Monthly Archives: November 2016

O regresso dos “escarradores”…

Ggggggg, ggggggg, ggggggg… O homem fazia um esforço enorme ao puxar o catarro bem lá do fundo da garganta, de tal maneira que tinha a cara avermelhada. Era grande o ruído, mais parecendo a raspagem da trampa seca num cano de esgoto. Ggggggg, ggggggg… e o produto conseguido nesse esforço passou da garganta à boca, acumulou-se em cima da língua contra o palato e foi disparado contra a parede como o tiro de uma pistola. Olhei de lado e ainda vi o “escarro” a resvalar pela parede abaixo. Mais parecia uma lesma preguiçosa… Mas a “cobra cuspideira” seguiu em frente com toda a naturalidade, como se aquilo fosse um gesto vulgar, socialmente aceite. E, ao que parece, ainda é…

Quando andava na escola primária, havia disputas entre nós para ver quem… cuspia mais longe. Era um desporto barato, que só exigia uma boa produção de saliva (e nós produzimos um a dois litros por dia) e força no sopro. Para apagar os trabalhos que escrevíamos na “lousa”, nada melhor que uma cuspidela e a manga da camisola para limpar… Ninguém estranhava, porque o ato de cuspir era tido por normal. Cuspia-se em todo o lado. Os trabalhadores antes de pegarem numa peça de ferramenta davam duas cuspidelas nas mãos, esfregavam uma na outra e estavam prontos para a função. O escarro fazia parte da nossa tradição cultural. Nos edifícios públicos e até nas casas abastadas, existiam “escarradores” (ou escarradeiras), pequenos vasos metálicos ou de louça, abertos em cima, para ali se “depositar” o catarro salivar. O problema era acertar no alvo. Por isso, alguns “atiradores” optavam pelo “tiro fácil”, isto é, colocavam-se por cima do escarrador e só tinham de deixar cair a saliva, por gravidade, na vertical. Mas havia os especialistas no tiro difícil. “Disparavam” de mais ou menos longe como se de uma bala se tratasse e acertavam sempre… que o escarro não caía fora do escarrador. Por alguma razão, há volta deste havia sinais de “balas perdidas”… Mas era normal, sem qualquer nojo, repulsa ou má educação. Pelo contrário. É que os escarradores eram usados em nome do controle da propagação da tuberculose e outras doenças transmissíveis através dos fluidos… Conta-se que, nos anos 50, um lavrador alentejano foi jantar a casa de familiares ricos em Lisboa. Ora, estes preocupados com o facto do alentejano estar habituado no campo a cuspir para o chão, compraram um bonito escarrador de porcelana, que colocaram junto à mesa e ao lugar onde ele se sentou. Quase no fim do jantar, não aguentando mais, o alentejano desabafou: “Oh comadre, tire daqui o vasinho senão ainda lhe cuspo em cima”.

Mas, a sociedade alterou as regras da conduta e de convivência social. O que era prática comum virou ato repulsivo e condenável. Com o tempo, “limpar o canal” com uma boa escarradela passou a ser nojento e deselegante, tal como dar uma boa “fungadela” para o chão segurando a “penca” entre o polegar e o indicador, coçar algumas partes mais “privadas”, mas em público, ou ter um penico debaixo da cama para “alívio noturno”. Mas, apesar do manual das boas maneiras o não aconselharem, continua-se a cuspir em público. E até nem falo dos que “cospem no prato onde comem”, em sinal de ingratidão, nem mesmo dos que “cospem para o ar, porque o cuspo lhes pode cair na cara” (um bom conselho para os que falam e criticam demais). Falo dos que têm catarro, quer pelo tabaco, quer pelas crises de garganta próprias desta época, com tosse complicada que faz “puxar” pelas secreções agarradas na garganta. E, vai daí, em vez de as abafar no lenço de assoar (o que é uma chatice pois deixam o lenço colado…), atiram-se para o chão, em cuspidelas descaradas ou mais ou menos envergonhadas.

Mas, em pleno século XXI, existem numerosos lugares onde os “cuspidores” atiram para o chão todo o tipo de “bisgas” à frente de milhares e milhares de pessoas, sem qualquer preocupação com boas maneiras ou regras sociais. E, quem vê, não considera tais atitudes nojentas, porque “não vê ou não quer ver”. São “cuspidores oficiais” que a sociedade isenta dos comportamentos que exige para os outros. Em suma, têm “imunidade para/lamentar”, que lhes permite ser nojentos e mal educados. Ninguém os condena e podem cuspir em público. E isso vê-se todos os dias nos… campos de futebol. Pois é. Julgo que já todos nós reparamos que qualquer jogador, por mais educado ou rebelde que seja, por mais rico ou pobre, velho ou novo, vedeta ou Zé ninguém, nunca deixa o campo de jogo sem umas valentes cuspidelas, aqui e ali, como que a marcar terreno… tal e qual os cães o fazem, mas de outra forma. Pensando bem, não se conhece outra modalidade desportiva onde os atletas, para além de se permitirem coçar as partes baixas publicamente, cuspam a torto e a direito, despreocupadamente, sem terem em conta as boas maneiras, as convenções sociais, as transmissões televisivas que não deixam escapar nada e o poderem “banharem-se” no seu próprio cuspe. Será que isso ajuda ao jogo? Provavelmente, sim. E deverá haver mesmo alguma coisa que nos escapa para eles, após um esforço qualquer, uma jogada bem ou mal conseguida, lançarem uma “bisga”… Ao que parece, o cuspe (ou cuspo) está associado ao futebol e dele faz parte. Mais. A cuspidela é parte integrante do jogo e deve ser tida como uma boa prática desportiva, tal como a finta ou o remate. Se virmos bem, ela “remata” as jogadas de sucesso ou fracasso. Não importa. É que a cuspidela é livre e democrática e surge da boca de todos os jogadores, bons ou maus, pequenos ou grandes, artistas da bola ou nabos. E, nesse frenesi da cuspidela coletiva, os jogadores fazem do campo de jogo um ENORME ESCARRADOR, em cujo fundo atapetado (e bem cuspido) tantas vezes se rebolam…

O tempo dá-o Deus de graça. Nós é que o queremos vender. Sempre…

Li algures que, nas zonas rurais dos Estados Unidos, há americanos que “adoptam”… estradas. Curioso e estranho. Como é possível alguém “adoptar” uma estrada? O que é isso? Afinal, “adoptar” uma estrada é assumir em regime de voluntariado, a vigilância, limpeza e controle de tudo o que diga respeita àquele troço de uns quantos quilómetros. Gratuitamente. Somente a troco da satisfação pessoal de ajudar a comunidade. É um tipo de voluntariado original, que desconhecia e não existe entre nós. Mas temos voluntariado, e muito. Graças a Deus. Que dão um grande contributo para que a sociedade seja melhor.

Lembrei-me disto quando há dias fui a um jantar de solidariedade a favor da Associação Lousada Animal, que decorreu nas instalações do Rancho Folclórico de Nogueira. E ainda bem que lá fui, não só pela razão de ser do jantar mas por ter tido a oportunidade de conhecer as instalações daquele Rancho. Francamente, não esperava encontrar uma obra daquelas. Por isso, tenho de prestar aqui a minha homenagem a todos aqueles que tiveram a ousadia de a sonhar e a diligência para a levar a cabo, desde os voluntários anónimos aos dirigentes, também eles voluntários, que carregam o fardo mais pesado. Na pessoa do senhor Artur, que há vinte anos ali dá muito do seu tempo, os meus parabéns. A todos. É uma obra de boas vontades numa terra pequena, sem grandes recursos. Perdão, com grandes recursos… humanos… Recursos especiais, que dão o seu tempo, de graça… como Deus o dá. Lá estavam eles na cozinha, no bar, a limpar, a servir à mesa, enfim, onde era necessário. São pessoas que, apesar de terem as suas vidas, entregam-se a uma causa sem qualquer remuneração, simplesmente a troco da satisfação pessoal de fazer algo para os outros e em prol dos outros. Vi orgulho na obra feita, soube de projetos para a completar e encontrei esperança e vontade para os concretizar. Mas também gratidão para com quem os ajudou. Sobre os críticos, os “profissionais do bota abaixo” que mais não são do que parasitas invejosos, ouvi um único comentário do senhor Artur: “Só ouço aqueles que estão cá para ajudar. Aos outros, ignoro-os”.

É uma questão recorrente para quem faz voluntariado, muito especialmente como dirigente, ter de ouvir críticas más, destrutivas, mal intencionadas, de gente que vive disso, nada faz e nada quer fazer pelos outros, incapaz de dar um pouco de si. E por isso mesmo, por serem incapazes, falam do que não sabem, criticam o que desconhecem, insinuam, inventam para denegrirem. E dizem mal de tudo e de todos, para encobrirem o seu egoísmo, a sua inveja, a sua falta de solidariedade e incapacidade. Não vale a pena tentar esclarecê-los porque é tempo perdido, já que não acreditam no que se lhes diz mas só no que querem, no que está de acordo com a sua maneira de ser e de estar na vida.

Durante mais de cinco décadas de vida tenho dedicado uma boa parte do meu tempo a causas, quase sempre como dirigente de clubes, instituições sociais e associações desportivas, recreativas, humanitárias e culturais. Na condição de voluntário, sem retribuição, a não ser o prazer de fazer e de ajudar. Desde há muitos anos que me permito dar mais de metade do meu tempo. Sem arrependimentos, a não ser pelo facto de ter sacrificado a família. Muito. Isso sim, pesa-me. Mas estou grato a Deus por me ter “feito” assim e ter dado condições para ser voluntário. Por isso sei do que o senhor Artur falava em relação a críticas e críticos. Se eu também desse ouvidos ao que diziam de mim, tinha desistido antes do primeiro espetáculo que organizei na minha aldeia, era ainda um rapazote. E ao longo destes mais de cinquenta anos sei que fui tema de conversas de café, tascos e todo o tipo de serões de má língua, onde alguns me “promoveram” a convencido, ladrão, desonesto, péssimo dirigente, arrogante, malcriado e sei lá que mais. Só tiveram um problema: Fui “surdo” a todo o “blá, blá”. Totalmente. Nunca consegui dar ouvidos a esse tipo de insinuações. E recomendo a todos os voluntários, especialmente aos dirigentes, que só tenham ouvidos para aqueles que trabalham consigo. Aos críticos, àqueles que falam movidos pela inveja, ignorem-nos, não os ouçam.

Um amigo telefonava-me frequentemente por razões profissionais. Quando me perguntava onde me encontrava para se encontrar comigo, por coincidência ou não, quase sempre me apanhava no mesmo local: “Estou na Misericórdia (de que sou dirigente). Um dia, cara a cara, não se inibiu de me perguntar: “Sempre que lhe telefono está na Santa Casa. Pelo tempo que lá passa, tem de ganhar uma data de massa (e atirou-me com um número obsceno)”. Ri-me e respondi-lhe: “Está muito enganado. Não ganho nada. Rigorosamente nada. Nem eu, nem os outros Mesários”. “Não acredito”, retorquiu. “Àquilo que lá faz, ao tempo que lá perde, tem que ter um bom ordenado”. Conhecendo-o como conheço, rematei a conversa: “Volto a repetir-lhe: NÃO GANHO NADA. Mas também lhe digo que não vou perder tempo a tentar convencê-lo disso porque você só acredita naquilo que faz e que é. E como só é capaz de vender o seu tempo, nunca vai acreditar que alguém o dê…” E a conversa ficou por ali.

É curioso que esta “presunção” de que os dirigentes da Misericórdia ganham salários chorudos apesar de serem voluntários (e o nome deveria dizer tudo), não passa só pela cabeça de algumas pessoas externas à Santa Casa. Também há colaboradores, gente que trabalha na Instituição e que está informada (ou não quer estar), a “presumir” que temos de ganhar muito para estar lá. E não vale a pena perder tempo. Cada um continua a acreditar no que quer acreditar, sendo essa a “sua verdade”. Por isso, continuo a dizer: “O tempo dá-o Deus de Graça. Nós é que queremos vendê-lo. Sempre”. Ou quase. O que não acontece com os voluntários. Essa “tal gente”…

A morte de “um gajo porreiro”…

Um dia destes vou “bater a bota” como qualquer “morto” que ainda se passeia por aí. Nada de novo, é só uma questão de tempo. Não vale a pena roer as unhas nem arrancar os cabelos (também já não são muitos) a pensar nisso. Quando menos o esperar, “fazem-me a folha”, isto é, o funeral. Espero estar lá para ver como será, se bem que o ideal seria estar vivo para ficar a saber o que dizem de mim. E poder olhar, olhos nos olhos, alguns dos que vão dizer que eu era boa pessoa mas que, em vida, só me brindaram com adjetivos ordinários. Cada um diz o que é. Prometo que, no “caixote” onde me enfiarem, não levarei papel nem lápis para tomar nota das pessoas que estão presentes. Quero lá saber quem está ou quem não está. Não haverá “relógio de ponto” para controlar presenças. Que importa? Vai quem quer e pode. Muito mais importante, é a disponibilidade que me deram enquanto estive “vivinho da Silva”. Depois de morto, é só um formalismo, uma atenção que, desde já, agradeço. Além do mais, nem gosto de cerimónias, muito menos desta. Só tem uma vantagem: Não tenho de “botar faladura”. Mas é chato. Nem sequer posso estar a receber os amigos, tomar um copo, contar umas anedotas, dizer asneiras. E rir. No entanto, aos que tiverem a pachorra de me acompanharem nesse “despacho da encomenda”, tenho um pedido a fazer: Não digam de mim que “morreu um gajo porreiro”. É que não gostaria de ser lembrado (se é que alguém se vai lembrar de mim ao fim de quinze dias..) como “um gajo porreiro”. O que é isso? “Um gajo porreiro” é uma espécie de amigo que não é amigo mas se comporta como se fosse. Porque não incomoda, não chateia. É uma espécie de “bobo da corte”, um tipo que ninguém considera, alguém que será sempre “lixado”. O “gajo porreiro” nunca toma atitudes, não exige, não controla e nunca se impõe, porque não tem personalidade. Até qualquer “moina” faz dele “gato sapato”.

Aquele patrão era “um gajo porreiro”. Jovem empresário, fez questão de ter uma relação com os empregados de “tu cá, tu lá”. E confiava cegamente que os colaboradores eram todos uns “gajos porreiros”. Não fez questão de controlar, nem mercadorias nem presenças, nem produção, nem recebimentos, nem outras coisas. Era um gajo mais que porreiro. Era “porreiríssimo da Costa”. Quem não gostava dele? Era incapaz de chamar a atenção a quem quer que fosse, muito menos ameaçar e, pior ainda, de fazer cumprir a ameaça. E gostavam dele por isso mesmo, por ser incapaz de fazer mal a uma mosca. O mesmo é dizer que não tinha personalidade para traçar um caminho e segui-lo, definir um objetivo e alcança-lo. Era um tipo bestial, embora “não fosse carne nem peixe”, assim a modos que um palhaço fora do circo, mas sem qualidade. E o resultado? A empresa durou pouco mais de um ano. O patrão, que era “um tipo porreiro” e achava que todos os que trabalhavam com ele “porreiros” eram, só chegou à conclusão de que o seu “porreirismo” não o levava a lado nenhum quando descobriu que uma das máquinas principais da empresa não funcionava porque os “porreiros” lhe tinham… “fanado” o motor.

Como o objetivo principal dos partidos é ganhar eleições, muitas vezes escolhem “gajos porreiros” para candidatos porque, afinal, é neles que a malta vota. “Vota Gameiro que é um gajo porreiro”, não é muito diferente do slogan do palhaço brasileiro: “vota Tiririca que pior não fica”. E é assim que muitos desses “gajos” são eleitos e se tornam numa “menos valia” na gestão autárquica, fazendo “ofício de corpo presente”, sorrindo, distribuindo beijinhos, abraços, abanando sempre com a cabeça e deixando até as suas responsabilidades de gestão à deriva, entregues a subalternos. Mas vingam. É que “um gajo porreiro”, regra geral, tem bom feitio, atura todo o tipo de m…, apesar de não ter talento para coisa nenhuma. Mas é “um gajo porreiro”. Se tivesse mau feitio mas muito talento, interessava a quem? Quem votava nele? O talento não ganha eleições, o bom gestor é um chato. O que agrada mesmo é “um gajo porreiro”. Vale votos, dá vitórias. E o resto? A boa gestão autárquica? Que raio de preocupação pois, bem ou mal, vai sempre funcionar… E, se não funcionar, quem pede responsabilidades?

Há quem ache que ser assim é o máximo, é a coisa mais fixe. São os maiores. Têm o poder, se bem que não sabem o que fazer com ele… E têm muitos amigos… para lhe pedirem favores. Quando se lhes diz muitas vezes que são porreiros, passam a viver na ilusão. Diz-se que nunca se devia dar o poder a “um gajo porreiro”. Ao princípio não se dá por ele, não existe. Mas, pouco a pouco, vai tomando conta do espaço, instala-se e “vive na boa”. Engole todos os sapos, bons e maus, como quem toma “óleo de fígado de bacalhau” (nem queiram saber como é desagradável. Só com o nariz tapado… e à força). Mas ele aguenta, em nome do “porreirismo” e do… poder.

Já não restam dúvidas que somos um país de “gajos porreiros”. Até os “fabricamos” de um momento para o outro. Por mais sacana, ladrão ou criminoso que um tipo seja, no dia em que morre passa a ser… “um gajo porreiro”. No velório e no funeral, somos bons samaritanos. Mesmo que o cardápio de pecados do defunto seja enorme, dizemos entre fungadelas e ranhos: “Este tipo era um gajo porreiro”. É normal. Na hora do adeus, não temos “lata” para “chamar os bois pelo nome”, de dizer em voz alta que o morto não valia um caracol. Que era um escroque, um imbecil. Nada disso. Até o senhor José, (nome fictício que pode corresponder à realidade…). Faliu duas vezes de forma fraudulenta para “arranjo de vida” e arrastou para a falência várias empresas, pequenos empreiteiros que ficaram sem nada e tiveram de emigrar. No dia do seu funeral passou a… “gajo porreiro”. Pensando bem, somos uns tipos espetaculares. Se calhar, também “uns gajos porreiros”. Fazemos com que o bandido vire herói, o ladrão homem honesto, o criminoso um tipo santo, o imbecil inteligente e o infiel homem de uma só mulher… Enfim, todos “uns gajos porreiros”. Ou fingimos bem… mal. Por isso, quando eu “for desta para melhor (?)”, façam-me um favor: Não me ponham esse rótulo. Faz-me cócegas… e posso espirrar. E não sabem como isso é perigoso, quando se tem cinco palmos de terra por cima…

Como as coisas eram simples…

Antigamente, as coisas eram simples. Regra geral, bem simples. Tinha-se um ou dois pares de calças, duas camisas. Não havia dramas com a escolha. Hoje há mulheres que, diante do enorme roupeiro atulhado de “trapos”, fazem uma choradeira danada enquanto se lamentam: “Não tenho nada para vestir”… Na comida, igualmente simples. Um tacho, uma panela, uma cafeteira e uma sertã, constituíam o trem de cozinha. A variedade de cozinhados era pouca mas,… como a comida da minha mãe era saborosa!!! Agora, a cozinha é um autêntico “estaleiro” de tachos, panelas, apetrechos e acessórios cada vez mais modernos. E até máquinas, maquinetas e mesmo robôs, e a refeição é… empacotada, do supermercado. Mas a comida da minha mãe era mesmo boa…. É certo que nesses tempos não havia o problema de gostar ou não gostar. Gostava-se de tudo. Só era preciso que houvesse algo para comer. Era sempre bom. E simples. Agora, quando a refeição vai para a mesa, há sempre quem “torça o nariz” e ouve-se frequentemente “não gosto” ou “não me apetece”. A mãe é o bode expiatório e tem de “fazer muita ginástica” para conseguir agradar a todos. E agrada… fazendo uma comida diferente para cada um… Não é fácil. No final, “vai mais comida para o lixo do que os ricos tinham antigamente para comer”… É complicado. Aos pratos simples de outrora responde-se hoje com a complexidade. Abandona-se a cozinha tradicional em favor dos requintes dos “chefes”. Como se a complexidade fosse sinónimo de qualidade, de melhor sabor.

Vivia-se e convivia-se com a família e vizinhos, como se estes fossem parte da família. Porque eram eles o primeiro recurso nas aflições, faziam parte da rede de segurança. E conversava-se ao fim do dia à porta de casa. Enquanto as mulheres davam à língua na presa a lavar a roupa, os homens juntavam-se ao domingo para jogar a malha, com os perdedores a pagar um litro de vinho para todos, em copo comunitário de litro. Em cada jogo. Tudo muito simples. Hoje não conhecemos o vizinho da porta da frente e vemos os familiares de longe a longe. Provavelmente bem ao longe, apesar de se viver na mesma rua. A vida é complicada. Como nós a complicamos…

As casas antigas do meu tempo de criança eram simples, térreas, com piso de terra batida. As “novas” de então, apesar de já terem dois pisos, continuavam simples: Em baixo a loja e em cima a habitação. O dono só tinha de escolher uma coisa: O tamanho da casa. Dez metros por oito? Doze metros por dez? Nada mais. O preço ia dos oito aos dez contos, pronta a habitar. O pedreiro encarregava-se de tudo e o cliente não tinha que se preocupar com mais nada. Não precisava de projeto, não tinha de escolher linhas modernas ou tradicionais, nem tinha de andar a correr para a Câmara atrás da licença de construção meses a fio, feito mendigo. Não tinha de escolher os materiais para as paredes, qual o tipo de telha ou a madeira para a carpintaria. Nada, simplesmente, nada. Ao apertar a mão do pedreiro estava selado o contrato e só tinha de lhe dar tempo para fazer o trabalho. Só. Tão simples quanto isso. E sabia com o que podia contar.

Com a mulher uns metros atrás, o Santos “Ervilha” passava todos os dias à frente da casa dos meus pais a caminho do trabalho quando andava a “levantar” a casa do meu tio. Pedreiro de profissão, num tempo em que a profissão era muito dura, tinha na mulher o seu braço direito e, dizia quem sabia, que ela “pegava-lhe” tão bem como ele. E também fazia a sua “perninha” pela manhã a comer um naco de broa com aguardente na loja do meu tio e à tarde, quando “deitavam abaixo” o copo de litro de vinho, a meias. As pedras vinham em carros de bois e eram descarregadas à mão pelo Santos “Ervilha”, a mulher e o carreteiro, com a ajuda de duas “pancas” de madeira. Nas manhãs de inverno esfregava as mãos com geada para as adaptar ao frio e, agarrado ao “pico”, trabalhava e preparava as pedras com auxílio do esquadro e do metro que trazia sempre consigo no bolso de trás. Aos tombos, o casal levava as pedras até perto da parede, tendo sempre o cuidado de colocar um rachão como “calço” para ser mais fácil pegar-lhe no tombo seguinte. E aos tombos as faziam subir em cima de duas “pancas” ou pequenas vigotas de madeira até ao seu lugar na parede. Quando esta atingia a altura de um homem, passavam a ser içadas com a ajuda do “sarilho”, uma “grua artesanal” feita com dois eucaliptos atados em cima e espiados para um e outro lado, um jogo de roldanas e um sarilho semelhante ao usado para tirar água dos poços. Pouco a pouco, as paredes da casa iam subindo e as pedras ajustadas na perfeição pela mão daquele homem com tendência para a “pinga” mas sempre bem disposto e respeitoso, e da Lisinha sua mulher. Tudo simples.

Hoje escolhemos projetista e modelo de casa e esperamos, pelo projeto e pela licença. Muito tempo. Escolhemos empreiteiros e caderno de encargos e esperamos pelos orçamentos. E ao longo da obra continuamos a fazer escolhas, muitas escolhas e a esperar. Do azulejo à tijoleira, da madeira à caixilharia, das portas aos portões, do alumínio ao aquecimento, do pavimento para a sala aos móveis de cozinha. E muitas mais. Mas tudo é complicado porque a variedade é grande e a dificuldade aumenta. Como escolher a tijoleira para a casa de banho entre cem amostras ou mais? Não é simples… A ajuda vem da moda. É que, tal como na roupa, nas casas impera a moda. O soalho de pinho deu lugar à alcatifa e esta aos tacos de madeira. E, sucessivamente, ao parqué, à corticite, às réguas de madeira, às tijoleiras, aos granitos e outras pedras, aos pavimentos flutuantes. O que é que se está a usar mais? Vai-se por aí. As paredes de caliça cederam ao areado e este ao papel e depois ao estanhado com pintura plástica de cores tradicionais ou com uma parede diferente, de cor viva para contrastar. E que cor escolher num catálogo com tanta variedade? Seria mais simples se tivesse só meia dúzia de cores. Assim, é complicado. Escolhe-se e depois… arrepende-se. Se pudesse voltar a trás… É bom ter tanta variedade, tanta escolha, mas… por alguma razão se diz: “Como as coisas simples são um descanso para o espírito complexo”…