Numa reunião de amigos, um deles que já está divorciado há uns quantos anos e cortou relações com o seu único filho, nora e neto, dizia-me que agora é absolutamente independente e não precisa de ninguém. Deixei-o estender a sua teoria e, quando parou de divagar, perguntei-lhe: “Zé, se não precisas de ninguém, é sinal de que foste tu que fizeste este nosso almoço, cultivaste os legumes, produziste o vinho e o pão, criaste e mataste a vitela que comeste, serviste à mesa e vais arrumar, limpar, lavar e tudo o mais”? Eu percebi ao que ele queria referir-se ao dizer que “não precisa de ninguém”, pois é um slogan que às vezes se atira só como desabafo e nada mais.
Como disse D. Tolentino de Mendonça, cardeal, poeta e teólogo, “a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros”. Porque dependemos todos uns dos outros, não só para ser felizes, mas mesmo para sobreviver. A sociedade funciona assim e parece que não entendemos o que a história nos ensina: eu dependo dos outros, mesmo que não queira. E hoje, mais que nunca, é impossível alguém colocar-se na falsa posição de que não depende de ninguém. E nesta dependência dos outros em toda a nossa vida, desde o momento em que nascemos, “os outros” têm uma enorme importância ao longo dessa caminhada. E a questão central é percebermos e até que ponto queremos interagir, partilhar, ajudar, ir e estar com “os outros”.
No Michigan, nos Estados Unidos, o dono de uma livraria decidiu mudar de instalações. A nova loja ficava apenas a um quarteirão de distância. Mas, em vez de empacotar os livros em caixas e contratar camiões para fazer a mudança, a comunidade decidiu fazer algo diferente. Mais de trezentas pessoas formaram uma corrente humana e, de mão em mão, livro por livro, moveram toda a livraria e, o mais incrível, é que os livros chegaram à nova loja exatamente na mesma ordem em que estavam nas instalações antigas. Este caso fala sobre união, gentileza, sobre o poder duma comunidade que escolhe somar e não esperar.
Na vida nós carregamos histórias, pesos invisíveis, que por vezes parecem pesados demais para carregar sozinhos. Mas, quando alguém estende a mão, tudo muda. Porque ajudar não é sobre fazer muito, é sobre estar ali a dizer “eu estou contigo”. Esta corrente não transportou apenas livros. Ela moveu corações, lembrou a todos que pertencemos uns aos outros, que juntos a travessia é mais leve. E que quando ajudamos alguém a carregar um peso, também ficamos mais fortes. Podemos não conseguir fazer uma grande mudança na vida, de alguém, mas será que não podemos ajudar a carregar um livro? Ou uma caixa? Ou talvez uma dor? E se começássemos a olhar mais para a comunidade, para quem vive ao nosso redor, ao nosso lado?
O mundo não precise de heróis solitários, mas de mãos estendidas, de olhares atentos, de pessoas que escolhem fazer parte. E a magia em ajudar é que, quando levamos alívio a alguém, também nos curamos.
Tem 82 anos de idade, uma pequena reforma, vive à beira da estrada numa casa humilde numa aldeia de Lousada e toda a gente a trata, carinhosamente, por Teresinha. Tem oito filhos que são a sua maior riqueza e de quem muito se orgulha, tendo herdado da sua avó a sua maior qualidade: pensar e preocupar-se com “os outros”, mas muito especialmente com aqueles que “precisam”. Sim, porque ela durante a sua vida também “precisou”. Já com cinco filhos, seguiu o marido para Angola quando aquilo era um pedaço de Portugal, à procura de uma vida melhor. E conseguiram-na, não fosse a independência da ex-colónia que os fez regressar à terra, com um monte de dinheiro angolano, mas sem valor. E tiveram de recomeçar de novo, passar por dificuldades e precisar dos outros. Mas seguiu em frente e nunca se esqueceu de estender a mão para ajudar. Vejo-a de vez em quando a atravessar a estrada agarrada ao carrinho de mão a caminho do seu campo que cultiva, para si e para os “outros”, que são sempre a sua preocupação maior. Apesar de andar curvada, pelo peso da idade, da sua coluna que já não é o que era ou do excesso de entrega à sua missão, ela dedica os seus dias a trabalhar, para si, para ajudar quem precisa e até de quem não. Mas está na sua maneira de ser. A título de exemplo, quando semeia o cebolo, não fica pela pequena “margem” a pensar só nas suas necessidades, mas a pensar também nos outros. E fica triste quando já não tem mais para servir os que chegaram tarde. Semeia milho para a bicharada, hortaliças diversas que servem muita gente e até flores. Por isso, com regularidade lá vai ela com o carrinho de mão carregado de flores a caminho do cemitério, para “assear” as sepulturas, não só dos seus, mas umas quantas mais: uma porque é a campa de uma senhora que foi bondosa com ela e não tem cá família, outras porque estão ao abandono por uma ou outra razão e porque não consegue ficar indiferente ao ver uma sepultura esquecida. Por norma cuida de oito sepulturas, fora as outras …
Recentemente mandou vir de Montalegre um enorme saco de batatas que pesava uma tonelada. Teve trabalho de escolha e limpeza para vários dias, mas não se ralou com isso, pois o principal destino das batatas era a casa … dos outros. De uma tonelada, provavelmente não ficaram em sua casa mais de cinquenta quilos, pois foi levando a casa de A porque tem estado doente, a casa de B a quem a vida não está a correr bem, a casa de C porque lhe serve como semente e a casa de D só porque sim … E não fica à espera que os conhecidos da aldeia lhe peçam para ajudar nos trabalhos agrícolas que implicam mais gente, pois ela aparece para trabalhar mesmo sem ser convidada, mesmo curvada, naquilo que é o verdadeiro espírito comunitário e que tão bem tem praticado ao longo de décadas …
Ela leva à letra e mais à prática, o mandamento bíblico de “amar o próximo como a si mesmo”. E é incrível essa sua força moral, o exemplo que nos dá, diariamente, e a alegria que ela encontra na alegria dos outros, ao partilhar muito do pouco que tem. E, por isso mesmo, tal entrega tem um valor tão grande, tão grande, que só pode ser possível devido ao tamanho do seu coração …