Monthly Archives: November 2014

Entre os anéis e a honra a escolha é nossa…

Foi com surpresa que soube que uma pessoa por quem tinha (e tenho) grande consideração, ia trabalhar para o estrangeiro. “Vai emigrar? E a empresa?” perguntei eu meio aparvalhado. “Tive de a fechar. Deviam-me tanto dinheiro que estava difícil. Mas, quando a empresa X… me deu um “golpe de mais de duzentos mil euros, não tive outra saída. E eu que confiava tanto no dono” respondeu-me com ar triste. Nem queria acreditar…

Infelizmente, é um dos muitos exemplos de quem teve de fechar a porta, não por falta de trabalho, não por falta de serviço, mas porque os clientes não pagaram, porque gente em quem confiaram lhes deu o “golpe”.

Desde bem cedo os meus pais incutiram-me o sentido da responsabilidade e da honra e, aí, estava incluído pagar o que devo. Tenho procurado ser fiel a esses ensinamentos e “só dou um passo conforme a perna” que é como quem diz, só compro ou mando fazer o que posso pagar. No entanto, não sou mais esperto que os outros. Se pago o que devo é porque (ainda) tenho condições para o fazer e compreendo perfeitamente que qualquer um pode, de um momento para o outro, ficar “entalado” e sem condições de satisfazer os seus compromissos, como foi o caso que referi, por incumprimento de terceiros consigo. E até pode um dia acontecer comigo.

Não devia acontecer a fuga às responsabilidades. Quem deve e não pode pagar tem ainda mais obrigação de aparecer, de dar a cara, de não fugir, de falar da situação. Não pode criar espectativas falsas dizendo que paga amanhã, que se acabaram os cheques, que paga para a semana, enfim, que paga “Dia de São Nunca à Tarde”. Os sinais de quem não quer pagar são muitos só que, como andámos a correr, não nos apercebemos deles ou não queremos ver. Começam por não atender o telemóvel, por não devolver as chamadas, ignorar as mensagens, marcar encontros a que não aparecem, quando não passam cheques que logo vão ao banco dar como perdidos… É a passagem de Devedor a Caloteiro ou, como diziam os mais velhos, de Homem a Moço.

Mas, se há algo que “custa a engolir” a qualquer um, é “andar atrás” de um fulano que nos deve e ouvir sistematicamente dele “não tenho dinheiro”, “isto está muito difícil”, “os clientes não me pagam” e, de repente, o “tipo” aparece com um carrão novo, compra uma casa no Algarve ou um apartamento à nova amante… Quantas vezes já ouvi dizer “dá-me cá uma vontade de lhe limpar o sebo…” Até percebo e sei que só quem passa por elas é que pode imaginar… Os “artistas” andam a gozar com o nosso dinheiro. Por vezes até me interrogo como é que tal não acontece mais vezes… Ainda somos um país de brandos costumes.

Compreendo as pessoas quando dizem “não posso levar uma vida honrada. Estes gajos não me deixam”…

Um homem honrado não “cai para cima”. Cai sempre para o chão tendo a esperança de um dia se levantar. Se as coisas correm mal vende os anéis, vende o ouro, vende património, vende o Porsche, para satisfazer os seus compromissos. Assume, dá a cara e o que tem. Ao fazê-lo, mantem o seu maior valor: A Honra.

Quem “cai para cima” são os golpistas que “vão à falência” para ficarem mais ricos, os que não pagam para “engordarem a carteira”. É a escolha de quem ignora a Honra, a Seriedade, a Honestidade, a Palavra. Mas é uma escolha e são muitos os que a fazem hoje em dia… Há cinquenta anos atrás, o pedreiro mais pobre da minha aldeia não a faria. Optava por “ser pobre, mas honrado”. É a diferença…

Vem isto a propósito de alguns “manifestos” subscritos por figuras públicas e mediáticas exigindo que se não vendam empresas públicas, o último dos quais defendia que a PT “deve ficar na mão dos portugueses”. Eu acrescentaria, porque também gostaria, que o país mantivesse a posse das Águas, da rede elétrica e telefónica, dos Correios, dos Lixos, dos Transportes Públicos em geral, da Televisão, da ANA e de outros sectores estruturais da nossa economia. Quem o não deseja? Mas, uma coisa seria “achar” e outra é “deve ficar”. Neste caso, porque não a compram eles?

Quando se vende uma empresa pública ouvimos sempre os mesmos chavões: “Estão a vender os anéis”, “estão a vender as empresas que dão lucro”. Não seria mais sério dizer que “estão a vender as empresas que (ainda) valem algum dinheiro, para abater à dívida”? É que, para realizar dinheiro, dinheiro, tem de se vender o ouro, não a sucata. E o mais caricato é que muitos dos subscritores desses manifestos são alguns dos muito responsáveis pela criação desse “monstro” da dívida que nos está a “engolir” a todos (ou quase), tendo ficado impunes do crime de “lesa pátria”.

Com a venda dessas empresas públicas estamos a empobrecer o país, dizem para aí os tais. Mas, o país não está já empobrecido com aquilo que deve, com o estado em que o deixaram? Ou, o facto de devermos tantos “mil milhões de euros”, não quer dizer nada? Realmente, se a intenção for de não pagar o que se deve, não há problema, não estaremos assim tão mal. Os credores que se amanhem que “com o seu mal podemos nós”…

Se um de nós for credor de alguém que se dá ao luxo de manter o Porsche, os anéis ou a casa na praia, o que pensamos dele? O que queremos que ele faça? Que os venda, para abater à dívida, claro está… Ou não será assim?

E o que pensarão os credores de Portugal (que devem estar a fazer contas à vida) sobre nós, país, de querermos manter a posse das empresas que são os nossos “anéis”? Será que não têm o direito de pensar o mesmo que nós pensamos de alguém que nos deve e ainda quer dar-se ao luxo de os conservar”?

A opção é nossa, enquanto povo. Foi em nosso nome e com o nosso mandato que, uns quantos “senhores” demasiado (ir)responsáveis nos colocaram a nós, aos nossos filhos, netos e bisnetos, na posição de Devedores. Por isso, independentemente dos “nabos” que nos governem, cabe-nos escolher o caminho, o que queremos fazer. Se devemos assumir a nossa condição de Devedores, pagando conforme pudermos mesmo que tenham de ir os ditos “anéis” ou optar pela “promoção” a Caloteiros, e os credores que se danem, “que vão receber ao Totta”. É só uma escolha. Uma escolha bem simples que define quem somos… e quem queremos ser.

“Vote-me a sua benção, Mãezinha”

Existem dois tipos de pessoas: As que passam na nossa vida e as que fazem parte da nossa vida. A minha avó materna não só fez parte da minha como nela deixou algumas pinceladas que contribuíram para a formação da minha personalidade e do meu carácter.

Todos os dias ao encontra-la pela manhã, dizia-lhe em tom respeitoso “vote-me a sua bênção, mãezinha” (ela não gostava que lhe chamasse avó). E ela respondia-me com um “Deus te abençoe”.

Não cheguei a conhecer o meu avô. Tendo ficado viúva, assumiu o negócio das feiras com uma tenda de tecidos. Ainda me lembro de a ver chegar na carroça, desaparelhar o cavalo e guardar tudo numa loja no rés do chão da casa. Anos mais tarde, uma carrinha substituiria a velha carroça e o cavalo, acompanhando a evolução dos tendeiros de então e dos tempos. A última viatura que teve foi um grande automóvel Chevrolet que carregava até ao teto e que muitas vezes conduzi durante as férias, para a levar às feiras de Amarante, de Felgueiras e de Fafe. A cada curva mais apertada dizia-me: “Aqui esbarrou-se o António da Laje” e mais adiante “nesta curva morreu o Manuel da Quinta”, num alerta constante e permanente ao longo de toda a viagem, para ter cuidado na condução.

A sua casa ficava mesmo em frente à dos meus pais, pelo que ali passei muito tempo da infância com os meus irmãos. E ela gostava de nos ver por lá.

No tempo da fruta, no tempo em que a fruta tinha um tempo, aquela figueira grande que estava ao canto do quintal dava-me carradas de prazer e barrigadas de figos como nunca mais tive. Também relembro uma ameixieira de “aparta caroço” (caranguejeira) cujos ramos caíam sobre a mata por detrás da casa. As ameixas nunca chegavam a amadurecer…

Durante muito tempo cultivou um campo dos meus pais com a ajuda do Tónio, um empregado que foi para mim um amigo e companheiro inesquecível. Como gostava muito de melão, todos os anos semeava um grande meloal “casca de carvalho”, tendo-me transmitido o gosto por esse fruto. E foram tantos os que comi em pleno meloal ou em casa, doces e apimentados, daqueles que hoje se procuram mas raramente se encontram…

Aprendi a semear melões fazendo uma cova estreita e funda que se enchia com estrume bem curtido, cobria com um pouco de terra sobre a qual se depositavam 4 ou 5 pevides, a “capá-los”, a protegê-los com as folhas nos dias de muito calor e a escolhê-los pelo “toque”. Só não consegui dormir uma noite na barraca de madeira onde o Tónio ficava de vigia, a guardar o meloal, porque a minha mãe não deixou.

Ficaram-me muitas e boas recordações dos momentos que vivi em sua casa. Mas, especiais, eram as noites de Natal ao redor da lareira, sentado no “preguiceiro” em frente do forno a jogar ao “rapa” a pinhões com os meus irmãos ou a comer a ceia na mesa da sala em noite de consoada. E os dias de Páscoa em que nós, netos, andávamos por ali como pardais à solta, à espera que chegasse o padeiro com as “roscas de pão de ló”. Era um presente invulgar a “rosca” de meio quilo que ela oferecia a cada um de nós. E comíamos tudo até à última migalha ao longo dos dias seguintes, para que o prazer “rendesse”, sem que o papel envolvente escapasse a uma boa raspadela até ficar limpinho. Nunca mais comi pão de ló que me soubesse tão bem…

Trabalhou até aos noventa anos, sem nunca perder o espírito de comerciante.

Mesmo depois de deixar as feiras, e já com idade avançada, ia pela aldeia abaixo com uma carreta, vendendo aqui umas maçãs, comprando ali uma galinha que vendia logo mais abaixo, mantendo vivo o seu espírito comercial. O meu pai, já muito doente, não queria que ela continuasse a trabalhar, acabando por fazer com que saísse de casa às escondidas para ele não ver. Mas essa era isso que a mantinha “viva”.

Teve três filhos e viu-os partir muito antes de si (e a alguns netos), contrariando o que deveria ser uma lei da natureza.

Era uma mulher rija, muito resistente e trabalhadora, de uma força interior notável, casmurra quanto baste, mas de grande coração. Vejo-a sempre vestida de preto e de lenço na cabeça, com as saias compridas, muito compridas, assumindo até ao fim o luto pelo marido. E nas feiras, chamando os clientes para verem a mercadoria ou marralhando os preços com grande instinto comercial e um à vontade próprio de quem está como “peixe na água”.

O dinheiro do negócio guardava-o numa grande algibeira metida no meio das várias saias que usava sempre, resguardado da tentação alheia pois nessa época já havia ladrões, amadores e em pequena quantidade, se comparados aos “profissionais” que hoje temos para aí aos montes…

Passou dos noventa anos, décadas depois dos seus filhos partirem, recolhida tranquilamente na sua casa, no seu canto. Foi e é parte da minha vida e ao recordá-la, sinto nostalgia, uma grande saudade das suas resmunguices e dos seus mimos de avó.

Por isso, hoje como ontem, lhe digo: VOTE-ME A SUA BENÇÃO, MÃEZINHA.

As memórias de uma tampa de sanita

Velha e desconchavada, substituída e atirada para o lixo como coisa inútil, deu-me para escrever as memórias, porque é a única coisa que ainda pode fazer uma velha. É verdade que hoje as pessoas passam por mim e nem se dignam sequer olhar-me. Não admira, é do hábito, pois fazem o mesmo com os seus velhos… Mas, eu sou aquela que, ao passar por qualquer pessoa, posso dizer com toda a propriedade: “Já te conheço o cu”…

Feita de madeira e lacada a branco, cedo tive a mania das grandezas, não aceitando a companhia das minhas primas de plástico por as considerar “de baixa condição”. Quando fui colocada numa sanita de gente importante, por onde passariam “rabos” mediáticos e seletos, essa mania mais se acentuou, embora hoje me arrependa. Pensava que, pela minha condição, daria poiso a “rabos reais”, macios e bem cheirosos. Mas estava bem enganada pois são como os outros e o meu “sofrimento” foi o mesmo daquelas a quem eu chamava “ralé”. Sem qualquer diferença. Além disso, relembraram-me que a minha bisavó era uma tábua de pinho com um buraco no meio…

Recordo com saudade a senhora Maria. Limpava-me todos os dias com um produto que me deixava a “pele” macia e leitosa. Até tinha o cuidado de deitar na água do fundo da sanita um produto para me evitar cheiros incómodos. Sim, porque cedo aprendi que os produtos “despejados” na sanita por todos aqueles rabos, por mais dignos que fossem, ou “cheiravam muito mal ou muitíssimo mal”… Até os gases, aqueles malditos gases disparados como bombas ou “de fininho”, deixavam-me tão tonta, que cheguei a pensar “ganzar-me” com eles. Ainda pensei que os donos de “padarias” mais aperaltadas tomassem uma colher de perfume pela manhã para, quando estas se “abrissem” e deixassem sair algum “artigo” ou mesmo que fosse só para “falar” com “voz” mais ou menos forte, exalassem um odor agradável, dos que dá gosto cheirar. Mas não, nem esses fugiam à regra e estava sempre sob um “stress odorífico” terrível, que me impedia de luzir…

Dos homens tenho muitas queixas, pois eram brutos e porcos. Batiam o tampo com força, sentavam-se de qualquer forma e faziam chichi lá do alto do aro, borrifando-o e “regando” o pavimento em redor, pondo os “cabelos em pé” à senhora Maria, que se fartava de resmungar.

Só de ver os garotos ficava assustada porque batiam com o tampo no aro só para se divertirem, para além de, sempre que faziam as suas necessidades, nunca descarregavam o autoclismo. Então, o cheiro pestilento subia do fundo da sanita e entrava-me pelos poros dentro, até a sra. Maria me salvar quando descobria a marotada.

Sofria muito das “dobradiças” porque havia rabos muito pesados, sendo os piores aqueles que nunca estavam quietos, forçando-me as “articulações” a esforços suplementares. Aliás, classificava os “ditos cujos” pelo tempo de permanência no meu buraco: Uns “faziam visita de médico” pois ainda nem tinham acabado de se sentar e já o “saco” estava despejado, não chegando sequer a aquecer o aro. Em contraste, havia os que ficavam horas seguidas, com tempo para dormir ou ler um livro completo. Por falar em livro, nunca percebi bem a razão de eu induzir à leitura. Mal se alapavam em cima de mim, dava-lhes umas ganas de ler que tudo servia. Até a lista telefónica… Aliás, era um bom local para escrever no Facebook.

Dos meus utilizadores, recordo com muita pena os sofredores. Ficavam a puxar tempos infinitos, sentia-lhes o suor frio a escorrer pelo corpo e via as lágrimas nos olhos enquanto gemiam… E quando saía algo, era duro, tão duro como o granito, mais parecendo que assistia a um parto do que a um ritual diário…

Pelo contrário, outros eram rápidos e disparavam “em esguicho”, atingindo-me quando não dava tempo para se sentarem…

Confesso que tenho saudades de sentir os rabos coladinhos a mim. Gostava muito dos peludos apesar de me fazerem cócegas no aro e darem-me vontade de rir. No entanto, também me davam grande prazer os depilados, macios e suaves qual seda, quase sempre de senhoras mais ou menos jovens.

A sra. Maria era muito minha amiga. Um dia arranjou-me uma capa em tecido grosso e garrido que me dava um grande conforto, em especial nos dias frios. E eu sentia-me bem com aquela capa a aconchegar-me o tampo. Mas foi sol de pouca dura pois o dono da casa, que era dos que “regava” o pavimento ao redor, resmungava e implicava com aquilo dizendo que era “uma mariquice” e não descansou enquanto a senhora não me voltou a despir.

A minha prima foi colocada numa repartição pública. Coitada dela, teve uma vida difícil pois era sempre um a seguir ao outro. Só à noite, depois da limpeza, é que podia descansar para, no dia seguinte, se repetir o massacre. Contou-me que nunca percebeu porque é que muitas pessoas lhe limpavam o aro antes de assentarem o traseiro, havendo até quem o forrasse por completo com papel higiénico. Chegou a pensar que a estavam a embrulhar para enviar de presente a alguém, mas nunca tal aconteceu, tendo ficado no mesmo sítio até lhe darem o meu destino: A reforma.

Quando as dobradiças começaram a dar de si e a tinta a lascar, perdi as ilusões e senti que ia ser descartada. No dia em que o tampo se separou do aro, o dono da casa disse à mulher: “Maria, a tampa da sanita está velha, temos de a substituir e mandar para o lixo”. Vi logo que me iam fazer o mesmo que tinham feito aos pais quando envelheceram e os “despacharam” não sei para onde. Já não foi surpresa quando me “despediram” do lugar que ocupava na sanita há tantos anos, sem uma atenção, sem uma festa de despedida ou agradecimento, e me mandaram para a lixeira, aquilo a que eles vulgarmente chamam de “REFORMA”… Aquilo a que os franceses vulgarmente chamam de “RETRAITE” (RETRETE)…

Pura coincidência… ou talvez não…

A viagem da memória… e o desejo

Numa daquelas noites em que não conseguia entregar-me nos braços de Morfeu, dei comigo numa viagem de regresso à infância através de uma memória desgastada por sete décadas de labor contínuo.

E vi-me na escola de Macieira à cotovelada ao Arnaldo meu companheiro de carteira. Lembrei-me do dia em que eu e vários colegas sacudíamos o cabelo com a mão fazendo cair em cima do tampo da carteira a praga de piolhos que apanhamos ao pegar num saco de serapilheira deixado pelos ciganos num dos acampamentos temporários, quando vinham à procura de porcos ou galinhas mortos por uma qualquer doença e enterrados à menos de três dias, aproveitando-nos para comer.

Nos intervalos jogávamos ao “pica” com os botões surripiados em casa ou arrancados da roupa, ou ao peão para ver quem dava mais “bicadas” nos outros. Eu tinha um feito no torno do senhor Alberto espingardeiro com ponteira aguçada, em aço, e conseguia rachar os outros se lhes acertasse em cheio, ao “lança-lo”. No final das aulas íamos aos ninhos ou à fruta, conforme a época do ano, o que nos obrigava a ter um conhecimento perfeito dos recantos da aldeia para descobrir uns e outros, os ninhos para observar e a fruta para colher (se o dono não visse).

Quase toda a gente andava descalça, de roupa remendada e com pouco que vestir. Eu tinha o privilégio de andar de botas, com sola de um pneu velho que o meu pai arranjara, feitas à mão pelo senhor Pereira da Coutada, o sapateiro da terra, o que não me impedia de apanhar caneladas dos que andavam descalços ao jogar com uma bola feita de trapos e uma meia velha que a minha mãe me dera, no caminho esburacado de Recemonde.

As mulheres lavavam a roupa na “presa” do campo, e cantavam, iam sachar o milho aos lavradores, e cantavam, participavam no trabalho das desfolhadas, sempre a cantar, e faziam muitas outras coisas, a cantar.

Era na mercearia do tio Peixoto que eu via os pedreiros a “matarem o bicho” pela manhã, com um naco de broa e um copo de aguardente, antes de irem a pé para o trabalho, tantas vezes a quilómetros de distância, e onde tinham de estar ao nascer do sol. Sim, porque se trabalhava de “sol a sol”, isto é, do nascer ao pôr do sol.

Na Páscoa, quando as casas levavam uma “barrela”, uma limpeza geral para receber o Senhor, davam-nos uma “pitinha” de pão ou uma regueifa que, enfiada no braço, era motivo para exibição durante todo o dia, como se de ouro se tratasse.

Nesse tempo, Espanha era um país muito distante e se alguém ia para o Brasil, como o Zé, da tia Quina, a despedida era para sempre. Certo é que, a ele, nunca mais o vi.

E estaria aqui ao longo de páginas e páginas a relatar essas memórias dum tempo em que havia tão pouco que, quando conto aos meus filhos, não acreditam, mas onde se sentia a alegria de viver, a solidariedade de quem divide o pouco que tem, a boa vizinhança como proteção, a liberdade em segurança das crianças, o valor do pouco e do simples, o espírito comunitário expresso nos trabalhos coletivos da agricultura – as sachas do milho, as desfolhadas, as vindimas ou as espadeladas, as portas abertas de quem dorme tranquilo e confiante.

Regresso dessa viagem ao passado e vejo-me num presente com ganhos materiais inimagináveis para qualquer miúdo de então. Diria mesmo que a minha geração assistiu a uma transformação profunda da sociedade e a uma evolução tecnológica tão grande, como nenhuma outra viu ou verá. Mas, em contrapartida, há “bens” preciosos que se foram perdendo ao longo da viagem, valores que o dinheiro não consegue comprar…

Hoje temos mais meios materiais, muito mais bens e equipamentos, a maioria deles que nem o próprio Júlio Verne conseguiu prever. O acesso à educação massificou-se, temos um sistema de saúde que, não sendo perfeito, é para todos e relativamente acessível. O parque habitacional não tem comparação e tudo ao nível dos bens materiais mudou para melhor, muito melhor. Se os meus avós me viessem “visitar” e fossem a um qualquer supermercado, ficariam mudos de espanto…

Como a maioria, sou comodista, dado ao consumismo. E até corri atrás da felicidade como se ela estivesse no ter os eletrodomésticos mais sofisticados, nas aparelhagens de som e de imagem ou em equipamentos de comunicação, cada vez mais inovadores, cada vez mais avançados, cada dia mais apelativos, sem me aperceber que são sempre feitos para consumirmos, consumirmos, consumirmos. Ainda que depois fiquem esquecidos num canto da casa, aumentando à tralha inútil como lixo que são.

Mas, sem todos os comodismos de hoje, sem as carradas de bens de consumo que temos à nossa disposição muitos dos quais nem sabemos bem para que servem, sem os meios de comunicação e de transporte que nos fazem encurtar espaços e tempos, gostaria de regressar atrás, não para voltar a ser criança mas para poder reencontrar o espírito da comunidade rural em que vivi, com todos os seus hábitos, tradições, regras e valores, algo que, quem viveu, nunca esquecerá…

E fico dividido entre o comodismo e a emoção.