Um coração a pensar nos outros

Numa reunião de amigos, um deles que já está divorciado há uns quantos anos e cortou relações com o seu único filho, nora e neto, dizia-me que agora é absolutamente independente e não precisa de ninguém. Deixei-o estender a sua teoria e, quando parou de divagar, perguntei-lhe: “Zé, se não precisas de ninguém, é sinal de que foste tu que fizeste este nosso almoço, cultivaste os legumes, produziste o vinho e o pão, criaste e mataste a vitela que comeste, serviste à mesa e vais arrumar, limpar, lavar e tudo o mais”? Eu percebi ao que ele queria referir-se ao dizer que “não precisa de ninguém”, pois é um slogan que às vezes se atira só como desabafo e nada mais. 

Como disse D. Tolentino de Mendonça, cardeal, poeta e teólogo, “a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros”. Porque dependemos todos uns dos outros, não só para ser felizes, mas mesmo para sobreviver. A sociedade funciona assim e parece que não entendemos o que a história nos ensina: eu dependo dos outros, mesmo que não queira. E hoje, mais que nunca, é impossível alguém colocar-se na falsa posição de que não depende de ninguém. E nesta dependência dos outros em toda a nossa vida, desde o momento em que nascemos, “os outros” têm uma enorme importância ao longo dessa caminhada. E a questão central é percebermos e até que ponto queremos interagir, partilhar, ajudar, ir e estar com “os outros”.

No Michigan, nos Estados Unidos, o dono de uma livraria decidiu mudar de instalações. A nova loja ficava apenas a um quarteirão de distância. Mas, em vez de empacotar os livros em caixas e contratar camiões para fazer a mudança, a comunidade decidiu fazer algo diferente. Mais de trezentas pessoas formaram uma corrente humana e, de mão em mão, livro por livro, moveram toda a livraria e, o mais incrível, é que os livros chegaram à nova loja exatamente na mesma ordem em que estavam nas instalações antigas. Este caso fala sobre união, gentileza, sobre o poder duma comunidade que escolhe somar e não esperar. 

Na vida nós carregamos histórias, pesos invisíveis, que por vezes parecem pesados demais para carregar sozinhos. Mas, quando alguém estende a mão, tudo muda. Porque ajudar não é sobre fazer muito, é sobre estar ali a dizer “eu estou contigo”. Esta corrente não transportou apenas livros. Ela moveu corações, lembrou a todos que pertencemos uns aos outros, que juntos a travessia é mais leve. E que quando ajudamos alguém a carregar um peso, também ficamos mais fortes. Podemos não conseguir fazer uma grande mudança na vida, de alguém, mas será que não podemos ajudar a carregar um livro? Ou uma caixa? Ou talvez uma dor? E se começássemos a olhar mais para a comunidade, para quem vive ao nosso redor, ao nosso lado? 

O mundo não precise de heróis solitários, mas de mãos estendidas, de olhares atentos, de pessoas que escolhem fazer parte. E a magia em ajudar é que, quando levamos alívio a alguém, também nos curamos.

Tem 82 anos de idade, uma pequena reforma, vive à beira da estrada numa casa humilde numa aldeia de Lousada e toda a gente a trata, carinhosamente, por Teresinha. Tem oito filhos que são a sua maior riqueza e de quem muito se orgulha, tendo herdado da sua avó a sua maior qualidade: pensar e preocupar-se com “os outros”, mas muito especialmente com aqueles que “precisam”. Sim, porque ela durante a sua vida também “precisou”. Já com cinco filhos, seguiu o marido para Angola quando aquilo era um pedaço de Portugal, à procura de uma vida melhor. E conseguiram-na, não fosse a independência da ex-colónia que os fez regressar à terra, com um monte de dinheiro angolano, mas sem valor. E tiveram de recomeçar de novo, passar por dificuldades e precisar dos outros. Mas seguiu em frente e nunca se esqueceu de estender a mão para ajudar. Vejo-a de vez em quando a atravessar a estrada agarrada ao carrinho de mão a caminho do seu campo que cultiva, para si e para os “outros”, que são sempre a sua preocupação maior. Apesar de andar curvada, pelo peso da idade, da sua coluna que já não é o que era ou do excesso de entrega à sua missão, ela dedica os seus dias a trabalhar, para si, para ajudar quem precisa e até de quem não. Mas está na sua maneira de ser. A título de exemplo, quando semeia o cebolo, não fica pela pequena “margem” a pensar só nas suas necessidades, mas a pensar também nos outros. E fica triste quando já não tem mais para servir os que chegaram tarde. Semeia milho para a bicharada, hortaliças diversas que servem muita gente e até flores. Por isso, com regularidade lá vai ela com o carrinho de mão carregado de flores a caminho do cemitério, para “assear” as sepulturas, não só dos seus, mas umas quantas mais: uma porque é a campa de uma senhora que foi bondosa com ela e não tem cá família, outras porque estão ao abandono por uma ou outra razão e porque não consegue ficar indiferente ao ver uma sepultura esquecida. Por norma cuida de oito sepulturas, fora as outras …

Recentemente mandou vir de Montalegre um enorme saco de batatas que pesava uma tonelada. Teve trabalho de escolha e limpeza para vários dias, mas não se ralou com isso, pois o principal destino das batatas era a casa … dos outros. De uma tonelada, provavelmente não ficaram em sua casa mais de cinquenta quilos, pois foi levando a casa de A porque tem estado doente, a casa de B a quem a vida não está a correr bem, a casa de C porque lhe serve como semente e a casa de D só porque sim …  E não fica à espera que os conhecidos da aldeia lhe peçam para ajudar nos trabalhos agrícolas que implicam mais gente, pois ela aparece para trabalhar mesmo sem ser convidada, mesmo curvada, naquilo que é o verdadeiro espírito comunitário e que tão bem tem praticado ao longo de décadas …

Ela leva à letra e mais à prática, o mandamento bíblico de “amar o próximo como a si mesmo”. E é incrível essa sua força moral, o exemplo que nos dá, diariamente, e a alegria que ela encontra na alegria dos outros, ao partilhar muito do pouco que tem. E, por isso mesmo, tal entrega tem um valor tão grande, tão grande, que só pode ser possível devido ao tamanho do seu coração …

O Turismo é uma nova religião?

Quando era criança não se falava em turismo. A maioria das pessoas cá da terra nem sequer conhecia o Porto, quanto mais Espanha, que já era uma terra muito para além do sol-posto. E para aqueles, poucos, que conseguiram viajar para o Brasil, de barco, indo como imigrantes, até se fazia uma despedida como sendo para sempre. O Zé da tia Quina para lá foi e nunca mais o vi. Além disso, quase ninguém tinha férias. Os poucos “fidalgos” que tinham dinheiro para umas passeatas, iam até Coimbra, Fátima e, muito poucos, a Lisboa, fazendo questão de colarem nas malas de viagem, em cabedal, autocolantes das pensões por onde passavam, porque hotéis havia poucos, para exibir ao longo da viagem, à chegada … e provocar inveja. Como se fossem muito viajados …

Mas a vida foi mudando, a partir de certa fase de forma mais acelerada, fazendo com que (quase) toda a gente tenha férias e o turismo fosse massificado e se tornasse numa indústria poderosa. De tal forma, que o marketing e publicidade leva as pessoas a acreditar que fazer turismo lhes faz bem e as torna mais felizes. Viajar, admirar paisagens, museus, monumentos e obras de arte, é um substituto para um ritual religioso. Assim, o turismo pode ser visto como uma nova religião do mundo. A única coisa que têm em comum católicos, protestantes, muçulmanos, hindus, budistas e ateus, é a crença inabalável de ver a Torre Eiffel, o Parténon, a Capela Sistina, a Estátua da Liberdade ou outro qualquer monumento icónico. É um ritual que todos eles cumprem.

Há férias em “Peregrinação”, sejam excursões de autocarro, barco ou avião, para visitar cidades, museus, castelos e mais. São férias quase sempre móveis, a andar de um lado para o outro. E há férias que têm como destino um “Paraíso”, podendo ser em estâncias balneares, onde o indivíduo sonha por um regresso ao estado puro e à inocência. Dizem ser férias estáticas, alapados num local. Quase sempre, não passam de rituais que é necessário cumprir. Como em Punta Cana, na República Dominicana, para onde se viaja de avião e de autocarro do aeroporto a um hotel junto à praia onde se fica por uma semana ou duas no regime de “tudo incluído” e o mesmo é dizer “na engorda”, esparramado ao sol como os lagartos para ficar bronzeado, apanhar um escaldão e meter a carcaça na água do mar ou da piscina. E emborcar uns copos. No fim, a mesma viagem de autocarro e avião, mas ao inverso, para poder dizer “eu estive na República Dominicana”. Cumpriu-se o ritual, mas não se viu nada daquele país. Para bronzear-se, qualquer praia servia. Até cá. E um ano é em Punta Cana, depois nas Maldivas, Cancum, Seychelles, Varadero e por aí além, como em romagem pelas “capelinhas”, por onde passam habitualmente milhões de “fiéis” a cumprir o ritual. Há um denominador comum a quase todas: o regresso a casa. Tantas vezes a melhor parte …

Notícias do Paraíso: na brochura de férias no Havai, vê-se uma foto a     

cores de uma praia tropical: mar e céu de um azul brilhante, areia branca e só um par de figuras humanas deitadas à sombra de uma palmeira verde. É o passaporte para o Paraíso. Em todas as brochuras a mesmo foto, a mesma palavra: Paraíso. Mas ela nada tem a ver com a realidade. Mais de 7 milhões de pessoas visitaram o Havai em 2024. Alguém consegue encontrar lá uma praia tão deserta como a da foto da brochura? É o turismo a vender o mito do Paraíso. Um antropólogo diz que da simples repetição da palavra Paraíso resulta uma lavagem ao cérebro do turista, fazendo-o acreditar que foi aí que chegou, apesar da discrepância entre a realidade e a promessa. Por isso, lá encontramos a palavra Paraíso a repetir-se até à exaustão na Padaria Paraíso, Clínica Dentária Paraíso, Jet Ski Paraíso, Cruzeiros Paraíso, Bebidas Paraíso, Empréstimos Paraíso, Lavandaria Paraíso, Loja de Animais Paraíso, Fornecimentos Paraíso, Antiguidades Paraíso, Brinquedos Paraíso, Capela Paraíso, Desinfestações Paraíso, Móveis Usados Paraíso, Ouro Paraíso, Licor Paraíso, Massas Paraíso e tantas outras empresas com a tal marca Paraíso. No caso do Havai, o bairro de Waikiki em Honolulu é hoje um dos locais mais densamente povoados do mundo. Ali vivem, sempre, cerca de 100.000 almas em pouco menos de 400.000 metros quadrados. Um Paraíso, sem a praia deserta, “um lar sem inverno dos mortos felizes”! Uma velha habitante dizia: “deram cabo disto. Quase não se via um hotel com mais de 2 andares. Construíram uma muralha de grandes hotéis ao longo da costa, só com uma passagem estreita que até temos de nos encolher para passar e ir à praia. Waikiki era uma aldeia e agora é uma grande cidade. Montes de gente na praia, na rua, nos passeios. Muito lixo, crime. Até o clima piorou, demasiado quente”. E é mais uma vez esta “religião” a degradar o planeta como em tantos locais e monumentos do mundo: Os carreiros, na Região dos Lagos, transformaram-se em trincheiras. Os frescos da Capela Sistina sofrem danos pela respiração e calor dos visitantes. Cento e oitenta pessoas entravam a cada minuto na Catedral de Notre Dame, com os pés a desgastar o pavimento e com o fumo dos escapes dos autocarros a corroer os trabalhos em pedra. A poluição das viaturas em bicha para as estâncias de esqui, fazem morrer as árvores e causam avalanches. O mar Mediterrânio é como uma sanita gigante, mas sem corrente de autoclismo e uma em cada seis pessoas que nele se banha corre o risco de apanhar uma doença. Em 1987, tiveram de fechar Veneza porque estava cheia. E se em 1963 desceram o Rio Colorado só 46 pessoas ao longo do ano, hoje são mais de 13.000 … por dia.  

Os Paraísos de férias são, inevitavelmente, metamorfoseados, em locais de Peregrinação pela força da indústria turística. Panoramas triviais ou totalmente inócuos são “trabalhados” a fim de poder ser um itinerário ao longo dos quais os turistas podem ser transportados e servidos por lojas, restaurantes, shoppings, barcos fluviais, artistas, etc. Pegue-se numa ilha qualquer. Em nove em cada dez vezes faz-se uma estrada a contorná-la, formando um círculo, isto é, uma correia de transmissão destinada a transportar pessoas de uma armadilha de turistas até à seguinte, com um grupo a sair enquanto o outro chega. E o mesmo acontece com itinerários de cruzeiros, voos charter, etc. Cada operação na linha de montagem obedece a uma ficha que indica ao operador a altura precisa em que deve iniciar a operação seguinte. Eliminam-se os engarrafamentos, garante-se o acesso e assegura-se o “Paraíso” para toda gente …  

Pague agora e morra depois …

Por norma, hoje vive-se a crédito, às prestações, sem preocupações de maior porque se pode “morrer agora e pagar depois”, até porque, pagar na outra vida é, presumivelmente, mais fácil. E tudo é simples com o crédito facilitado porque os bancos e as casas de crédito vivem disso: emprestar dinheiro ou, melhor, vender dinheiro. Ora, o normal nos nossos dias é comprar quase tudo a crédito por conta do amanhã. No entanto há quem tenha descoberto um rico filão a vender e cobrar um serviço que só se recebe depois de morto: o “pague agora e morra depois”. Assim, já não é preciso estar às portas da morte para planear o fim de vida, querer escolher todos os pormenores das cerimónias fúnebres e deixá-los pagos, para que não seja uma preocupação nem encargos extras para os familiares.

Pois é verdade, há agências funerárias a vender o serviço de funeral ao próprio, o futuro morto, na modalidade de “pague agora e morra depois”. E se por cá ainda está a dar os primeiros passos, a verdade é que em alguns países como os Estados Unidos, a clientela já tem um peso muito significado no negócio, tanto por razões financeiras como emocionais no dizer das funerárias. Por um lado, compra-se o funeral ao preço de hoje, para um serviço que só será prestado no futuro, que pode ser mais ou menos distante, mas seguramente mais caro à data. Por outro, é o próprio “morto” quem define, negoceia e paga todos os pormenores do último evento social onde ele será a figura principal e onde deverão estar presentes os familiares, amigos mais próximos e até inimigos.

Com esta nova modalidade dá para escolher os detalhes, desde o tipo de madeira da urna (do pinho ao mogno), a sepultura, o jazigo ou a cremação, as flores, as pagelas, o livro de condolências, o carro e a música. Pode até incluir pedidos invulgares como passar o carro fúnebre num lugar onde foi feliz, seja a sua casa, o estádio do clube do seu coração ou da sua antiga escola. Tudo é uma questão do tamanho do rombo que se queira dar na conta bancária. Neste sistema de venda antecipada, o futuro morto deixa “tudo tratadinho” sem que fiquem assuntos delicados para quem cá fica, garantindo que as suas últimas vontades serão respeitadas. Há quem faça escolhas muito personalizadas como as flores – rosas vermelhas, o padre, a música – de Wagner, o fato, a camisa e até a gravata rosa.

As agências funerárias dispõem já de uma “ementa” vasta e variada para satisfazer os gostos de todo o tipo de “mortos” e já começaram a conquistar clientela. Dizia uma delas: “O meu funeral está pago e tive de preencher um papel com todas as minhas vontades. Quero que me vistam o vestido com mais brilhantes que eu tiver na altura, quero ser cremada e que coloquem as cinzas numa caixinha com muita purpurina. No trajeto até à igreja, vou de charrete com cavalos. Na cerimónia, não quero ninguém de preto”.

Por cá o negócio não tem avançado grande coisa porque, mais do que por uma questão cultural, terá a ver com o facto da Segurança Social comparticipar o funeral. E a maioria não quer perder o subsídio, nem mesmo depois de morto …                                                                                 Mas isto de “pague agora e morra depois” tem um grave problema que em Portugal ainda pode ser pior do que nos Estados Unidos: por lá, este negócio está-se transformando num pesadelo para muitas famílias americanas, que estão com “o coração nas mãos” ou melhor, com as mãos na carteira, ao verem o seu rico dinheirinho voar. Isso mesmo, pois lá como cá, também há “chico-espertos” e umas quantas agências funerárias não estão a honrar os compromissos assumidos com famílias de diversas regiões dos EUA. Um caso tem tido grande repercussão na imprensa, pois o novo proprietário de um “complexo” funerário de Memphis, anunciou que “nunca teve a intenção de cumprir os 13.500 funerais pagos antecipadamente”.

Ora, um golpe destes, já não deixa morrer tranquilamente todos os investidores antecipados em milhares de contratos funerários pré-pagos, que impunha à empresa encarregar-se de todos os detalhes de funerais, incluindo preparativos e decoração de velórios, igrejas, capelas e das residências dos contratantes. Mais do que uma afronta ao sentimento de centenas de milhares de norte-americanos, isto revelou a “ponta de um iceberg” que pode tornar-se num pesadelo para pessoas como um casal que já havia pago o seu funeral há 24 anos ao até então “respeitável complexo mortuário”. E, segundo um alto responsável americano no chamado “mercado da morte”, este caso está longe de ser um ato isolado. “Casos deste tipo estão a ser comuns, pois os diretores de várias funerárias desapareceram com o dinheiro pago antecipadamente”, lamentou. Ora, não havendo por lá um subsídio de funeral semelhante ao da nossa Segurança Social, os “mortos” com funeral pré-pago correm o risco de ficar à porta de casa à espera de quem nunca os virá buscar …

Cá para nós que ninguém nos ouve, a má experiência americana e as suas consequências devem ser um aviso à navegação nacional e aos potenciais interessados em “pagar agora e morrer depois”, mais ainda tendo em conta que se isto acontece lá onde a justiça costuma ter mão pesada, aqui isto pode ser um pouco pior pois, se acontecer mesmo, como todos sabemos, a nossa justiça ainda fará regressar cá os mortos para os obrigar a indemnizar as agências funerárias por não terem morrido antes delas falirem. E, para serem enterrados segunda vez, vai ser uma chatice, pois já não terão direito a um novo subsídio da Segurança Social …  

Quem os viu e quem os vê!

As crises políticas têm posto a nu o tipo de gente que nos governa e vamos continuar a vê-los na campanha eleitoral que está à porta, atirando-nos e jogando com emoções em vez de propostas sérias.

Em tempos idos, a nobre arte da política impunha que os cargos de governação, representação de eleitores e nomeação fossem ocupados por pessoas “honradas”. Mas a honra quase desapareceu e é, por estes dias, fora de moda. O conceito passou ser “interpretado” da forma que der mais jeito. Basta olhar para as bancadas parlamentares saídas das primeiras eleições livres e compará-las com as de hoje. O mesmo vale para os governos. O critério para os eleitos e nomeados era, antes de mais, de gente influente e com pensamento, vida profissional com provas dadas, respeito conquistado e autoridade reconhecida pelos demais. Não eram cidadãos modelo, porque não há pessoas perfeitas, mas eram homens e mulheres distintos, porque se distinguiam. A política e os cargos públicos eram vistos como missão e nunca como profissão, como tarefa e não como ocupação, como serviço e não como benefício. Esse tempo passou há décadas. Os “políticos” que tomaram os “aparelhos” dos dois principais partidos tornaram-se profissionais da política e, curiosamente, muito pouco profissionais. O caminho deixou de ser feito através da profissão, da vida, do exemplo, do mérito, da sabedoria, do reconhecimento, e a via de entrada num parlamento ou num governo, ou em quaisquer outros altos cargos da administração, é quase exclusivamente através da escola partidária, alinhamentos internos, do xadrez onde se movem concelhias e distritais, do apoio que o chefe da ocasião recebe das suas tropas. Nos anos de democracia, o mérito, o conhecimento, o reconhecimento, o valor, deu lugar a amigos certos, à conquista do poder interno, à “confiança pessoal”, ao percurso feito para lá chegar como para se governar ou estar no parlamento fossem o justo prémio para uma vida “dedicada” ao partido. Mas um bom diretor de campanha, um fervoroso agitador de bandeiras, um chefe de claque para animar arruadas, um colador de cartazes e o assessor competente e dedicado não o torna, de forma automática, num competente chefe de gabinete, secretário de estado ou ministro. Com o tempo, a geração que fez o 25 de Abril foi sendo substituída pelos seus filhos, os filhos do 25 de Abril, sobre a qual vale a pena ler o artigo escrito em 2013 por Pedro Bidarra, psicólogo, pianista, publicitário, colunista e agora escritor, em 2013, mas que é bem atual e vale a pena transcrever, com a devida vénia:                                                                                                                              “Não confio na minha geração, nem para se governar a si própria. E temo pela que se segue. Somos quase todos filhos do 25 de Abril, mas uns são mais filhos do que outros. A geração que fez o 25 de Abril era filha do outro regime. Era filha da ditadura, da falta de liberdade, da pobre e permanente austeridade e da quarta classe antiga. Tinha crescido na contenção, na disciplina, na poupança e a saber (os que à escola tinham acesso) Português e Matemática. A minha geração era adolescente no 25 de Abril, o que sendo bom para a adolescência foi mau para a geração. Enquanto os mais velhos conheceram dois mundos – os que hoje são avós e saem à rua para comemorar ou ficam em casa a maldizer o dia em que lhes aconteceu uma revolução – nós nascemos logo num mundo de farra e festa, num mundo de sexo, drogas e rock & rol, num mundo de aulas sem faltas e de hooliganismo juvenil em tudo semelhante às claques futebolísticas, mas sob cores ideológicas e partidárias. O hedonismo foi-nos decretado como filosofia ainda não tínhamos barbas nem mamas. A grande descoberta da minha geração foi a opinião: a opinião como princípio e fim de tudo. Não a informação, o saber, os factos, os números. Não o fazer, o construir, o trabalhar, o ajudar. A opinião foi o deus da minha geração. Veio com a liberdade, e ainda bem, mas foi entregue por decreto a adolescentes e logo misturada com laxismo, falta de disciplina, irresponsabilidade e passagens administrativas. Eu acho que a minha geração é a geração do “eu acho”. É a que tem controlado o poder desde Durão Barroso. É a geração deste primeiro-ministro, do ministro das Finanças e do anterior primeiro-ministro. E dos principais diretores dos media. E do Bloco de Esquerda e do CDS. E dos empresários do parecer – que não do fazer. É uma geração que apenas teve sonhos de desfrute ao contrário da outra que sonhou com a liberdade, o desenvolvimento e a cidadania. É uma geração sem biblioteca, nem sala de aula, mas com muito RGA e café. É uma geração de amigos e conhecidos e compinchas e companheiros de copos e de praia. É a geração da adolescência sem fim. Eu sei do que falo porque faço parte desta geração. Uma geração feita para as artes, para a escrita, para a conversa, para a música e para a viagem. É uma geração de diletantes, de amadores e amantes. Foi feita para ser nova para sempre e, por isso, esgotou-se quando a juventude acabou. Deu bons músicos e atores, bons desportistas, bons artistas. E drogaditos. Mas não deu nenhum bom político, nem nenhum grande empresário. Talvez porque o hedonismo e a diletância, coisas boas para a escrita e para as artes, não sejam os melhores valores para atividades que necessitam de disciplina, trabalho, cultura e honestidade; valores, de algum modo, pouco pertinentes durante aqueles anos de festa. Eu não confio na minha geração, nem para se governar a ela própria, quanto mais para governar o país. Mas o pior é que temo pela que se segue. Uma geração que tem mais gente formada, muito mais gente educada, mas que tem como exemplos paternos Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates, Passos Coelho, António José Seguro, João Semedo e companhia (e António Costa). A geração que aí vem teve-nos como professores. Vai ser preciso um milagre. Ou então teremos de ressuscitar os velhos. Um milagre, lá está” …

Morra agora e pague depois …

Num mundo perfeito, todos nós teríamos o direito e condições para ter tudo. Mas desse mundo ideal, só nos ficou o direito, faltando-nos o melhor: as condições. Eu tenho o direito de ter uma casa nas Caraíbas bem junto à praia, de viajar pelo mundo e conhecer todos os lugares maravilhosos de que ouço falar e vejo imagens, mas faltam-me as tais condições, neste caso económicas, para usufruir do meu direito. Sem “aquilo com que se compram os melões”, não há (quase) nada para ninguém. Se isso era válido para a minha geração em que “quem não tinha dinheiro não tinha vícios”, para as novas gerações, a indústria, comércio, serviços e banca inventaram algo que proporciona a toda a gente, ou quase, as condições para usufruir de (quase) tudo: o crédito fácil. E o crédito fácil passou a ser uma oportunidade para pessoas e famílias, anteciparem a aquisição dos bens ou serviços que podem melhorar-lhes o seu bem-estar, como o é a compra de habitação, de viaturas, equipamentos para o lar ou até viagens.

Mas a dívida é uma droga tão potente como o álcool e a nicotina. Em tempos de prosperidade os consumidores usaram-na para melhorar os seus estilos de vida, as empresas pediram dinheiro emprestado para expandir os seus negócios e os investidores recorreram à dívida para melhorar os seus rendimentos.  Enquanto a minha geração aprendeu a viver só com o que tinha, economizar e poupar, as seguintes, com o crédito fácil, o regime de que (quase) tudo se vende a prestações e com a adoção mais alargada dos cartões de crédito, criaram uma sociedade do “compre já e pague depois”. Se é que se pode pagar, o que nem é um grande problema pois o não pagamento tornou-se uma mera opção de estilo de vida e a culpa quase se tornou do financiador descuidado e não do cliente imprudente. Só que, em épocas de crise como a que vivemos em 2008, pela falta de rendimentos que deixaram de poder cobrir as despesas, muitos devedores tiveram de entregar casas, carros e outro património aos bancos, num regresso à realidade nua e crua de uma máxima bem conhecida: quando a despesa anual é superior à receita, o resultado é a desgraça. Foram cerca de 10 anos difíceis em que até fomos chamados a pagar para salvar os bancos. E não foi nada pequena a fatura … 

Mas não se aprendeu nada com isso, na permanente máxima de que os países e as empresas têm de crescer mais e mais, sendo que para isso é preciso consumirmos mais e mais e, consequentemente, será preciso mais e mais crédito, mais e mais dívida. E cá estamos outra vez, agora com a máxima a dizer o contrário: quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade … 

No século XIX, quem não cumprisse as suas dívidas era preso, mas, nos dias de hoje, já ninguém vai preso por dever. Pelo contrário, até dá estatuto: quanto mais se deve, maior se é. E ninguém quer saber se a “bomba” em que andas montado é tua ou de uma instituição de crédito. O que importa é “parecer” aos olhos dos que nos rodeiam.                                                                                                   Embora o crédito seja uma vantagem para as famílias, pode ter vários riscos. Despesas cada vez mais sobrepostas aos rendimentos, criam margens financeiras curtas às famílias para juntar gastos ocasionais ou inesperados e suportar possíveis perdas de rendimento. Além disso, hoje existe um novo perigo: é vulgar vermos campanhas que prometem “crédito fácil e pré-aprovado” ou ofertas de aumento do limite do cartão de crédito. Mas estas propostas, muitas vezes estão associadas a juros muito altos que podem levar a um elevado nível de endividamento, a pagamentos atrasados, a penalidades, a impactos negativos no histórico de crédito e risco de perder bens ou garantias, para além da habituação e dependência do crédito. Acreditar mesmo que existe crédito fácil, é “acreditar no Pai Natal”. O acesso pode ser fácil, mas implica necessariamente taxas de juro mais elevadas. É intuitivo perceber que quanto maior o risco de um crédito, maior terá de ser a taxa de juro associada a tal crédito. O assédio do crédito fácil é comum em todas as épocas, mas especialmente no Natal. Tudo são facilidades e as pessoas são induzidas ao consumo, podendo ou não, com créditos que são fáceis de contratar, mas difíceis ou impossíveis de pagar. E perante as (aparentes) facilidades, fazem-se as compras do que não é necessário, por impulso. E isso contribui para que a dívida das famílias portuguesas esteja perto dos 160 mil milhões de euros, o que significa que cada português tem à partida 17.000€ em dívidas. Já alguém reparou, ou andamos distraídos, nas inúmeras pessoas que têm o salário penhorado? Porquê? Porque “quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade” … 

Mas há sempre uma saída para o sobre-endividamento porque, como diz o povo, “ou há moralidade ou comem todos”. Se um Joe Berardo e um Luís Filipe Vieira ficaram a dever muitos milhões aos bancos e não se passou nada, também o cidadão comum que, ao lado destes “tubarões” não é nada, tem uma escapatória por onde pode sair da lista de devedores: pedir a declaração de “insolvência pessoal” junto do tribunal com a ajuda de um advogado. E, ao fim de três anos, o “insolvente” será libertado definitivamente das dívidas que ficaram por saldar, com exceção de algumas. Nada mau. Mas, se nada disto resultar, há sempre uma última saída: “Morra agora e pague depois”! E há muito devedor que consegue viver bem com isso e, quando morrer, resolve a questão com um “Deus lhe pague” …                                                                             

Trazia “a fisga no bolso de trás” …

Quando andava na escola primária, o “ATL” onde passava a maior parte do tempo depois de sair das aulas era do tamanho da minha aldeia, onde tinha total liberdade para conhecer a natureza, o comportamento dos seres vivos que connosco habitam neste planeta e fabricar os meios para brincar e jogar, fosse à bilharda, à malha, ao peão, ao espeto, ao pica e outros mais. Além disso, ia à fruta, aos ninhos, ao rio Sousa tomar banho e ajudava o sr. Moura a plantar o cebolo e as batatas no quintal dos meus pais, sendo que cada coisa tinha o seu tempo. Mas tinha sempre de fazer a minha fisga, porque “um rapaz sem uma fisga não era ninguém”. A fisga servia para caçar pássaros, participar em torneios entre a miudagem, para ver quem acertava em mais latas e até como arma de defesa, porque não?

Havia dois requisitos fundamentais para construir uma boa fisga: as borrachas e a “forquilha”. As borrachas eram fundamentais porque, se não tivessem boa elasticidade, não atiravam bem, enquanto a “forquilha” exigia muito trabalho para ficar em condições. Conseguir borrachas não era fácil para a maior parte da malta. Eu tinha a sorte de poder recorrer ao meu pai ou ao meu irmão mais velho. Enquanto o primeiro me arranjava um pedaço de “câmara-de-ar” do pneu de um automóvel – coisa que os pneus modernos já não têm – o outro conseguia-me sempre um bocado de “câmara-de-ar” de bicicleta. Normalmente usava mais a borracha das bicicletas porque era mais fina e flexível, enquanto a do automóvel era mais difícil de esticar e exigia mais força. Para fazer a fisga, cortava duas tiras de borracha com 25 a 30 centímetros de comprimento e com cerca de 1,5 cm de largura, tendo o cuidado de as fazer a partir das partes melhores da “câmara-de-ar”, pois como eram pedaços de borracha descartada que já não servia, podia ter pontos mais frágeis que, aplicados na fisga, podiam romper ao fim de alguns disparos. Já a “forquilha” exigia que se procurasse nos carvalhos, oliveiras e castanheiros a ligação de dois ramos em forma de Y, por serem madeiras leves e duras, sendo normalmente a “pega” um pouco mais grossa do que as duas hastes onde prendiam as borrachas. Para preparar a “forquilha eu recorria quase sempre ao senhor Alberto “espingardeiro” onde, apesar da minha idade, gostava de prestar alguns pequenos serviços e aprender como era o caso de acender a forja, aquecer os ferros até ficarem em brasa para serem trabalhados ou polir algumas peças, pois ele tinha ferramentas adequadas para trabalhar madeira por forma a dar-lhe o acabamento que fizesse inveja aos outros. E, com a ajuda dessas ferramentas e de uma folha de lixa apropriada, a forquilha ficava macia como seda. Na parte superior de cada uma das hastes fazia um entalhe arredondado à volta para que, ao amarrar as borrachas, estas ficassem seguras e sem hipóteses de se soltarem, coisa que acontecia com outras feitas mais à pressa. Amarrava a ponta duma borracha a uma das hastes e a outra borracha à outra haste, com “fio norte encerado” que o senhor Pereira sapateiro usava para cozer o calçado, por ser mais resistente, e que eu conseguia por, às vezes, o ajudar a encerar fio. Para concluir a fisga e depois de amarrada cada tira a uma haste, na outra ponta das borrachas prendia um pedaço de couro relativamente fino, que o senhor Pereira também me dava já com o corte certo e dois rasgos onde entravam as borrachas antes de serem amarradas. Com a realização destas operações estava construída a fisga, que nalgumas regiões do nosso país é também conhecida por atiradeira. Finalmente, como munições, eram necessárias as indispensáveis pedras. E depois era só testar a “arma de arremesso”, colocando uma pequena pedra no meio do couro que se segurava com a mão esquerda, enquanto a mão direita agarrava firmemente a forquilha pela pega, esticando as borrachas até a tensão ser suficiente para fazer o arremesso. E os primeiros dias após a sua conclusão eram de certa euforia, fazendo com que, mal saísse da escola, ia treinar a pontaria apontando para um alvo improvisado. Confesso que nunca fui muito bom atirador e hoje gabo-me de nunca ter matado um pássaro sequer. E gabo-me, não porque na altura não quisesse matar, mas porque hoje acho que seria errado. Daquilo que lembro em particular, foi de fazer pontaria a um pardal que estava em cima da rede no quintal da minha avó e fiz um disparo tão bom que acertei … num vaso de barro que rachou ao meio. A fisga era um dos brinquedos populares entre a rapaziada do meu tempo de criança, sem dúvida, apesar de muitos miúdos terem grande dificuldade em conseguir as borrachas porque até as bicicletas eram muito poucas. Pela sua natureza, era um objeto que permitia projetar pequenas pedras a longa distância, com alguma precisão, dependendo da destreza do atirador. Era um forte complemento das aventuras e brincadeiras de criança, tendo um certo poder didático. Claro que às veze era usada com propósitos pouco recomendáveis, pois além de atirarem contra os pássaros, de modo especial a pardais e melros, os mais rebeldes usavam-nas também para algumas maldades como acertar na fruta dos vizinhos.                                                                              Mas, para além de tudo isso, tinha a componente didática com o envolvimento da criança na sua conceção e construção, num espírito de entreajuda e numa competição sadia que recordo com saudade, desenvolvendo em cada um de nós a criatividade, a responsabilidade e a vontade de fazer mais e melhor, tendo-me deixado lições para a vida. Mas a fisga passou à história tal como todos os brinquedos artesanais, hoje exibida como curiosidade do passado num ou outro museu regional, sem que as novas gerações se apercebam da sua importância na infância e adolescência de muitas outras 

Regras, leis, proibições e absurdos …

Dizem que somos “animais sociais” e, como tal temos necessidade de viver em sociedade, porque não conseguimos viver completamente sozinhos, isolados. Precisamos dos outros, quanto mais não seja para nos chatear. Mas, para que todos possamos viver em sociedade, é preciso que tenhamos consciência de que temos direitos e também deveres, de respeitar os outros e ser respeitados. Para tal, ao longo dos séculos houve necessidade de criar regras, normas e leis para definir os limites, onde as pessoas aceitem abrir mão de certas liberdades para formar uma sociedade civilizada, em que a liberdade de cada um termine onde começa a do outro. Essas regras, além de proibirem comportamentos nocivos, também estabelecem direitos e deveres, proporcionando um equilíbrio entre liberdade individual e segurança coletiva. Assim surgiram as sociedades onde a ordem e a segurança predominam, permitindo aos indivíduos viverem de forma mais pacífica. No entanto, à medida que as sociedades começaram a crescer e se desenvolver, as regras e leis também precisaram evoluir para se adequar a essa nova realidade. Se no princípio as regras eram diretrizes simples para manter a paz e harmonia entre os membros da comunidade, à medida que as sociedades se tornaram complexas, tornaram-se necessárias leis mais sofisticadas e abrangentes para regulamentar as diversas interações humanas e atender ao número crescente de conflitos potenciais a serem evitados ou resolvidos. Mas é importante estabelecer regras e cumpri-las, caso contrário não servirão para nada. E se é verdade que alguns países levam as regras muito a sério, outros há que nem tanto. A título de exemplo: se beber pode guiar? Em quase todo o mundo, não. No Brasil também não. Mas vendo bem, como o condutor não é obrigado a fazer o teste do álcool, então pode. A maior parte de regras como esta e não passar um sinal vermelho nem atirar lixo para o chão, são banais. No entanto, por esse mundo fora há regras e leis que, aos nossos olhos e hábitos, dão origem a proibições estranhas ou até absurdas. Vejamos: os suíços são muito zelosos na luta contra o ruído noturno. Daí que, a partir das 22 horas, é proibido descarregar o autoclismo, tal como é ilegal que um homem urine de pé durante a noite pois provoca ruído que os vizinhos não são obrigados a suportar. Até faz sentido a norma e devia ser imposta cá. Mas, se resolver fazer férias no Burundi e quiser correr em grupo, esqueça porque pode ir parar à prisão. O presidente do país proibiu as corridas em grupo com o argumento de que os participantes podem ser usados por pessoas que estejam a planear atividades subversivas contra o governo. Se lá for, corra sozinho para não ter as autoridades à perna! Já no Dubai, lembre-se que muitos casais estrangeiros foram presos por não cumprirem as normas ao beber álcool ou andar bêbado em público, dançar na rua e algumas demonstrações de afeto entre o casal como beijos ou mãos dadas, drogar-se e até amaldiçoar. Se gosta de cantar Karaoke, tenha muito cuidado nas Filipinas, onde levam isso muito a sério. Se desafinar ou cantar sem respeito por alguma canção, a coisa pode correr-lhe mal. E não tente cantar o My Way, de Frank Sinatra, para não aumentar o número já alto de assassinatos por causa da canção. Nisso de cantar, ou canta a sério ou não canta no Turquemenistão. O “playback” é proibido na TV e em eventos culturais, tal como a ópera e o ballet. Ambos são tidos por “desnecessários”. Os amantes da Coreia do Norte para viverem lá, têm de esquecer o uso de calças de ganga, saias compridas, sapatos compridos, T-shirts e certos cortes de cabelo, além dos piercings, para “prevenir a corrupção moral pública e evitar as tendências capitalistas”.                                                                                                            Se lhe passar pela cabeça de morrer no Reino Unido no interior do Parlamento, pode crer que não vai ter essa “sorte”, pois os contínuos retiram à pressa quem tenha um simples desmaio ou se sinta mal. É que morrer lá, dá direito a ser enterrado com todas as honras da coroa num funeral real. Se quer um funeral em grande, é o caminho! Em Singapura não use pastilha elástica e cumpra as regras a sério. Ou “está feito”! Em Eboli, na Itália, nada de dar beijos enquanto conduz, pois sai-lhe caro.                                                                                                Mas os Estados Unidos são o país rei das leis e proibições absurdas e, quando falamos de regras do trânsito, algumas roçam o ridículo. No Alabama, por exemplo, é proibido conduzir com os olhos fechados (eu já tentei aqui quando voltava para casa tarde da noite e cansado. Não é proibido, mas a coisa ia correndo mal). Mas, por incrível que pareça, já é autorizado conduzir em sentido contrário numa rua de sentido único, desde que tenha uma lanterna na frente do carro. As mulheres são discriminadas nalguns estados. Em Waynesboro (Virgínia), é ilegal que uma mulher possa conduzir por uma das ruas principais. Já no Tennesee, as mulheres podem conduzir um carro, desde que haja um homem a correr ou a caminhar à frente dela, agitando uma bandeira vermelha para avisar aos outros condutores e peões de que se aproxima. Em Portugal já vi uma coisa semelhante há muitos anos. Uma determinada mulher levava uma sobrinha com ela sempre que tinha de conduzir. Ao chegar a um cruzamento, a miúda saía para ver se vinha algum carro e só a mandava avançar quando não visse nenhum. Jogava pelo seguro …                                                       Na Califórnia, nenhum condutor pode saltar do seu carro quando este exceda as 65 milhas por hora (105 km/h), nem conduzir com uma bata vestida. Em Denver não se pode conduzir um automóvel negro aos domingos, enquanto na Geórgia não se pode cuspir de um carro em movimento ou dum autocarro, embora os condutores de camiões o possam fazer. Como os portugueses estão habituados a cuspir, julgo que também podem! E, finalmente, muita atenção. Se alguém deixar o seu elefante amarrado num parquímetro na Florida, tem de pagar a taxa de estacionamento como se de um carro se tratasse. Um último aviso: Se conduzir acompanhado de um gorila no Massachusetts, cuidado, pois a polícia pode multá-lo. Não sei se por pensarem que o gorila é quem vai a conduzir …

Uma Batalha épica, um Herói a sério, um esquecimento que não nos honra!

Como é possível serem os estrangeiros a colocar no topo dos grandes feitos da História a Batalha de Diu, entre portugueses e uma coligação de muçulmanos com apoio de Veneza, com uma estrondosa vitória dos nossos antepassados, enquanto nós, mudos e calados, ignoramos os nossos heróis a sério, talvez envergonhados de não os merecer e de nunca mais gerarmos quem sequer lhes chegue aos calcanhares? Foi uma vitória de aniquilamento total semelhante às batalhas de Lepanto, do Nilo, de Trafalgar e de Tsushima, assinalando o início do domínio europeu nos mares do Oriente e o recuo do poder muçulmano na Índia. O mundo académico questiona: o que são Leónidas ou o Almirante Nelson perto de Francisco Almeida? E onde está a merecida notoriedade deste homem?                                                                                                                  Dois anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia, os portugueses já sabiam que era impossível comercializar ali tão pacatamente como em África, pela oposição das elites mercantes muçulmanas instaladas, que incitavam ataques contra feitorias, navios e agentes portugueses, sabotavam os seus esforços diplomáticos e incitavam o Samorim de Calecute a matá-los. Ao saber, o rei D. Manuel I nomeou D. Francisco de Almeida vice-rei da Índia, com ordens para proteger as feitorias portuguesas, combater a navegação hostil muçulmana, tendo partido de Lisboa em 1505 com seu filho Lourenço de Almeida. Os interesses instalados dos muçulmanos e venezianos eram a causa. Incapazes de se oporem aos portugueses, os mercadores muçulmanos na Índia e o Samorim de Calicute pediram ajuda ao Sultão do Egito, com grandes interesses no negócio das especiarias para a Europa. Veneza rompeu relações diplomáticas com Portugal e enviou um embaixador à corte egípcia propor “remédios rápidos e secretos” contra os portugueses. Assim, Veneza cedeu aos mamelucos naus e galés de guerra, para a expedição que incluía mamelucos, turcos, núbios, etíopes, artilheiros venezianos, tendo chegado a Diu em Setembro de 1507. Meliqueaz, governador de Diu, apesar das relações convenientes com Portugal, aceitou colaborar com Mirocem, comandante da coligação. Em Março de 1508, esta atacou uma frota portuguesa comandada por Lourenço de Almeida, de 150 homens. Apanhado desprevenido por confundir os navios inimigos com os de Afonso de Albuquerque, a vitória pendeu para os muçulmanos que perderam 700 dos seus 800 homens, tendo morrido 70 portugueses. D. Lourenço morreu e o corpo nunca foi encontrado. Ao saber da morte do seu único filho, D. Francisco de Almeida revoltou- se e prometeu vingar-se, tendo dito, supostamente, que “quem comeu o frango, há-de comer o galo ou pagá-lo.” Quando estava a partir, em 6 de dezembro de 1508, chegou Afonso de Albuquerque com ordens do rei D. Manuel para substituí-lo como governador. Mas a intenção de destruir a frota muçulmana tornou-se uma questão pessoal e recusou que o sucessor nomeado tomasse posse. Ao fazê-lo, estava em rebelião oficial contra o rei. A 9 de dezembro, a frota saiu de Cochim rumo a Diu, indo por Calecute, Baticala, Onor, Chaul e Bombaim. Aqui, Francisco recebeu carta de Meliqueaz a querer apaziguar o vice-rei, dizendo que entregaria os prisioneiros e que seu filho havia combatido dignamente. O vice-rei respondeu a Meliqueaz em tom respeitoso, mas ameaçador: “Eu o vice-rei, digo-te honrado Meliquaz, capitão de Diu, que vou com os meus cavaleiros à tua cidade, lançar a gente que aí se acolheu depois de pelejarem em Chaul com a minha gente e mataram um homem que se chamava meu filho; e venho com esperança de Deus do Céu tomar deles vingança e de quem os ajudar; e se a eles não achar não me fugirá a tua cidade, que tudo me pagará, e tu, pela boa ajuda que foste fazer a Chaul; e que tudo te faço saber para que estejas bem preparado para quando eu chegar, porque vou de caminho …”                                                                                                              A 2 de fevereiro de 1509, os portugueses avistaram Diu. Tinham 18 embarcações e 1000 a 1500 homens. À espera estava a armada da coligação com 120 a 200 embarcações e cerca de 5000 homens. Às 11 horas da manhã do dia 3, a bandeira real foi içada e um único tiro deu início à batalha. Um bombardeio geral entre as duas forças precedeu o combate e os portugueses usaram tática inovadora de artilharia ao disparar tiros rasantes com as balas a ricochetear nas águas, como pedras. A Santo Espírito afundou logo um dos navios muçulmanos. A nau capitânia egípcia acabou por ser tomada depois de escaramuças. Mirocem manteve os navios de remo dentro do canal para atacar os portugueses por trás, mas João da Nova percebeu e bloqueou o canal com a Flor do Mar, impedindo a saída dos navios, que passaram a ser um alvo ideal para os artilheiros da Flor do Mar que disparou mais de 600 tiros. Os portugueses dominaram todos os barcos. As caravelas colocaram-se entre os navios e a costa, matando todos os guerreiros muçulmanos que tentavam alcançar a margem e afundaram a última nau ao anoitecer, dando-se por finda a Batalha de Diu, que se saldou numa vitória retumbante dos portugueses. Meliqueaz devolveu os prisioneiros de Chaul e Almeida recusou-se a apossar-se de Diu, mas obteve dos mercadores que financiaram os muçulmanos uma quantia avultada em ouro. O aniquilamento foi total ao ordenar que fossem todos enforcados, queimados vivos, despedaçados ou amarrados às bocas dos canhões, em retaliação pela morte do filho. Após a batalha, Almeida relatou ao rei D. Manuel: “Enquanto fores poderoso no mar, manterás a Índia como tua; se não possuíres este poder, pouco te servirá uma fortaleza na costa.” Em novembro de 1509, entregou a Afonso de Albuquerque o governo da Índia e partiu para Portugal. Não chegaria ao destino, morto numa escaramuça no Cabo.                                                                                             A Batalha de Diu é tida como uma das batalhas mais importantes da História. No seu livro 50 Battles That Changed the World, William Weir classifica-a como a 6ª mais importante da História. E diz mesmo: “Quando o séc. XV começou, o Islão parecia pronto a dominar o mundo. Tal perspetiva afundou-se no Oceano Índico ao largo de Diu”. Almeida, ao aniquilar a frota muçulmana, não só vingou o filho, como foi responsável pela criação do primeiro Império global da História e ensinou a Europa qual o caminho para o topo do mundo: o poder marítimo. Tudo isso na decisiva Batalha de Diu. A partir daí, Portugal dominaria a maior parte do comércio oriental, destruiria a antiga rota da seda, levaria Veneza e dezenas de estados islâmicos à falência e tornar-se-ia na primeira superpotência. Os muçulmanos que viam o mundo afundar, acreditavam que a vitória portuguesa só podia ser por vontade de Deus e não havia nada a fazer. Porque ignoramos esta página nobre da nossa História? Porque esquecemos esse Herói, cuja memória deveria ser imortal, ao levar este pequeno país ao estatuto de potência global? Provavelmente, não somos mesmo dignos dele e de todos os seus Homens …

Que os “caminhos públicos” não sejam um obstáculo …

Tive de ir ver algumas matas nas encostas da serra de Barrosas, o que tem sido muito difícil pelo estado miserável em que se tem encontrado o caminho que lhes dá acesso, público, mas esquecido pelos poderes públicos, com regos que mais parecem regatos depois da tempestade. Só esteve bem cuidado e perfeitamente acessível enquanto serviu para palco da classificativa do Rali de Portugal. É que, os pilotos e o público, mereciam essas atenções por parte do poder autárquico e, o que não era de desprezar: dava nome à terra e algum prestígio aos políticos. Mas, foram-se as etapas de estrada do Rali, em Lousada, e o caminho por onde podiam passar tão bem quaisquer carros desportivos, virou caminho de cabras, por onde, para se andar em certas ocasiões, só de galochas e muito cuidado para não cair no fundo dos enormes regos. Esquecidos e ignorados ficaram os proprietários dessas matas e da atividade florestal que estas permitem, pela dificuldade no acesso. Ali encontrei camiões, máquinas e tratores a cortar árvores, preparar toros, carregar e transportar. 

Mas se não fosse um arranjo precário do caminho feito pelos interessados, no caso a Navigator, antiga Portucel, que explora muitas matas na área, bem podiam esperar sentados pois não conseguiriam tirar de lá um pau sequer. E, seria bom lembrar, que a exploração da floresta é uma atividade económica criadora de riqueza como qualquer outra atividade e que deveria merecer a mesmíssima atenção do poder público que outras recebem. Mas todos sabemos que, compor um caminho no meio da serra, onde não há sequer uma casa, muito menos pessoas para “verem isso e saberem” que se está a fazer obra pública, não é interessante, para não dizer o que não dá. É verdade que, para já, os eucaliptos não votam nem elegem ninguém. Porém, os proprietários não deviam ser cidadãos de segunda e, em caso de incêndios nas matas, os Bombeiros também se veem “gregos” (e não vou dizer “negros” e ser acusado de racista) para lá chegarem.

Mas tudo isto vem a propósito de que, quando cheguei ao alto e bem lá no meio das matas para onde tive de ir num veículo “todo-o-terreno” e com tração às quatro rodas, enquanto aguardava a chegada de outra viatura estive a observar o trabalho efetuado por uma máquina de “lagartas”, do tipo “giratória”, tendo na ponta do seu braço uma cabeça “processadora” de árvores. Com os eucaliptos cortados, permitia-lhe agarrar no eucalipto inteiro pelo pé como se fosse um palito, fazê-lo passar pelo seu interior ao mesmo tempo que lhe cortava os ramos (e também descasca se os rolos forem helicoidais), proceder ao seu traçamento em toros, num controle total das operações e com uma precisão inigualável das medições de corte, um processo rápido e de forma que fazia com que tudo parecesse muito fácil. E era. O ritmo de trabalho da máquina (e manobrador) era impressionante, pois não demorava sequer um minuto (estatisticamente são 40 segundos) a pegar num eucalipto de vinte metros de comprimento pelo pé como se tratasse de uma pena, a fazê-lo passar pelo meio da “garra”, esgalhá-lo e cortá-lo em toros. E no minuto seguinte saltava para outro e outro, e assim sucessivamente, num processo contínuo de alta produtividade. Além de “esgalhar” e cortar em toros, estes eram deixados em rimas e prontos a carregar para camião, que os levaria à fábrica onde seriam processados. Também os ramos eram amontoados para depois serem retirados ou moídos e deixar as matas limpas. Na Suécia, país onde a exploração florestal é levada muito a sério, até já estão a ensaiar uma máquina florestal autónoma com cabeça processadora que pode ser controlada com controle remoto ou programada para fazer o trabalho por conta própria, sem intervenção do ser humano e equipada com sensores de segurança para parar sozinha sempre que alguém chega muito perto.          

Fiquei a pensar na forma como tudo isto era feito quando era criança. O trabalho realizado por esta máquina durante um dia deve ser igual ou superior ao de um homem desse tempo durante um ano. Ainda me parece estar a ver dois homens agarrados a um “serrão”, cada um do seu lado, para “deitarem abaixo” um eucalipto, depois de lhe terem feito um corte com um machado para o orientar na queda. Seguia-se o “esgalhar da árvore” com um machado e a marcação do tamanho de cada toro usando para o efeito uma vara como “bitola”, que tinha a medida certa. E então, com o “serrão”, os dois homens iam cortando o eucalipto em toros, que ali ficavam. Como eram muito pesados, para os movimentar usavam uma “junta de bois” e um cadeado para os atar e levar por arrastamento. Mas, para os carregar num “carro de bois”, o transporte dessa época, era a força dos homens que valia, já que não havia gruas nem guindastes mecânicos para substituir a força do braço humano. 

É extraordinária a evolução técnica e científica que permitiu chegar a esta situação, excelente em termos de produtividade e alívio do esforço humano no processo, pelo que hoje não faz sentido e não é de todo rentável, fazer a exploração das matas de forma artesanal. Se os colocasse lado a lado, enquanto os 2 homens davam conta do corte, desrame, traçamento e carga de 2 eucaliptos em oito horas, 1 por cada homem, a máquina (e um manobrador) aviavam cerca de 500. Uma diferença abismal …  

Nem dá para comparar estas duas realidades, de hoje e de há 50, 70 ou mais anos, pela enorme diferença entre a quantidade de trabalho feito e consequente criação de riqueza. E, o que acontece com a exploração dos recursos florestais, passou a acontecer com a exploração de outros recursos e a produção de todo o tipo de bens com as indústrias e todos os avanços tecnológicos e científicos, em regra com maior comodidade e menor esforço físico no trabalho. Foi esse caminho que nos fez passar de uma sociedade agrícola, onde a pobreza era tal que só quem por ela passou e viveu é que percebe, para uma sociedade industrial de muito maior produção de riqueza e bens, acessíveis a toda a gente, embora a distribuição dessa riqueza seja muito questionável.

Soubessem os seres humanos serem contidos no consumismo, no desperdício, nos excessos, nas manias de grandezas absurdas, de respeitar os direitos de outros seres humanos, da importância da solidariedade, de ter consciência que têm um “prazo de validade muito limitado” e que, ao ir para o “outro lado”, vão despidos de tudo, até da ilusão, para que a riqueza criada pudesse estar ao serviço de todos e não só de uns quantos. 

Mas para a criação de riqueza é muitíssimo importante que os governantes, lá de cima até bem cá em baixo, não esqueçam que têm a obrigação de cuidar para que “todos os caminhos públicos” estejam “transitáveis e em boas condições de acessibilidade”, num serviço público muito além da obrigação, e que não continuem a ser o maior obstáculo à sua criação, como vem acontecendo com demasiada frequência!   

O valor que pode ter um presunto …

Há “um bom par de anos”, julgo que ainda no século passado, quando ao fim do dia cheguei a casa disseram-me que me tinham trazido um presunto. “E quem foi que trouxe o presunto”, perguntei? “Foi uma mulher”, ouvi como resposta. “Como se chamava a mulher” voltei a querer saber? “Não disse o nome”, responderam-me. “E que disse ela”, insisti? “Para lhe entregar o presunto”. Pedi para o guardarem porque, entretanto, alguém se deveria “queixar”. Mas os dias foram passando e ninguém deu sinal de vida. Quase um mês depois, disseram-me que o presunto estava cheio de bolor e que, ou se comia ou ele ia estragar-se. Nesta situação, pedi para o partirem, distribuir e deixarem-me pouco, por causa da minha tensão arterial. E, para minha surpresa, a “prenda” continuava sem ter “madrinha”.

Entretanto, um velho amigo tinha-me pedido para lhe fazer um favor, não propriamente para ele, mas para uma senhora sua amiga que vivia no Porto e estava “presa” a uma cadeira de rodas, fruto da sua doença, esclerose múltipla, e que não se podia deslocar. Ela era dona de uma quinta agrícola na região e o seu solicitador e procurador, andava à  volta dela a tentar comprar-lha por dez mil contos, mas ela achava pouco e que ele a estaria a querer enganar. Ora, para não se “espetar”, precisava de alguém que lhe avaliasse a propriedade e ele lembrou-se de mim por considerar que eu era de confiança. Agradeci o elogio, pois nos tempos que correm saber que ainda somos de confiança para alguém já é um orgulho, e aceitei fazer à avaliação, tendo-lhe dito que, na primeira ida ao Porto, lhe telefonaria para podermos ir a casa da sua amiga falar sobre o assunto e recolher os documentos necessários. Passadas cerca de duas semanas combinamos, fomos a casa da senhora e recolhi as cadernetas prediais, pedindo para telefonar aos caseiros a avisar que, logo que eu pudesse, passaria por lá para visitar todas as matas e campos da quinta. Tal visita veio a acontecer umas semanas depois, tendo eu recolhido as informações necessárias para fazer a avaliação e um pequeno relatório que lhe permitisse perceber o valor de cada parcela. Depois, quando pude voltar ao Porto, fui visitar a proprietária, entregar-lhe o relatório e dizer-lhe que, mesmo tendo “avaliado por baixo”, o valor mínimo da quinta era de vinte e cinco mil contos. Ela sorriu e disse-me: “Bem me parecia que ele queria enganar-me. Já agora, peço-lhe outro favor: Não se importa de me tratar de vender a quinta”? Acabei por lhe dizer que sim com duas condições: Que definisse qual o valor mínimo que queria pela propriedade e que o primeiro a saber e ser ouvido deveria ser o caseiro, pois poderia estar interessado. Ela aceitou os vinte e cinco mil contos como valor mínimo e concordou igualmente em que eu consultasse o caseiro em primeiro lugar. Depois desta ida ao Porto estive cerca de duas semanas fora e só mais tarde pude voltar à quinta. Recebeu-me a caseira, que já conhecia quando da avaliação, e contei-lhe o meu papel neste processo e aquilo de que a senhoria agora me incumbira. Por isso, estava ali para lhe perguntar em primeiro lugar, se tinha interesse em comprar a quinta. Ela manifestou logo ter interesse na propriedade e então disse-lhe que o preço atribuído era de vinte e cinco mil contos. Ela olhou-me fixamente e respondeu: “O senhor vai vender-me a quinta por onze mil contos”. Nem quis acreditar no que ela disse. Voltei a explicar-lhe calmamente que eu não era o dono, que a dona era a senhoria dela e que fora ela quem definira o valor da quinta e não eu. Eu só fizera a avaliação. Por isso, a quinta custava vinte e cinco mil contos. Mas ela não desarmou e, com convicção redobrada, voltou a afirmar: “Mas o senhor vai vender-me a quinta por onze mil contos”. Eu repeti os mesmos argumentos e mais uns quantos para lhe fazer ver que a quinta não era minha, que não fora eu a definir o preço mínimo e que não podia vender-lha pelo preço que ela estava a dizer. E ela lá continuou no mesmo registo: “Mas o senhor vai-me vender a quinta por onze mil contos”. Eu bem mudava o tipo de argumentação, mas ela repetia sempre a mesma “cassete” de que eu lhe ia vender a quinta por aquele preço irrisório. Às tantas, já farto daquela conversa sem sentido, perguntei-lhe: “Já agora, diga-me lá, porque é que eu lhe vou vender a quinta por onze mil contos”? E com “uma grande lata”, boa dose de descaramento e crédula no que afirmava, ela confessou as suas razões com toda a convicção: “Porque eu já lhe levei um presunto a casa” …

Instintivamente, dei uma gargalhada e respondi-lhe com a exclamação: “Até que enfim que sei quem levou o presunto a minha casa! Deixe-me dizer-lhe que o preço da quinta se mantém nos vinte e cinco mil contos e que só não lhe devolvi o presunto por não saber quem o entregara. Mas, se quiser, pode ir buscar os restos porque já começamos a comer dele antes que se estragasse” … 

Atribuir o valor de catorze mil contos a um presunto é algo de surreal, é uma coisa em que ninguém acreditaria, ainda que se tratasse de um “pata negra”, o rei dos presuntos. Não passa de uma “santa Inocência” e uma grande ilusão, para a qual é preciso ter “muita lata”. Mas, o pior de tudo é que, esta “arte” que começa com o “pode fazer-me o favor de dar um jeitinho” e não se sabe bem onde acaba, instalou-se na sociedade, cresceu, normalizou-se e banalizou-se, passando a fazer parte da nossa cultura e já não há entidades policiais nem justiça capaz de travar tal “epidemia”, que é transversal a toda a sociedade, conforme provam os muitos casos que têm vindo a público e que não são mais do que  a “pontinha de um enorme icebergue”. Não me achando eu melhor nem pior do que ninguém e apesar dos muitos defeitos que possa ter, e tenho, acreditar que fosse hipotecar a minha honestidade e honra a troco deste “tão valioso presunto”, é sinal de um completo engano. Encaixando-se perfeitamente neste contexto, recordo as palavras sábias de um homem íntegro, antigo chefe e velho amigo, já a olhar-me “lá de cima”: “Nesta vida, todos nós nos vendemos. Eu só não sei ainda qual é o meu preço” …