos, ignoramos e, pior ainda, com a nossa falta de cuidado, desrespeitamos os profissionais/ de saúde que estão na frente de combate, cansados, esgotados física e psicologicamente, ao verem-se impotentes para conter a “colheita” que a morte faz à sua volta. Quantos não terão vontade de desistir?
Em 10 meses, esta “guerra” já nos levou tantas vidas como a guerra do Ultramar em 13 anos e “assobiamos para o lado”, governantes e governados, só sendo “acordados” quando tomba alguém que nos é próximo.
É tempo de sermos responsáveis antes que os nossos filhos tenham de chorar o nosso “número” nas estatísticas de um dia destes …