“Olhei para os animais abandonados… os renegados da sociedade humana. Vi nos seus olhos amor e esperança, medo e horror, tristeza e a certeza de terem sido traídos. – Deus, isto é horrível. Porque não fazes nada Senhor? E Deus respondeu: – Eu fiz. Criei-te a ti”.
Não sinto vergonha ao dizer que me comovi quando li este pequeno texto, de uma riqueza extraordinária, uma chamada à consciência de todos nós… animais, ditos… racionais.
Quanto mais leio sobre as características e a índole dos animais e as comparo com os traços e comportamentos dos homens, mais humilhante é o resultado para nós. A vida é tão preciosa para um animal irracional como é para um animal… racional. Um e outro procuram ser felizes, temem a dor e o sofrimento, querem viver e não morrer.
Dizia J. J. Rousseau que “os animais devem participar do direito natural e o homem é responsável no cumprimento de alguns deles, especificamente um tem o direito de não ser maltratado pelo outro”. O abandono e os maus tratos de animais, especialmente os domésticos cão e gato, são um problema cada vez maior, sobretudo nos grandes centros urbanos do ocidente, onde o avanço da civilização devia ser mais… civilizado.
As modas que passam e as dificuldades económicas dizem-se ser as principais razões do abandono de animais mas, inquéritos realizados em relação a cães, apontam como principais razões por ordem de importância, “porque sujam a casa” e porque “destroem o exterior da casa”.
Chegadas as férias, os animais são um estorvo e por isso são abandonados para se poder viajar ou, pior ainda, amarram-se em casa sem quantidade de água e alimento suficientes para os dias de ausência.
Quem o faz não deveria ter o direito… que lhe fizessem o mesmo? Se possível com açaime, para não morder os móveis? Quanto a maus tratos os casos são imensos, alguns de uma crueldade intolerável. E quando se permite e ensinam crianças a serem cruéis com os animais, alimentando-se o prazer com a miséria dos seus semelhantes, abre-se a porta a futuros delinquentes com tendências para o caminho do crime.
Os animais não são propriedade do homem para este disporem deles como se de coisas se tratassem, meros elementos decorativos de uma qualquer moda passageira de que se descartam facilmente quando passa, lixo vivo jogado fora como subproduto do homem, sujeitos ao bom ou mau trato, a carícias ou pancada, afagos ou tortura, conforme o humor, a disposição ou a lua do dono, porque o seu clube perdeu, zangou-se com alguém ou bebeu uns copos a mais e porque acha que lhe foi conferida superioridade sobre o animal. Aliás, a nossa superioridade sobre os animais está na capacidade de nos tornarmos… burros.
Admiro os protetores de animais, pessoas que, individual ou coletivamente, colocam amor no que fazem porque querem ajudar a melhorar o mundo em que vivemos e isso lhes basta para se sentirem realizados. E é triste que sobre eles se lance frequentemente essa imagem preconceituosa de se tratarem de velhos, solitários, sem família nem vida particular e desequilibrados. É mais uma forma de maus tratos, desta vez ao protetor e cuidador. Mas afinal a que propósito vem isto?
Ah, já ia perdendo o fio à meada pois o que queria dizer é que ao fim de mais de vinte anos consegui reunir o consenso familiar para voltar a ter um cão em casa, o que não foi fácil.
O primeiro que tive foi-me oferecido por familiares que moram perto de Seia, a quando do nascimento do meu filho mais velho. E, como é natural naquela região, foi um “Serra da Estrela”. A vida quase nómada que eu tinha na altura não me permitiu usufruir plenamente do prazer de ter um cão, o primeiro dos animais domesticados há alguns milénios atrás.
Também não fui eu que cuidei dele ao longo dos doze anos de vida, num tempo em que não existia a comodidade das rações de hoje e, por isso mesmo e para não vir a sofrer novo desgosto, a minha mulher recusou-se a aceitar outro para ocupar o lugar do Dick.
Tomada a decisão de ter novamente um cão, havia que escolher a raça do novo membro da família em função dos nossos objetivos. Ponderei diversas raças, vi sites, estudei criadores, mas um dia a Teresa, que trabalha comigo há uns anos, lembrou-me, e bem, para ir ver o que havia no canil municipal.
Nunca tinha entrado num canil e foi com curiosidade que o fiz e, embora este fosse pequeno, sem grandes condições e com poucos animais, impressionou-me o olhar daqueles cães um pouco amontoados, como que pedindo “salvem-me”.
Escolhi uma cadela “Pastor Alemão” como poderia ter escolhido um “rafeiro”, sem me preocupar em saber do seu “pedigree” ou de onde viera, porque não era isso que me interessava nem a razão porque estava ali.
E estou feliz. Estou feliz por me ter dirigido ao canil municipal e não ir atrás de um criador, e recomendo que esta deve ser sempre a primeira opção, com a vantagem de poder-se alargar a escolha a muitos outros canis e a custo zero. E há lá tantos olhares de desespero, à espera de alguém que os adote…
Estou feliz por ter salvo um animal e poder dar-lhe um lar. E não é todos os dias que o consigo fazer. Estou feliz porque esta opção, para além de gratificante, poupou-me tempo e dinheiro. Estou feliz porque estou a recuperar um animal traumatizado, cheio de medos, penso que por maus tratos. Estou feliz porque voltei a encontrar o entusiasmo de criança. Estou feliz porque tenho alguém que não se importa se sou rico ou pobre, gordo ou magro, se vivo em mansão ou em barraca, nem qual a cor da minha pele, o meu clube ou a minha religião. Só quer comida e água limpa, cuidados, carinho e respeito para poder entregar-se.
E, em contrapartida, não difama ninguém, não se importa com aparências, não me trai e está sempre disposto a fazer-me companhia. Saiba eu corresponder a esta entrega. Aceito que todos têm o direito de ter um ou vários animais, mas só o direito. Porque se não podem cuidar deles, se não têm condições para os acolher, se não souberem respeitá-los, não podem ter animais ao seu cuidado.
Deveria existir um serviço público com equipas de avaliação, a exemplo das que existem na Segurança Social para a adoção de humanos, que avaliassem previamente a capacidade do candidato à adoção de animais. Evitar-se-iam muitos casos de abandono e maus tratos.
Atenção que os cães não são seres humanos, mas são seres… canídeos. Uns e outros têm direitos, a maioria comuns, mas cabe ao homem cuidar do seu cão, de lhe dar o que não se compra em lado nenhum: Tempo e atenção. E em contrapartida receberá dele o que nunca receberá de nenhum ser humano em lealdade, fidelidade, amizade, dedicação e disponibilidade, porque a sua alma não conhece nem malícia nem falsidade.
Diz-se que “o cão é o melhor amigo do homem”. Se os cães falassem, em muitos casos perguntariam: – Que raio de amigo eu arranjei”. Será que a amizade entre amigos não deve ser recíproca? Parece que não porque “no inferno dos animais, são os homens os seus demónios”.
É o cão que nos acompanha, sempre com a mesma alegria natural, debaixo de chuva torrencial ou sob forte calor, nos guarda e protege, sempre mas sempre, o amigo mais fiel. Podemos ser traídos por conhecidos, amigos ou até filhos, mas não se é traído pelo nosso cão. São inúmeros os casos de dedicação, de fidelidade, de ajuda e de coragem de tantos cães, numa manifestação de lealdade e fidelidade infinitas.
Mas não resisto a destacar o Hachiko que vivia em Tóquio com o seu dono, o professor Ueno. Todos os dias o acompanhava à estação de comboios e ia esperar, até o professor morrer na Universidade. O cão foi doado a outra família, mas voltou à estação ao longo de quase dez anos diariamente, até morrer, esperando em vão a chegada do professor. E o cão escocês Bobby, que guardou o túmulo do seu dono durante os catorze anos que lhe sobreviveu… E somos nós os seres superiores, os donos dos sentimentos… A propósito de um certo cão, dizia-me um amigo: “Só lhe falta falar”. Para quê, se “as mais lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar”.