Passamos um terço das nossas vidas a dormir, o que é essencial para sobrevivermos. E, se a memória não me falha, apesar de ter nascido a berrar, passei a “dormir como uma pedra” por muitos e bons anos. Se havia alguma qualidade boa que eu tinha enquanto jovem era essa, de me deitar, adormecer depressa e só acordar de manhã. E estou a falar do tempo em que na aldeia nos deitávamos às dez horas da noite, já que não havia televisão, não havia rádio nem iluminação pública. Aliás, a maioria das casas não tinha iluminação sequer. Por isso, como não havia nada para ninguém a única opção era ir dormir. No verão, como a noite chegava mais tarde e os vizinhos ficavam cá fora na conversa, a hora da deita era retardada, mas nunca depois das onze.
Quando fui estudar para Coimbra não estranhei a cama e continuei a dormir bem. E para o confirmar, logo na primeira noite de internato os alunos mais velhos quiseram pregar-nos uma partida, a mim e aos outros caloiros, deixando a cama metálica fora dos encaixes pelo que, mal me deitei, a cama caiu desmontada e o colchão ficou no chão com a roupa entalada. Como queria dormir e para não dar oportunidade a gozo, deitei-me ali assim mesmo e adormeci logo de seguida e só ao outro dia de manhã me preocupei em montá-la.
Quando acabei o curso fui estagiar a Angola e se nos primeiros três meses em que permaneci em Luanda dormi no quarto de uma pensão sem razões para que o meu sono pesado se alterasse, quando fui para Malange a comodidade acabou. Passei a dormir no quarto duma casa particular, com a rede mosquiteira a garantir-me a tranquilidade do sono, além dumas pequenas latas com óleo onde estavam enfiadas as quatro pernas metálicas da cama. É que os “percevejos” eram muitos e enquanto uns tentavam subir pelas pernas da cama sem conseguir porque acabavam a boiar no óleo das latas, havia muitos outros que subiam pela parede do quarto, andavam pelo teto até ficarem mesmo em cima da cama e atiravam-se em queda livre para aterrarem sobre “a comida”. Valia-me a rede mosquiteira, que não só os impedia de terem êxito no ataque aéreo, como me protegia ainda do voo picado dos mosquitos que “eram mais que muitos”. Por isso, o meu sono foi-se mantendo repousante e recuperador. Quando tinha de sair para os locais onde o Instituto do Algodão tinha campos experimentais e que me obrigava a ficar fora vários dias, dormia em casas próprias desse organismo, sem grandes condições, mas a rede mosquiteira que fazia questão de levar na bagagem era, quase sempre, garantia duma noite sem “bicharada” a estragar-me a noite de um sono só.
Seguiu-se o serviço militar, na época duro e exigente. E nem as noites passadas nas casernas de cá, nem os cerca de dois anos dormidos em Moçambique em condições precárias me tiraram o sono. A título de exemplo, no primeiro local para onde fomos, em Nantuego, dormia no “depósito dos géneros alimentares”, tendo “por companhia” um cabo quando não estava de serviço, centenas de ratos a passarem por todos os lados e milhões de baratas que faziam um barulho enorme e estranho ao esconderem-se sempre que se acendia a luz. Mas o sono integral mantinha-se. E nem na noite em que um soldado disparou três ou quatro tiros contra um leopardo que rondava perto da rede do aquartelamento com a arma apoiada na janela junto à qual dormia e continuei a dormir sem ter ouvido os estrondos da “caçada”.
As primeiras noites mal dormidas tive-as nos primeiros três meses após o nascimento do meu filho mais velho e até o pediatra detetar a bactéria intestinal que lhe provocava as dores e nos obrigava a dar-lhe colo toda a noite ou a abanar o berço, não por falta de sono, mas por falta de oportunidade para dormir o necessário. Eliminada essa causa, passamos a dormir bem, ele e nós, sem interrupções, insónias ou dores crónicas e eu voltei ao bom registo de “dormir toda a noite”.
Só quando entrei nos “entas” e me apareceu na coluna uma hérnia discal com as dores que só quem as tem ou teve é capaz de imaginar é que, verdadeiramente, passei a sentir o que são “noites malpassadas” e a ressaca que se tem no dia seguinte, com todas as consequências daí resultantes. Para mim passou a fazer sentido o provérbio “dormir é meia mantença”. Aliás, o médico que me diagnosticou hérnia antes mesmo de fazer o exame radiológico, fez-me um aviso em tom solene: “A partir de agora, lembre-se que tem costas”.
E foram cerca de três anos com altos e baixos, crises e bonanças, noites mal dormidas pois nem me conseguia virar na cama tal era a dor, até a eliminarem sem recurso à cirurgia, mas mantendo a “hérnia de estimação”. Aí entrei numa nova fase de sono pois, sem a dor a “moer”, regressei ao regime de “boa noite”, mas sem poder dizer “como uma pedra”. Isso já se fora, provavelmente para sempre …
Daí em diante os anos foram acrescentando maleitas e estas “calhaus no dormir” que ajudaram a perturbar o sono. Depois de andar tempo sem conhecer a razão do mal-estar nas pernas, aumentado pelo calor da cama que me faz passar a noite num “destapa” que me dá frio ou no “tapa” que me volta a fazer calor, descobriram e batizaram esse mal-estar de “síndrome das pernas irrequietas”. E quando há noite de crise, apesar do sono estar lá, não dá para dormir. Ainda posso juntar a isto a tendinite do ombro, cotovelo e mão e as dores de costas que são recorrentes, mais quando abuso nos meus trabalhos de jardineiro e horticultor, além de ressonar muito durante um certo período, que até dava para me acordar a mim próprio.
Sendo o sono muito importante para a saúde física e psíquica de cada um de nós, pois é quando o organismo repara os tecidos, restaura o corpo, repõe energias e regula metabolismos, dou-me por felizardo pois durante algumas décadas usufrui dum sono profundo e único, de que saía “fresco como uma alface” no dizer do nosso povo. E mesmo depois, com alguns “inconvenientes” a perturbá-lo, posso dar-me por feliz se “olhar para o lado” e ver que há muitíssimas pessoas que já nem se queixam porque “dormir” é um castigo de tão mal que passam e sofrem. Só hoje, a Isabel lamentou-se porque o neurologista não lhe encontra causas para os “choques” que sente sempre que se mexe na cama e fazem da noite um martírio. Para a Maria o trabalho acaba por ser um alívio já que quando deitada na cama sente uma dor tal que é como se lhe estivessem a cortar a perna, o que não acontece durante o dia. O Maurício, que é crónico sofredor de insónias há muitos anos, não consegue que elas lhe deem folga e umas pequenas “férias” para descansar a cabeça desse pesadelo que é o não conseguir dormir e apesar da muita medicação a que tem estado sujeito. Além de uma mulher jovem que, disse, nunca soube nem sabe o que será “dormir como uma pedra”, tal a sua dificuldade em ter sonos prolongados e repousantes.
Dizem que “dormir é tão bom que nem dá para acreditar que é de graça”. Ora, sendo assim, não deveríamos ter problemas para dormir, pois já nos basta os que temos para nos levantar …