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Contra as leis da natureza e da vida

Steve Fugate perdeu os seus dois filhos, os seus únicos filhos, perdeu tudo. Sem mais nada para perder, sem mais nada para o manter onde vivia, para aplacar a dor terrível da perda decidiu fazer-se à estrada, carregando às costas a “sua casa” e um cartaz onde se podia ler em grandes letras, LOVE LIFE. Pelo caminho partilha a mensagem, conforta outros sofredores e sobrevive, porque é aquilo que se faz quando se perdem os filhos. É um sobrevivente que vai deixando mensagens, umas que ajudam a perceber o que realmente importa, outras que emocionam a alma. E Steve caminha, não se sabe até quando, nem sequer ele sabe. Diz que “só vai parar quando conseguir o que quer”. Mas “só sabe o que quer quando o conseguir”. Até lá, vai andando, tendo já feito mais de trinta mil milhas através da América, pois acha que é o que resta fazer a quem perdeu os seus dois únicos filhos, para esmagar a dor, partilhando-a. E vai andando, pois “há feridas que nunca curam, apenas se esquecem de doer”…

Nós, pais, pensamos sempre que a nossa principal missão neste mundo é cuidar dos filhos e das suas vidas, até à exaustão, protegê-los dos perigos, sejam eles quais forem. Mas tantas vezes somos impotentes e não conseguimos. E são tantos os perigos com que se confrontam nos dias de hoje…

A morte faz parte das leis da natureza e não escolhe idade, sexo, classe social ou religião. É a única certeza da vida. E, como exatidão, não dá outras chances pois todos os caminhos conduzem ao mesmo fim. Mesmo assim, sabendo dessa certeza que não tem alternativa, teimamos em contar razões vezes sem conta, como à procura de um culpado ou de uma desculpa.

Estive há dias com um pai que velava o último sono de um dos seus filhos, vergado pela dor e por aquele sofrimento que só os pais são capazes de sentir. Mas as palavras não me saíam. O que se pode dizer a um pai ou uma mãe que sepulta seu filho? Não há nada, mas mesmo nada, que se diga e faça aliviar a sua dor. Só nos resta pedir a Deus que lhe dê forças para a suportar e que possa seguir em frente, mesmo sem um pedaço do seu coração até porque, o resto, são palavras de circunstância, palavras de ocasião que não passam disso, que nem se sabem dizer.

Foi ele que, entre lágrimas, me disse: “Nenhum pai deveria enterrar um filho”. Era a expressão de um sentimento que estava a viver, inquestionável até porque, um pai enterrar o filho é contra as leis da natureza, que não devia ser vivido por ninguém.

Mas não é. Ao longo dos tempos quantos não enterraram os seus, ora bebés, crianças, adolescentes ou já adultos e pais? Minha avó paterna viu enterrar os seus três filhos, sobrevivendo a todos. Já meus pais perderam de forma fulminante dois dos seus quatro filhos, sem que lhes fosse dado sequer tempo para despedidas. Em geral, é um drama transversal à humanidade.

Quando era pequeno morriam muitas crianças, que iam parar ao “cemitério dos anjinhos”. Com o passar dos anos, a melhoria das condições higiénicas, sanitárias, alimentares e de saúde, fizeram com que desaparecesse esse recanto dos cemitérios. Mas, se foi reduzida drasticamente a mortalidade infantil, apareceram novas “doenças mortais” (entre as quais as drogas e os acidentes como grandes flagelos do nosso tempo) para ceifar jovens e menos jovens, filhos de quem não devia viver esse drama.

Um homem muito rico pediu a um monge que escrevesse algo pela continuidade da prosperidade da sua família. O monge pediu uma folha de papel e escreveu: “Pai morre, filho morre, neto morre”. O homem rico ficou indignado e ofendido dizendo “pedi-te para escrever algo pela nossa felicidade, porque fizeste uma brincadeira destas?” “Não pretendi fazer brincadeira” explicou o monge. “Se antes da sua morte seu filho morrer, isso iria magoá-lo imenso. Se seu neto se fosse antes de seu filho, tanto você como ele ficariam arrasados. Mas se sua família, de geração em geração, morrer na ordem que eu escrevi, isso será o curso mais natural da vida. Essa é a verdadeira riqueza”.

Os pais choram a perda de seus filhos e tentam suportar a dor que nenhum remédio é capaz de curar. Têm de encontrar forças para continuar a viver sem um pedaço de si mesmos, sendo verdade que é sempre muito mais fácil dizê-lo que fazê-lo. Como dizia alguém, “não somos os primeiros pais a perder um filho, mas somos os primeiros pais a perder um filho nosso, e isso faz toda a diferença”.

Poderia escrever aqui o que acho que é perder um filho. Mas seria só o que acho, não o que vivi, porque não consigo imaginar-me estar na pele de um pai assim.

Para sublimar o sentimento de perda há que valorizar tudo aquilo de que se usufruiu durante a vida do filho que nos deixou, desde o seu nascimento, relembrando os momentos de alegria e outros que nos marcaram, os “frutos” que deixaram durante o tempo que nos foram “emprestados”. Emprestados? Sim, como diz um pequeno texto que a Teresa me ofereceu há dias e que merece a nossa meditação:

“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isso mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo o tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo!”

Na paz, os filhos enterram seus pais. Na guerra, os pais enterram seus filhos. Só que, não estamos em guerra para que “os jovens pereçam e os velhos permaneçam”…

Profissão? A melhor do mundo…

Sonhei que o parlamento aprovou, por unanimidade, a legalização da atividade de ladrão como “profissão”, com Estatuto Profissional e tudo, provocando uma onda de alegria em milhares de praticantes apinhados na escadaria do Parlamento e espalhados pelo país.

Os argumentos foram convincentes. Vagabundo é vagabundo, não quer trabalhar. Ladrão não é vagabundo, trabalha no que sabe fazer, roubar, uma atividade geradora de rendimento e emprego.

Emprego? perguntaram os cépticos. Claro, se não existissem ladrões, haveria menos polícias, juízes, delegados, jornalistas, advogados e tantos milhares de outros profissionais que vivem… da sua existência.

Governo que se preze, nunca vai acabar com ladrão pois este é motor da economia. Numa sociedade sem ladrões seria o caos. As empresas de alarmes, portas blindadas, fechaduras, cercas elétricas, muros, cofres, caixas fortes, transporte de valores, viaturas blindadas, segurança e tantas outras, teriam de encerrar, provocando uma onda de falências e desemprego que nem a crise que vivemos provocou. E, como os produtos roubados têm de ser substituídos, a indústria e o comércio venderiam menos. Daí a importância da função económica e social do ladrão, como “profissão”…

Como todos nascemos com um pouco de tudo, (sendo a educação e o meio onde crescemos que nos moldam), também nascemos com um pouco de ladrão dentro de nós. Por isso (no meu sonho), o ministério da educação irá criar no ensino básico a disciplina para desenvolver bem cedo as capacidades de cada um na arte de “ladroagem”. Estão também pensados pelo ministério, cursos no secundário para ladrões com ambições médias, sendo que para roubos superiores será obrigatória a licenciatura numa das prisões mais conceituadas do país, onde não faltam “professores qualificados”, se bem que para os “mestrados” e “doutoramentos”, os grandes mestres estão (quase) todos cá fora.

Um profissional da ladroagem não tem horário de trabalho e corre o risco de não poder regressar a casa (como qualquer operário quando tem um acidente de trabalho) e ir “bater com os costados na prisão”, passando à condição daquilo a que já chamam de “funcionário público não declarado”, com direito a cama, mesa e roupa lavada, biblioteca, assistência social e de saúde, advogado, transportes, educação e ginásio, etc., etc., podendo mesmo reclamar se os serviços prestados não forem do seu agrado.

No sonho, a segurança social estudará apoios monetários a atribuir à família durante a ausência do “chefe” na “pildra”, para além de vales que darão direito a três semanas de férias em hotéis no Algarve com “tudo incluído”, compras em lojas de marca, empréstimo de viatura à escolha durante o período de “ausência”, tratamentos em esteticista, SPA e outros, atribuídos por empresas a troco da garantia de que não serão assaltadas no futuro. Até a EDP vai oferecer “quilowatts” de graça, tal como a PT minutos de chamadas, para lhes não roubarem mais os cabos de cobre.

E quem pensa que eles perdem a liberdade, engana-se. Cá fora é que não estamos livres da insegurança, no emprego, no casamento, no salário, de ser assaltados e até em manter a sogra calada. Estando preso é estar seguro, é ter a oportunidade de se reciclar, aprender novas técnicas de roubo, trocar experiências, especializar-se e conhecer as tendências mais recentes do “gamanço”. É certo que “na gaiola” correm o risco de ser alvo de violência ou mesmo “assédio sexual” por algum “passarão carenciado”, nada que se não veja cá fora nas escolas e universidades, entre “praxes” e “bullying”…

Com a democratização do ensino da roubalheira, a profissão terá uma hierarquia em função das “qualificações” por “produto” (animais,  metais preciosos, viaturas, etc.), por “visados” (velhinhas, bêbados, lojistas, prostitutas, etc.) e por níveis de roubos (básico, secundário e licenciatura, conforme o montante). Todos farão parte do grande grupo de “ladrões comuns”, onde estão mais de noventa por cento – a “licenciatura” já não dá acesso direto a grandes “tachos de ladroagem”, tal como nem a empregos decentes.

Haverá ainda um outro nível, os mestrados para “ladrões especiais”, conhecidos como “de gravata”, geralmente tecnocratas oportunistas formados noutras “bandas”, a “classe alta” da profissão que não quer misturar-se com a “ralé”. Alguns começam a fazer “estágio” nas “jotas” dos partidos até chegarem ao poder (acesso a “galinheiros” recheados), outros passam pelos bancos (que não os dos jardins) onde “abrem buracos” que nós “trolhas” (digo, camelos) temos de tapar, e uns tantos tratam de levar os “fundos” da UE para “sacos sem fundo” em “paraísos”, tudo com um nível de “profissionalismo” e de “limpeza” tal que o povo até elogia e vota para que continuem…

Esta arte – porque é mesmo uma “arte”- está espalhada em todos os sectores de atividade e é tida como “a melhor profissão do mundo”, batendo mesmo o emprego que a indústria de turismo australiana promove em campanha anual, de zelador numa ilha turística na Grande Barreira de Coral. Mas há comparação?

A profissão é tão boa, tão boa, que a lei até protege o seu exercício, impedindo que os “roubados” se defendam ou provoquem “acidente profissional” ao ladrão que lhe leva os bens, sendo tal considerado um ato ilícito, lesivo dos interesses do “trabalhador”. Sim porque, ele ladrão, não pode ser impedido de “trabalhar”, seja a que título for. Foi o que aconteceu num assalto a um café de Lousada. Enquanto os ladrões se “sacrificavam” a carregar a máquina de tabaco “gamada”, o dono do café, no seu “desconhecimento da lei”, veio à janela dar duas “cartuchadas” com a caçadeira para ver se espantava a “passarada” que “trabalhava” tão afanosamente, acertando de ricochete num dos “passarões”. Mas não podia fazer isso. Ou ajudava a carregar o artigo ou utilizava a via “política” da negociação…

O caso foi parar a tribunal e, para a coisa não “ficar preta”, disseram os jornais que acabou por pagar dois mil e quinhentos euros ao “acidentado”, (só não se sabe se lhe satisfez o desejo, entregando-lhe depois a máquina em casa, cheia de tabaco…). E teve sorte, muita sorte. Se apanhasse um daqueles advogados americanos especialista em “ladroagem”, digo, indemnizações, ficava… nu.

Já Balzac dizia que “esse privilégio de sentir-se em casa em qualquer lugar, pertence apenas aos reis, às prostitutas e aos ladrões”…

O jeito que certas falências dão…

As empresas, tal como as pessoas e todos os seres vivos, têm um ciclo de vida que começa com a fundação (nascimento), prolonga-se durante o seu período de atividade e termina com a sua liquidação (morte). Por isso, é um processo normal e natural criar-se empresas como o deveria ser fechá-las, sem dramas nem complicações. Tal, é tido como uma renovação do tecido empresarial bem como da própria sociedade.

Numa situação normal, deve-se chorar não pelas empresas que desaparecem mas sim pelas que não “nascem”, porque o futuro está nas que “nascem” e não nas que se “arrastam” para se manterem “vivas”, tantas vezes à custa de sacrifícios indevidos de quem sobre elas não tem qualquer responsabilidade.

É natural que em tempos de crise como aquele que estamos a viver, muitas empresas tenham graves problemas para assegurarem a sua sustentabilidade, quer por razões de mercado, de conjuntura económica, de acesso ao crédito e de tantos outros factores. Por isso, compreende-se da dificuldade em satisfazerem os compromissos com os credores, o que as pode colocar numa situação de falência que, quando não é resolvida rapidamente, costuma degenerar em insolvência. Daí o rol de empresas que “morreram” nos últimos anos pois, as falências e os despedimentos na sequência delas, são a mais grave consequência da crise.

Falir é o final de um ciclo de vida. Não deve ser motivo de vergonha nem de estigma, desde que o processo seja transparente. Mas, se a falência é viciada, fraudulenta, com o objetivo do empresário retirar mais valias disso, deve ser motivo de condenação legal e censura social, o que já nem acontece de tão vulgar que se tornou.

Tem havido empresários que recorrem à falência como meio de não pagarem a trabalhadores e fornecedores de bens e serviços, e já nem falo do estado, arrastando muitas vezes estes para situações graves e  complicadas. Depois, com a maior das “latas”, abrem uma “nova empresa” na porta ao lado, quando não nas instalações que fizeram mudar de “dono” juntamente com equipamentos e outros ativos, em esquema premeditado, sem que a justiça dos homens faça o que deve.

É inconcebível que se permita a laboração de uma empresa, meses ou até anos a fio, com salários em atraso e sem pagarem os fatores de produção o que, para além dos problemas que provoca aos credores, vem distorcer a concorrência e  contaminar outras empresas que correrão o risco de seguir-lhes o caminho, com patrões que nem sequer têm a coragem de contar a verdade aos empregados, olhos nos olhos, enquanto dissipam os bens, antes de fugirem pela calada da noite. É verdade que são os trabalhadores muitas vezes a tentar segurar o que as autoridades são incapazes de fazer.

Quando era criança, se alguém fosse à falência, até a própria família se sentia envergonhada, passando por um período de ostracização por parte da sociedade. Hoje, entre a perda iminente de património e o estigma da insolvência (se é que se trata de um estigma para alguns), há cada vez mais gente a optar por esta, crescendo as falências viciadas, até porque a noção de “ética empresarial” nunca constou da conduta de certos indivíduos que não passam de golpistas encapotados de empresários, que o tempo das vacas gordas (e o crédito fácil) pariu.

É nesse quadro de habilidades que assistimos a milhares de divórcios (fictícios) dos proprietários, fazendo desaparecer os bens para não pagarem nada a ninguém. E o curioso é que, quando o empresário “dá às de vila Diogo” deixando a empresa órfã, algumas vezes até sobra património suficiente para liquidar as dívidas para com os credores, sejam eles estado, entidades bancárias, trabalhadores, fornecedores. No entanto, após a nomeação do “administrador da massa falida”, o processo arrasta-se e os bens são “trabalhados” e “liquidados” em teias de corrupção sem que trabalhadores e fornecedores cheguem a ver a cor do dinheiro que lhes é devido.

Os processos de falência, que deveriam ser expeditos e controlados rigorosamente para que não sejam uma fraude e provoquem o menor sofrimento humano e material possível, passeiam-se nos corredores da justiça anos seguidos, dando tempo à degradação e delapidação de património de forma escandalosa, levando ao desespero aqueles que investiram na empresa o suor e a força do seu trabalho e não tenham outros recursos a que se agarrar para além da esperança (ilusória) de um dia receberem o que lhes é devido.

Não é compreensível que não exista um registo criminal próprio para os empresários “profissionais” nestes malabarismos, que os impeça de repetir tais “façanhas” quantas vezes quiserem, acabando sempre por “engordarem” o seu “pecúlio”, normalmente escondido em nome de familiares ou amigos. Ainda menos compreensível é a aceitação e tolerância da sociedade para com esses “habilidosos”, chamando-os de “espertos” e “inteligentes”…

No mínimo, deveriam ser obrigados a prestar “serviço comunitário”, como meio de formação ética e cívica, para ficarem a conhecer os seus deveres enquanto empresários (coisa que, tantas vezes, nunca foram…). Muitos deles não estão interessados em conhecer essas responsabilidades de tão cegos pela ganância, não olhando a meios para atingir os fins, indiferentes ao sofrimento que provocam a terceiros que não têm culpa, agindo como se fossem viver para sempre mas, certo, certo, é que… não viverão.

Mas já deveriam ter percebido que, por maior que seja a grandeza  ou riqueza dos homens e das civilizações, não há nada que a morte não sepulte…

Se reincarnar… quero ser “burro”

Se eu acreditasse na reincarnação, sei com toda a certeza o que queria ser quando fosse reincarnado: “Burro”, isto é, homem burro. É que os “burros” são felizes, mais felizes, vivem “na boa” pois não questionam, não têm grandes sonhos e acreditam nas mentiras que lhes impingem, com fé de idiotas. E por isso, são felizes.

Não há “porquês”, nem interrogações, nem “queimar os fusíveis” a pensar. O cérebro é para estar desligado.

Basta um líder pregar “uma verdade”, a “sua verdade”, por mais demagógica que seja, ainda que estúpida de todo, e assumem-na como sua e aí encontram um caminho, um rumo, por onde seguem na manada de “burros”, a caminhar pelo mundo, felizes com a sua verdade que não questionam, felizes na sua burrice. Que melhor sorte posso querer?

Cada vez mais penso que ser “burro” é ser feliz porque pensar dá trabalho, questionar dá chatices, duvidar dá interrogações. Bom mesmo é acreditar, acreditar, numa sabedoria simples, sem complicação nem dores de cabeça pois não é preciso “puxar pela mona” nem “gastar a massa cinzenta”.

Não, não quero ser o burro animal, esse desgraçado que foi explorado pelo homem durante séculos desde que foi domesticado, obrigado a trabalhos forçados à volta de uma nora a tirar água, em diversos lides agrícolas ou no transporte de pessoas e bens, especialmente em terrenos de difícil acesso, acabando velho, cansado e escanzelado, de tanto ser explorado. E, com o avanço da tecnologia, especialmente dos veículos motorizados, acabou por ser votado ao abandono, o que o coloca entre as espécies em via de extinção. Mais ainda, sem o merecer, fizeram dele o símbolo da ignorância, da estupidez e da teimosia, provavelmente por ter sido sempre o “burro de carga”.

Mas eu, como “burro”, serei um indivíduo de raciocínio enviesado embora, ao mesmo tempo, seguindo em linha reta para não alterar o rumo quando enveredar pela burrice. Mas não pensem que me sentirei intimidado. Pelo contrário, achar-me-ei brilhante, muito brilhante, e terei muito orgulho em mim.

Como entre nós é vulgar premiar e darem-se posições de relevo exatamente por se ser “burro”, espero vir a tornar-me famoso

como muitos outros já o são, pela burrice. E como bom “burro” que serei, achar-me-ei inteligente, excepcional, e pensarei sempre que a sociedade não estará a ser justa comigo. Mas, mesmo assim, seguirei sempre em frente sem me preocupar com as minhas limitações, à espera que um dia me reconheçam o génio. Ainda que para isso tenha de montar em cima de um burro até porque, “um homem em cima de um burro é… um burro de dois andares”.

Claro que terei uma grande capacidade de debate de ideias, apesar de ninguém concordar comigo (a não ser os outros “burros”). E até serei violento e lutarei com os que discordarem de mim, porque eu terei sempre razão. Essa qualidade deve-se ao facto de ser “burro como um calhau”, onde as ideias batem mas não penetram.

Certo é que nunca me irei regenerar nem corrigir pois, “quem nasce burro, morre burro e não vira cavalo”.

A burrice exige perseverança e insistência até porque, se não se sabe fazer outra coisa a não ser “burro”, o que é que se pode fazer?

Este mundo é feito de “burros” e inteligentes. Podia pensar-se que o “burro” não é feliz mas não é verdade. Como passa a vida inteira sem se dar ao trabalho de pensar, não se desgasta nem se cansa como aqueles que o fazem, o que é uma grande vantagem já que, quem não pensa não sofre.

Há quem defenda a teoria da burrice generalizada entre nós, homens, ao afirmar que “o homem nasce, cresce, fica burro e… casa”. E vá lá saber-se porquê…

Não é que me importe muito mas, cá por dentro, ficarei a remoer quando me chamarem “burro”. Vai dar-me vontade de lhes “assestar” um daqueles coices…

Talvez não consiga ser um “burro” igual àquele ladrão americano que assaltou uma oficina de automóveis e, depois de separar tudo o que queria levar, encontrou carne num frigorífico e carvão ali perto. Achou então que seria uma excelente ideia fazer um churrasco. E fez… até chegar a polícia. Ou como a senhora, também americana, que foi reivindicar o Código de Defesa do Consumidor para a esquadra da polícia, queixando-se de um traficante lhe ter vendido “crack” ruim. As autoridades fizeram a análise e esta confirmou que o produto era de facto droga pelo que, ela… “foi dentro”. Atenção, não quero com isto dizer que os americanos são “burros”. Mas que também há lá muitos, há…

Toda esta minha disposição fica pendente até vir a acreditar na reincarnação. Então, sim, terei de arranjar alguém que, “quando partir desta para melhor” (lá está a burrice a funcionar pois, haverá alguém inteligente capaz de dizer que ficar metido num buraco, sozinho, com dois metros de terra em cima e sem respirar, é “passar para melhor?”…), ao chegar lá e encontrar o chefe do Departamento da Reincarnação, reserve logo a minha viagem de regresso como “burro”, o que me poupará tempo e desperdício de burrice.

Não sei distinguir a “cor de burro quando foge” e fica-me a dúvida se chegarei lá ou não pois, “burro velho não toma andadura” e por mais que “zurre”, “vozes de burro não chegam ao céu”…

Pensando bem e mesmo antes de reincarnar, como já percorri tanto caminho… já estou “burro” suficiente para fazer as figuras de “burro” que fiz (e que ainda farei, com certeza). Para treinar, já fui à feira de S. Martinho escolher a “albarda”, já tenho dado alguns “coices” e ando a ver programas de televisão muito estúpidos. Não, ainda não relincho, mas não se pode aprender tudo num dia… É preciso tempo e, com tempo, lá chegarei. Sim, porque preciso de tempo… até para vir a ser “burro”…