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Entre “dormir como uma pedra” ou … nada

Passamos um terço das nossas vidas a dormir, o que é essencial para sobrevivermos. E, se a memória não me falha, apesar de ter nascido a berrar, passei a “dormir como uma pedra” por muitos e bons anos. Se havia alguma qualidade boa que eu tinha enquanto jovem era essa, de me deitar, adormecer depressa e só acordar de manhã. E estou a falar do tempo em que na aldeia nos deitávamos às dez horas da noite, já que não havia televisão, não havia rádio nem iluminação pública. Aliás, a maioria das casas não tinha iluminação sequer. Por isso, como não havia nada para ninguém a única opção era ir dormir. No verão, como a noite chegava mais tarde e os vizinhos ficavam cá fora na conversa, a hora da deita era retardada, mas nunca depois das onze.

Quando fui estudar para Coimbra não estranhei a cama e continuei a dormir bem. E para o confirmar, logo na primeira noite de internato os alunos mais velhos quiseram pregar-nos uma partida, a mim e aos outros caloiros, deixando a cama metálica fora dos encaixes pelo que, mal me deitei, a cama caiu desmontada e o colchão ficou no chão com a roupa entalada. Como queria dormir e para não dar oportunidade a gozo, deitei-me ali assim mesmo e adormeci logo de seguida e só ao outro dia de manhã me preocupei em montá-la.

Quando acabei o curso fui estagiar a Angola e se nos primeiros três meses em que permaneci em Luanda dormi no quarto de uma pensão sem razões para que o meu sono pesado se alterasse, quando fui para Malange a comodidade acabou. Passei a dormir no quarto duma casa particular, com a rede mosquiteira a garantir-me a tranquilidade do sono, além dumas pequenas latas com óleo onde estavam enfiadas as quatro pernas metálicas da cama. É que os “percevejos” eram muitos e enquanto uns tentavam subir pelas pernas da cama sem conseguir porque acabavam a boiar no óleo das latas, havia muitos outros que subiam pela parede do quarto, andavam pelo teto até ficarem mesmo em cima da cama e atiravam-se em queda livre para aterrarem sobre “a comida”. Valia-me a rede mosquiteira, que não só os impedia de terem êxito no ataque aéreo, como me protegia ainda do voo picado dos mosquitos que “eram mais que muitos”. Por isso, o meu sono foi-se mantendo repousante e recuperador. Quando tinha de sair para os locais onde o Instituto do Algodão tinha campos experimentais e que me obrigava a ficar fora vários dias, dormia em casas próprias desse organismo, sem grandes condições, mas a rede mosquiteira que fazia questão de levar na bagagem era, quase sempre, garantia duma noite sem “bicharada” a estragar-me a noite de um sono só.

Seguiu-se o serviço militar, na época duro e exigente. E nem as noites passadas nas casernas de cá, nem os cerca de dois anos dormidos em Moçambique em condições precárias me tiraram o sono. A título de exemplo, no primeiro local para onde fomos, em Nantuego, dormia no “depósito dos géneros alimentares”, tendo “por companhia” um cabo quando não estava de serviço, centenas de ratos a passarem por todos os lados e milhões de baratas que faziam um barulho enorme e estranho ao esconderem-se sempre que se acendia a luz. Mas o sono integral mantinha-se. E nem na noite em que um soldado disparou três ou quatro tiros contra um leopardo que rondava perto da rede do aquartelamento com a arma apoiada na janela junto à qual dormia e continuei a dormir sem ter ouvido os estrondos da “caçada”.

As primeiras noites mal dormidas tive-as nos primeiros três meses após o nascimento do meu filho mais velho e até o pediatra detetar a bactéria intestinal que lhe provocava as dores e nos obrigava a dar-lhe colo toda a noite ou a abanar o berço, não por falta de sono, mas por falta de oportunidade para dormir o necessário. Eliminada essa causa, passamos a dormir bem, ele e nós, sem interrupções, insónias ou dores crónicas e eu voltei ao bom registo de “dormir toda a noite”.

Só quando entrei nos “entas” e me apareceu na coluna uma hérnia discal com as dores que só quem as tem ou teve é capaz de imaginar é que, verdadeiramente, passei a sentir o que são “noites malpassadas” e a ressaca que se tem no dia seguinte, com todas as consequências daí resultantes. Para mim passou a fazer sentido o provérbio “dormir é meia mantença”. Aliás, o médico que me diagnosticou hérnia antes mesmo de fazer o exame radiológico, fez-me um aviso em tom solene: “A partir de agora, lembre-se que tem costas”. 

E foram cerca de três anos com altos e baixos, crises e bonanças, noites mal dormidas pois nem me conseguia virar na cama tal era a dor, até a eliminarem sem recurso à cirurgia, mas mantendo a “hérnia de estimação”. Aí entrei numa nova fase de sono pois, sem a dor a “moer”, regressei ao regime de “boa noite”, mas sem poder dizer “como uma pedra”. Isso já se fora, provavelmente para sempre …

Daí em diante os anos foram acrescentando maleitas e estas “calhaus no dormir” que ajudaram a perturbar o sono. Depois de andar tempo sem conhecer a razão do mal-estar nas pernas, aumentado pelo calor da cama que me faz passar a noite num “destapa” que me dá frio ou no “tapa” que me volta a fazer calor, descobriram e batizaram esse mal-estar de “síndrome das pernas irrequietas”. E quando há noite de crise, apesar do sono estar lá, não dá para dormir. Ainda posso juntar a isto a tendinite do ombro, cotovelo e mão e as dores de costas que são recorrentes, mais quando abuso nos meus trabalhos de jardineiro e horticultor, além de ressonar muito durante um certo período, que até dava para me acordar a mim próprio.

Sendo o sono muito importante para a saúde física e psíquica de cada um de nós, pois é quando o organismo repara os tecidos, restaura o corpo, repõe energias e regula metabolismos, dou-me por felizardo pois durante algumas décadas usufrui dum sono profundo e único, de que saía “fresco como uma alface” no dizer do nosso povo. E mesmo depois, com alguns “inconvenientes” a perturbá-lo, posso dar-me por feliz se “olhar para o lado” e ver que há muitíssimas pessoas que já nem se queixam porque “dormir” é um castigo de tão mal que passam e sofrem. Só hoje, a Isabel lamentou-se porque o neurologista não lhe encontra causas para os “choques” que sente sempre que se mexe na cama e fazem da noite um martírio. Para a Maria o trabalho acaba por ser um alívio já que quando deitada na cama sente uma dor tal que é como se lhe estivessem a cortar a perna, o que não acontece durante o dia. O Maurício, que é crónico sofredor de insónias há muitos anos, não consegue que elas lhe deem folga e umas pequenas “férias” para descansar a cabeça desse pesadelo que é o não conseguir dormir e apesar da muita medicação a que tem estado sujeito. Além de uma mulher jovem que, disse, nunca soube nem sabe o que será “dormir como uma pedra”, tal a sua dificuldade em ter sonos prolongados e repousantes.

Dizem que “dormir é tão bom que nem dá para acreditar que é de graça”. Ora, sendo assim, não deveríamos ter problemas para dormir, pois já nos basta os que temos para nos levantar …   

7 palmos de terra ou pira funerária?

Como diz o ditado, a morte é parte incontornável e única certeza que temos da vida. Por si só, já é um assunto cheio de mistérios e tabus que muita gente nem sequer quer discutir, embora todos saibam que é aquilo que os espera. A sociedade leva-nos a evitar falar sobre esse processo e a substituir a palavra “morte” por eufemismos. Deixamos de falar sobre a “morte” e de usar a palavra, trocando-a por outras similares. Em vez de “morto” dizemos “falecido”, o quando “está a morrer” vira a “muito doente” e o “morreu” trocamos por “partiu”, “faleceu”, “finou-se” ou “apagou-se”. A morte até é tão democrática, chega a todos por igual não deixando ninguém de fora, ora um pouco mais cedo, ora um pouco mais tarde. Para a maioria das pessoas é um tabu de que se não pode falar como se, com isso, a possamos atrair. A verdade é que todos nós deveríamos pensar nela com tranquilidade. Perdemos a imensa sabedoria humana de aceitar a morte de modo natural. Claro que já ouvi algo como: “Para quê preocupar-me com a morte se tenho tantos problemas para resolver primeiro em vida”? Já percebemos que temos menos medo da morte, mas muito mais de pensar nela.

José Barbosa da Mota era uma figura da minha infância que, traído pela mulher num tempo em que traição era caso sério, deixou a terra no Alto Minho e veio parar à minha aldeia onde sobrevivia fazendo biscates. Com muita antecedência comprou o caixão que tinha ao alto atrás da porta do palheiro onde vivia. Ele dizia-se “estar preparado”. 

As funerárias anunciam funerais em jazigos, sepulturas ou cremações e até funerais sociais, com serviço completo do tipo “tudo incluído”. Não sei se na lista há o serviço de bar. Além do mais, também vendem serviços para melhorar a apresentação utilizando a tanatoestética e a tanatopraxia, conferindo bom aspeto ao morto, se é precisa uma boa aparência para ser enterrado e comido. Ainda têm para oferecer o serviço de música no velório e funeral e os habituais arranjos florais.

A tradição, especialmente em zonas rurais como a nossa, envolve um caixão e uma sepultura, que alguns substituem investindo num jazigo mais ou menos pomposo conforme a bolsa e a vaidade, porque até na morte existe. Nalguns casos, a escolha do jazigo ou até da sepultura com prateleiras acontece pelo medo de “ficar enterrado”. Presumo que seja mais pelo receio de sentir “falta de ar” do que por ter medo de vingança da bicharada. É que se diz por aí que eles nos “comem” para se vingarem dos inúmeros seres vivos que matamos enquanto andamos por cá, tantas vezes sem necessidade … 

Mas, como é vulgar dizer-se, a tradição já não é o que era e os centros urbanos foram os primeiros a romper com ela também neste caso. E a ideia de enterrar o corpo perde força a favor da cremação. Quem diria! Durante anos andaram-nos a acenar com um inferno feito de labaredas imensas para onde seriam atirados os pecadores e agora, pecadores ou não, aceitam como ótima opção ser incinerado a mais de mil graus de temperatura, numa pira funerária moderna e eficaz …

O primeiro crematório remonta a 1925, mas viria a ser encerrado, a meu ver por “falta de clientela com medo de chamuscar o rabo”. Mas as voltas da vida e da sociedade fizeram com que a “falta de espaço nos cerca de 5.000 cemitérios”, a crescente dificuldade das pessoas em fazerem a “visitação aos cemitérios”, a “fácil acomodação do pote das cinzas em casa” e a maior facilidade no “despacho do assunto”, têm feito com que os “clientes da cremação” aumentem de dia para dia, sendo igualmente uma opção em crescimento mesmo nas zonas rurais como é a nossa.

Até 1963, para a maioria dos católicos a cremação não era opção a ter em conta, mas a partir daí foi autorizada pelo Papa João VI. Porém, foi necessário que a sociedade e as mentalidades se alterassem pouco a pouco para o processo vir a ser aceite, embora há algumas religiões que continuam a não o admitir. Mas ainda nos dias de hoje o enterro é a cerimónia de despedida mais popular e, à partida, tida por ser … a mais barata. Acontece com as famílias que têm jazigo ou sepultura, o que simplifica logo o processo. Caso contrário, para quem tiver de o comprar e lhe somar as lápides, flores e visitações ao longo de anos, a conta final pode ser outra.

A opção pelo enterro é uma decisão a ter em conta, especialmente quando a família quer ter um local para visitar quem morre e onde ir prestar homenagem. E as visitas são importantes para muita gente, embora uma maçada para muitas outras. Além disso, o enterro tem certo valor simbólico e é tradição. E a tradição e a questão religiosa têm muito peso, principalmente em certas datas.

Claro que a cremação tem vindo a ganhar clientes e, como tem custo superior, até já existem “planos funerários de financiamento” onde o slogan publicitário deveria ser: “Morra e pague às prestações, que nós o cremamos a pronto”. A família pode guardar as cinzas em casa sem necessidade de ir ao cemitério, ter jazigo ou sepultura, colocar flores, fazer manutenções e pagar taxas. E, se a vontade do falecido for que as suas cinzas sejam espalhadas nalgum lugar escolhido por ele, onde repousará conforme o seu desejo, terminam para sempre as preocupações da família no momento em que elas são espalhadas ao acaso pelo vento.

Fazemos parte da natureza como qualquer outro ser vivo e devemos voltar a ela quando morrermos tal como uma árvore que cai com o vento e se desintegra lentamente, libertando os nutrientes que a compõem e irão alimentar e dar vida a novas vidas. Por isso gostaria de ver o meu corpo devolvido à terra, não num dos nossos cemitérios onde todo o tipo de jazigos e sepulturas se atropelam como uma feira de vaidades, mas num tipo americano feito parque onde cada um tem uma cruz simples e uma placa identificadora, porque ali ninguém tem que ser maior que ninguém. E assim, à sombra duma árvore, o corpo seria devolvido à natureza, entregue a biliões de pequenos seres que o transformariam em elementos básicos da vida, num benefício para o ecossistema envolvente com reciclagem completa a favor de outros seres vivos, o que não acontece com a cremação.

De uma forma ou de outra, temos de nos dar por felizes se a morte, quando chegar, só nos puder roubar a vida …  

Só estamos bem “do outro lado da porta”…

Na minha imaginação sempre que ouço falar em “viúva” ainda vejo uma mulher completamente vestida de negro, com rendas a esconder-lhe o rosto e um grande crucifixo ao peito. Além disso, era uma mulher condenada à “solidão eterna”, como se tivesse também “morrido” com o falecido marido. Nessa época, quando um dia perguntaram a uma mulher idosa que perdera o marido há muitos anos qual a razão por que continuava a manter o “luto cerrado” ela respondeu com toda a naturalidade: “Esta é a forma que tenho de manter o sentimento, respeito e saudade pelo meu homem”. No caso de ser o homem viúvo, apesar de ter um pouco mais de liberdade, não deixava de andar enlutado e havia muita dificuldade em ter novo relacionamento. Recordo que na aldeia onde cresci, a rapaziada “tocava os cornos” na noite da véspera do casamento de algum viúvo, o que era coisa rara. Mas essas imagens são duma infância distante, tendo a realidade mudado pouco a pouco com o tempo, a moral, as mentalidades e mesmo os novos conceitos de relacionamento. O luto foi encurtando tal como o comprimento dos vestidos e o preto cedo deu lugar à cor. Só nas Caxinas, Vila do Conde, as mulheres a quem o mar roubou os seus homens, se mantêm figuras vivas de um negro absoluto e, para a maioria, a viuvez, como o casamento, é para o resto da vida. Até as leis que impunham ao viúvo um “tempo de jejum e abstinência” para novo casamento, espera essa que era de 300 dias para as mulheres e 180 dias nos homens, mudaram e, com isso, desapareceu em 2019 o período de espera, sinal de novo tempo e novas formas de ver a sociedade.

A verdade é que um viúvo ou viúva não morre com o cônjugue e nem sequer tem de ficar condenado a viver sozinho o resto dos seus dias, sem alguém com quem compartilhar as refeições além do sofá, as alegrias e tristezas, os projetos e preocupações, quem comparticipe nas despesas da vida e nas dificuldades do dia a dia e de dar satisfação aos impulsos sexuais se ainda for o caso, sem ter de recorrer a processos alternativos. A sociedade em geral já reconhece isso, dá aval e encara com naturalidade o direito de cada um refazer a sua vida, mas há demasiadas vezes “pedregulhos no caminho”, gente que acha saber qual deve ser a duração do processo de luto para alguém que perdeu o seu par como se tivesse o direito de se intrometer nos sentimentos e na vida desse alguém. 

O processo de luto é variável conforme a pessoa, mas é habitual durar entre 6 meses e um ano. A partir do momento que o viúvo faz o luto pode passar à fase seguinte, isto é, encontrar uma nova experiência amorosa. Já Freud dizia que “resolver o luto é voltar a amar”.

Normalmente o que mais inibe as viúvas são os filhos. As que são mães de jovens adolescentes têm medo de meter outro homem em casa. Por isso tendem a criá-los primeiro antes de apostar no novo relacionamento. Mas, seja homem ou mulher, muito mais vezes do que podemos imaginar têm de estar preparados para a reação negativa de um ou mais filhos quando dá sinais, ainda que ligeiros, de querer conhecer alguém com eventual intenção de um futuro relacionamento. É que uma não aceitação poderá acontecer com filhos de todas as idades, credos e fatores sociais, culturais e económicos, pois há aspetos emocionais e financeiros envolvidos para aceitar a nova namorada do pai, o companheiro da mãe. Há filhos que têm medo de “perder” também o pai (ou a mãe) para a pessoa com quem se está a relacionar, deixando de ter a sua atenção. Por vezes invocam a lembrança da mãe (ou do pai) que morreu, como se nova vida amorosa seja motivo para esquecer de vez a sua memória.

Os filhos adultos são mais racionais e pensam muito na parte financeira, no possível aproveitamento de alguém para enganar e tirar partido da situação. Claro que estão a pensar mais neles do que no pai (ou mãe), pois não querem que o património voe e vá parar às mãos de qualquer oportunista de “falinhas mansas”. Como o homem é muitíssimo mais pateta, pois procura sempre mulher que “o trate bem”, “lhe aqueça os pés” e “tome conta da casa”, é normal ser facilmente “esmifrado”. Ainda esta manhã a senhora “Maria” me dizia que “os homens são uns bananas que só pensam em mimos, sopas e descanso”, enquanto as mulheres são muitas vezes “interesseiras e calculistas”. E, como conhece bem o “mercado das viúvas” que “andam à caça”, diz que uma maioria tem sempre em mente como estratégia “ir sacando da vítima” todo o tipo de “contributos”, competindo entre elas para ver quem mais consegue. Contou alguns casos concretos em que se permitem falar à mesa dos cafés para provocar as invejas do costume. Dizia uma, exibindo um anel à “amiga e concorrente”: “De onde veio este virão ainda muitos mais”. E não se inibem de enumerar os vestidos, sapatos, botas, eletrodomésticos, móveis, quando não carros ou apartamentos, conquistados à custa desse “jeitinho” especial a que os homens se submetem.

Um novo relacionamento de alguém que enviuvou não implica casamento e, em muitos casos, cada um continua a viver na sua casa, mantendo a independência necessária para uma eventual retirada estratégica a qualquer momento. Como hoje tudo é tão transitório, é melhor estar prevenido …

Para quem perdeu o conjugue e quer voltar a “meter-se na boca do lobo”, isto é, “em alhadas”, se tiver filhos deve informá-los da sua intenção sem se sujeitar a qualquer pedido de autorização, o que seria absurdo. A responsabilidade da “asneira” tem de ser assumida por quem se quer meter nela, sem a querer distribuir por gente inocente no caso de correr mal. E, provavelmente, vai. Mas a vida é isso mesmo: Queremos estar sempre do outro lado da porta … 

Mordomias? Tê-las e manter-las é um péssimo exemplo…

Contava Simon Sinek, escritor e comunicador inglês, que um ex-Subsecretário da Defesa fazia o seu discurso numa Conferência perante mais de mil pessoas. Depois de começar a partilhar o que se propusera ali dizer, fez uma pausa para beber um gole de café do copo de plástico que levara consigo para o palco. Tomou outro gole de café, olhou para o copo e sorriu. “Sabem”, disse ele interrompendo o seu discurso, “eu estive aqui no ano passado e falei nesta conferência e neste palco. Mas no ano passado ainda era Subsecretário”, disse ele. “Voei para cá em classe executiva e quando aterrei havia alguém à minha espera no aeroporto para me levar ao hotel. Ao chegar lá, já alguém havia feito o meu chek-in no hotel, pelo que me entregaram a chave e acompanharam até ao quarto. Quando desci na manhã seguinte estava uma pessoa à espera para me trazer para este auditório onde estamos agora. Entrei pelos bastidores e fui conduzido até uma sala verde onde me serviram café numa linda chávena de porcelana”. E continuou: “Este ano estou aqui a discursar, mas já não sou Subsecretário. Vim para cá em classe económica e ontem, quando cheguei ao aeroporto, não estava ninguém à minha espera. Apanhei um táxi para o hotel, fiz o chek-in e fui para o quarto. Pela manhã desci e apanhei outro táxi para aqui. Entrei pela porta principal e procurei o caminho para os bastidores. Quando lá cheguei, perguntei a um elemento da organização se havia café. Apontou para a máquina de café numa mesa do canto e fui eu que lá fui tirar o café, servido neste copo de plástico que estou a segurar” disse, levantando o copo para o mostrar ao público. “E a conclusão a que cheguei”, continuou ele, “é que a chávena de porcelana que me deram no ano passado … nunca foi para mim. Foi para o cargo que ocupava porque eu só mereço (ou tenho direito) a um copo de plástico”.

“Esta é a lição mais importante que vos posso transmitir”, disse. “À medida que vocês ganham fama, fortuna e posições, as pessoas vão tratar-vos bem, vão abrir-vos a porta, servir-vos café sem que precisem de pedir. Todas as vantagens e benefícios que possam obter pelo estatuto ou posição que têm, devem aceitar e usufruir porque não há mal nisso. Sejam gratos, mas tenham em mente que não vos são destinadas. São sempre destinados ao cargo ou posição que vocês ocupam. E, quando deixarem de ocupar esse cargo, o que vai acontecer mais dia menos dia, eles vão dar a chávena de porcelana à pessoa que vos substituir, porque aquilo que vocês merecem é só … um copo de plástico”.

A lição que este antigo Subsecretário contou durante o discurso serve para todos nós, mas especialmente para aqueles que, por nomeação ou eleição chegam a certos lugares de destaque na sociedade sejam eles quais forem, para não se deixarem iludir ou deslumbrar pelo “poleiro” assumindo posturas arrogantes de quem está convicto “ser o maior”. Contando o que aconteceu consigo, o palestrante relembrou, e bem, que as tais mordomias, benesses e atenções concedidas aos chefes, detentores de cargos políticos, financeiros, institucionais e outros, são meramente transitórias e atribuídas à pessoa somente enquanto ocupa essa posição. Não que as vénias, regalias e mordomias sejam fictícias ou fingidas ou não sejam merecidas. Não. Fazem parte do que é convencionado e, independentemente de serem suficientes ou desmedidas, quem as presta cumpre um guião estabelecido, seja quem for a pessoa que no momento ocupa o cargo e que por isso a elas tem direito.

Ao trazer aqui esta parte do discurso do ex-Subsecretário inglês, lembrei-me também duma entrevista interessante de outro político pouco conhecido na “nossa praça”, mas que deveria servir de farol e exemplo para a nossa “democracia” e, em especial, a todos os portugueses, pelo entendimento que ele e as pessoas do seu país têm do tipo de mordomias que lhes são devidas, se comparadas com as benesses que os políticos de países mais pobres como o nosso atribuíram a si mesmos sem qualquer pudor “democrático”.      

Ingvar Carlsson é reformado e vive num andar térreo de 82 m2 de um condomínio popular na Suécia, com uma sala atolada de livros e recordações, o escritório modesto, um quarto de dormir simples e uma cozinha junto do hall de entrada. Ali não há máquinas de lavar roupa porque a lavandaria é comunitária, sendo gerida por todos os moradores do condomínio. Também não há empregados na casa. É o próprio Carlsson que faz as tarefas domésticas com a mulher, como cozinhar, lavar e passara ferro, além de limpar a neve da entrada. Ainda hoje usa o autocarro, meio de transporte que sempre usou quando ia para o seu trabalho. E o que tem isto de especial? É que Carlsson foi várias vezes ministro da Suécia e duas vezes primeiro-ministro, havendo participado nas decisões que desenvolveram a Suécia e o seu estado de bem-estar social, tendo-a levado de país pobre e desigual a um dos países mais ricos e igualitários do mundo. Hoje continua a viver no mesmo apartamento em que vivia antes de ser ministro. Questionado porque não tem direito a carro, motorista, guarda-costas e a outras mordomias como em muitos outros países mais pobres, ele sorri e diz: “Um político deve praticar o que prega. Não se pode fazer belos discursos, mas usar o carro presidencial, pois isso afeta a confiança dos cidadãos nos políticos e no próprio sistema político e tem sérias consequências para a democracia. A Suécia trata os seus políticos como qualquer outro cidadão”. Ele diz que não tem qualquer tipo de privilégio. Tem apenas a sua pensão de reforma como todos os outros trabalhadores. “Eu represento os cidadãos e não tenho nenhum interesse nem nenhum direito de viver uma vida de luxo como político. É que a construção de uma democracia ética é responsabilidade de todos. A democracia é o melhor sistema político, mas cabe-nos a responsabilidade de dar o exemplo”. Para ele que teve uma vida de serviço, “a participação política não é um caminho glamoroso, mas só assim é possível construir uma sociedade democrática”.

Dizia Maquiavel que “será feliz aquele que souber acomodar-se com o seu tempo e infeliz aquele que não proceder de acordo com ele”.