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Filhos e netos, herdeiros ou “abutres”…

Parecia a cena de um filme dramático, mas foi real e aconteceu cá no concelho. O caixão com um homem de idade avançada estava na igreja enquanto decorria a missa de sufrágio, quando um grande barulho vindo do exterior quebrou a tranquilidade da cerimónia. A senhora Maria saiu para ver a causa do tumulto e encontrou os filhos e netos do falecido, dentro do cemitério e junto à cova aberta para receber o caixão, “engalfinhados” e “à batatada”, proferindo entre si todo o tipo de insultos. Ficou “especada” a ver o triste espetáculo da família e, na sua inocência, até chegou a pensar que deviam estar a escolher entre eles um “substituto” para ocupar o “lugar” do morto. Mas não, as razões eram as de sempre: Os bens materiais. Ainda o corpo do velhinho não estava enterrado e já os “abutres” disputavam os restos, sem qualquer respeito por aquele que partira. A senhora Maria regressou à igreja revoltada, enojada…

Filhos e netos, já para não falar noutros colaterais, transformam-se demasiadas vezes de familiares e herdeiros naturais em abutres vorazes, gananciosos e insatisfeitos, pouco preocupados com o “naco de carne” que lhes foi parar ao “bico” mas muito mais com aquele que os outros levam. Nessa insatisfação, parece-lhes (quase) sempre que aquilo que vão “abichar” não é nada se comparado com o que lhes vai fugir das mãos. Daí que, tantas e tantas partilhas de heranças acabam nos tribunais, fazendo com que os profissionais da justiça esfreguem as mãos de contentes pois quanto maior é a contenda maior é a fatia que lhes cabe, dando razão de ser à velha história da vaca disputada por dois homens em tribunal mas os seus advogados achavam que, afinal, lhes pertencia a eles.

No entanto, antes de chegarem à justiça, há os que levam a disputa “à letra” e, pouco interessados em “receber”, começam por distribuir murros a torto e a direito, como se essa fosse a forma mais expedita de resolver a partilha. E ás vezes até partem… alguns dentes.

Geralmente temos a tentação de pensar que as disputas nas partilhas só ocorrem em determinadas classes sociais mas tal não corresponde à verdade. Se uns simples brincos, único bem deixado por uma senhora, foram motivo de uma cena de pugilato entre os filhos na tentativa de “conquistar” o direito à sua posse, a divisão de legados com imensas propriedades tem sido motivo para autênticas batalhas judiciais que se arrastam ao longo de anos e anos, “derretendo” laços de família, tempo e fortunas em juristas, tribunais, avaliadores e todo o tipo de “armas de arremesso”. Rejeita-se a sabedoria popular de “que mais vale um mau acordo do que uma boa demanda”. Também se costuma dizer que, “no tribunal, aquele que perde fica nu mas, o que ganha, só sai com a camisa”. Ora, tudo isso se esquece quando a ganância se sobrepõe ao bom senso…

Um dia solicitaram-me a avaliação das propriedades que faziam parte da herança de uma conceituada família da região. Eram várias quintas, com numerosos prédios rústicos e urbanos. O motivo da avaliação não tinha a ver com a partilha propriamente dita. Essa, apesar de se ter arrastado no tribunal durante vários anos, já estava resolvida. A avaliação era somente para a contestação que decorria no tribunal da “conta” apresentada pelo advogado de um dos herdeiros, tal o seu montante… Ao que parece, queria ser “mais herdeiro” do que propriamente um prestador de serviços…

Há aqueles para quem qualquer bem, mesmo que ridículo, serve como motivo de disputa e de guerras sem fim, mesmo com razões infundadas e sem qualquer suporte legal. Mais ainda, acham que quanto maior “chinfrim” fizerem mais perto ficam de conseguirem os seus objetivos, como se a razão fosse diretamente proporcional à altura da gritaria. Numa freguesia cá do burgo, trava-se uma dessas “guerrinhas” pelo direito a uma “propriedade” para a qual todos vão mas ninguém tem pressa de ir: Uma sepultura. Ali está enterrado o homem que a comprou e alguns dos seus filhos, sem que a “propriedade” tivesse entrado em partilhas pelo que, agora, são mais de seis dezenas de herdeiros. Uma das netas (e herdeira) que vive relativamente perto, enfeita regularmente a campa com flores em homenagem à irmã que partiu antes do tempo e ali foi sepultada. Mas, na tentativa de a forçar a renunciar ao seu direito de herdeira, outra neta “limpa” as flores, quando não a jarra, para além da gritaria que faz quando a vê no cemitério, em especial se tiver “plateia”. Tudo, por uma sepultura… Alguém com “morada aberta”, que consegue estabelecer “ligação” aos espíritos dos que ali estão enterrados, soube que se reuniram em plenário e decidiram as ações a tomar para acabar com tanto “ruído”, até porque lhes foi prometido, em letras gravadas na pedra, que teriam “eterno descanso”, “descansariam em paz” e outras coisas do género. Mas há gente que não respeita o prometido, nem mesmo na última “morada”… “Marchamos” desta vida a pensar que deixamos uma herança mas, em vez disso, quantos não deixam “uma carga de trabalhos”, motivo para virar irmãos contra irmãos, família contra família, cegos pela ganância insatisfeita que deixa vir ao de cima o que de pior há no ser humano.

Será que a dignidade com que morrem os animais se deve ao facto de não terem nada para deixar?

A roupa usada e as contradições…

Estava a separar algumas peças de roupa quando me lembrei do que aconteceu à minha mãe: Preocupada com a situação de pobreza de uma família que morava mesmo ao lado de sua casa, juntou algumas roupas e foi lá entrega-las, tendo um certo cuidado prévio com elas. Quando ao outro dia foi depositar o lixo no contentor encontrou no fundo tudo o que havia oferecido…

Este acontecimento não me é estranho tal como o não é para muita gente que muitas vezes não sabe o que fazer à roupa usada, por dificuldade em encontrar quem precise e queira (são precisas as duas condições). E, muitas vezes, acabam por ser aproveitadas por pessoas que nem são necessitadas mas que não têm preconceitos nem vaidades estúpidas, sinais crónicos de uma pobreza bem maior.

Quando eu não estava na escola primária, usufruía da natureza em pleno, aproveitando os seus tempos e os seus ciclos fossem eles da fruta, dos ninhos, da pesca ou dos banhos no rio Sousa. A roupa é que pagava a fatura, sendo frequente um rasgão nas calças ou na camisola conseguido ao subir a um pinheiro (melhor, ao descer), ao saltar uma vedação ou a jogar à bola. E, como só tinha um ou dois pares de calças, a minha mãe punha-lhe um remendo e continuavam a ser usadas no mesmo dia. Mas havia quem nem remendos pudesse pôr, pelo que tinha de andar com elas rotas.

Num bonito dia de Páscoa “estriei” um fato, nos meus dezasseis anos acabados de fazer. Sim, porque só se “estriava” roupa na Páscoa ou no Natal e não era todos os anos. De tarde, depois de recebermos o “compasso”, aproveitei a boa vontade do meu irmão António e fui dar uma volta na sua motorizada, partindo sem rumo definido pois o que interessava era gozar tal privilégio. O acaso levou-me de Lousada a Freamunde e Paços de Ferreira até que, numa curva com areia na saída para Santo Tirso, derrapei e fui parar ao chão por “aselhice”, acabando ferido no joelho, ferido no orgulho e com um rasgão nas calças do fato acabado de “estriar”. E agora?

Voltei logo para casa com “o rabinho entre as pernas” mas recebi a compreensão da minha mãe. Ao contemplar aquele rasgão em L no joelho das calças, ficamos a conversar sobre a melhor forma de as remendar com o mínimo de visibilidade, pois um remendo vulgar ficaria mal no fato. Como nesse tempo a regra era comprar primeiro o tecido e mandar fazer o fato ao alfaiate, “por medida” (ainda não se inventara o pronto a vestir), as sobras de tecido eram guardadas para eventualidades como aquela. Daí que, quando a mãe tirou de uma gaveta alguns pedaços de tecido igual, procurei um que fosse maior que o rasgão e coloquei-o sobre este, enquanto dava voltas à cabeça como havia de resolver o problema sem deixar “rasto”. Reparei que o tecido era feito com os fios cruzados na perpendicular de forma muito vincada e então ocorreu-me uma ideia que quis logo pôr em prática. Com o acordo da mãe, do bocado de tecido que escolhera cortei um quadrado cerca de dez centímetros maior do que os limites máximos do rasgão. Depois, centrei e fixei esse quadrado de pano sobre o buraco das calças e, dos lados esquerdo e direito, fui retirando os fios verticais, um a um, deixando somente os horizontais até ficarem com oito centímetros, de um lado e do outro. Fiz o mesmo na parte de cima e de baixo do quadrado, retirando aí os fios horizontais, deixando os verticais também com oito centímetros. Com isso, fiquei com um quadrado de tecido central suficiente para tapar o rasgão, que mantive fixo sobre este com alfinetes, e com fios do próprio tecido para cima, para baixo e para os dois lados. A partir daí, foi só uma questão de paciência. Com a ajuda de uma agulha, enfiei uma ponta de fio nesta e entrelacei-o no tecido das calças a partir do quadrado intacto do remendo, seguindo as linhas dos fios do tecido nos quatro lados do quadrado, fazendo desaparecer o rasgão por completo e sem que se notasse o remendo. Minto, se virasse as calças ao contrário, pelo interior “via-se o acidente”. Acabara de “cerzir” umas calças… Mais tarde vim a descobrir que, afinal, já havia quem se dedicasse a tal trabalho, pelo que, afinal, “inventei” algo que já estava inventado…

Nesses tempos difíceis, o importante era ter alguma coisa para vestir, velho ou novo, remendado ou não, porque não nos podíamos dar ao luxo de rejeitar roupa. Lembro-me que, nos dias de chuva, era com um saco de serapilheira grossa virado para dentro de um dos lados que se improvisava uma capa de proteção. E nem todos tinham um saco…

Com a industrialização, criou-se e distribuiu-se riqueza que permitiu o acesso generalizado aos bens de consumo, nomeadamente à roupa. E, à medida que nos fomos consolidando como sociedade de consumo, a indústria, através do marketing (apoiado na “ditadura da moda”) e com a ajuda do crédito fácil, tornou-nos consumidores desenfreados e obsessivos, de tal forma que já não se sabe onde guardar tantos “trapos”. E, mesmo assim, ainda há quem olhe para os roupeiros cheios em casa e tenha o “desplante” de se lamentar dizendo que “não tenho nada para vestir”…

Apesar da crise ter obrigado a inverter a mentalidade sobre roupa já usada por outros, ainda existe gente necessitada que a recusa, tal como o vizinho da minha mãe, talvez com o receio de apanhar alguma “doença contagiosa” ou “ter de a despir na praça pública”. Serão preconceitos, vergonha ou complexos? Não concebo tal… Diz o povo que “quem tem vergonha passa mal”. A meu ver, o problema é do seu estado de apresentação. É que, estando impecável e sem rasgões, … está desatualizada. Para ser aceitável, as calças devem estar… rotas. O que antes era sinal de pobreza, agora virou… moda. Como as coisas mudam!!!

Há quem precise mas, “empinam” a cabeça e dizem com desdém: “Eu, aceitar roupa usada”? Desses, diz-se que “têm barriga de pobre, mas boca de rico”…