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Fui ao bruxo, para conhecer o futuro

Há dias acordei ansioso, querendo conhecer o que nos está reservado para o futuro. Não para conhecer antecipadamente os números do euromilhões, algo em que “ninguém está interessado”, mas somente aquelas coisas que são parte da nossa vida comum, como saber onde guardar o dinheiro (se é que ainda existe dinheiro e algum local seguro…), quem vai ser o campeão nacional (e não importa de quê) ou até onde vai a seleção portuguesa no próximo mundial, agora que carrega o “fardo” de ser campeã da Europa. Mas, a adivinhação tem muito que se lhe diga e só está acessível a cartomantes, astrólogos e bruxos. Ora, como não sou nem uma coisa nem outra (tanto quanto sei…), como “não tenho morada aberta” nem quaisquer “ligações ao além”, apesar de tentar fazer algumas previsões, “ainda não dei uma para a caixa”, nem sequer numa rifa foleira.

Tendo sido criado num tempo em que, desses três “dotados” com tais “dons”, só havia bruxos, achei por bem recorrer aos serviços de um, até porque segui o velho dito popular de que “não acredito em bruxas mas, que as há, há”. Confrontei-me logo com um problema: Como nunca fui um “utilizador” deste tipo de “ajudas”, tive de perguntar a pessoas que recorrem a elas com certa regularidade, gente essa bem “informada”.

Outrora, ouvia falar no “bruxo de Figueiras” e no “bruxo de Fafe”, mas não sei sequer se ainda “veem” o futuro ou se estão na reforma e já são coisa do “passado”. Daí o meu pedido de informação aos “clientes habituais”, com cartão de assiduidade e direito a pontos, como nos supermercados. Ora, isto não é tão fácil como eu pensava. Para me darem a informação correta, quiseram saber o que é que eu verdadeiramente pretendia. Perguntaram-me se andava à procura de “amor”. Se fosse o caso, tinham uma “receita caseira”, um método simples de bruxaria sem ter de ir ao bruxo (tal como os remédios que prescrevemos uns aos outros, como se fossemos médicos…), que implicava incenso de rosas, pétalas de rosas a decorar um altar, uma fita cor de rosa, a imagem de Vénus, papel e caneta. “Não, não é nada disso”, disse em tom firme. Então, o que eu pretendia era “rogar uma praga” ou fazer “um mau olhado” a alguém? Para não arranjar mais confusões, tive de os informar que somente queria saber “umas coisas” sobre o futuro.

Foi assim que acabaram por me “recomendar” um bruxo que vive isolado e muito longe, suficientemente longe para me dissuadir de ir lá apresentar qualquer reclamação no caso das suas previsões “saírem furadas”, inclusive de pedir a devolução do valor cobrado. Marcaram-me “consulta” e lá fui eu satisfazer esta necessidade que sentia em mim, acabando por sair satisfeito com o “serviço” que me prestou, apesar de se fazer pagar antes e bem.

Esta coisa de “ir ao bruxo”, apesar de já não ser o que era, é algo que se faz, mas que não se confessa. Não faltava mais nada. Olha se o povo soubesse que aquele fulano vai ao bruxo? Seria motivo de cochichos e conversas de esquina. Mas, na verdade, há muito mais gente do que pensamos a recorrer aos seus serviços. É que, diz-se, quem precisa recorre a tudo. Na doença, começa-se pelo médico, depois o endireita (agora medicinas alternativas), além da “mulher com morada aberta” e, esgotadas as opções sem que o mal esteja resolvido, alguém sugere a cartomante, o astrólogo e o bruxo, para não falar no espiritismo. E, por fim, o exorcista. E não se diga que quem lá vai não tem formação cultural nem condição económica. Puro engano. Vão lá de todas as condições sociais, unidos por um fator comum: Todos carregam um problema para resolver. Dinheiro, negócio, saúde física e psíquica, amor, conflitos com alguém, são os motivos mais comuns para quem procura o bruxo (e eu nem sou bruxo).

Ora, como as “previsões” da minha ida virtual ao bruxo podem ser do interesse dos leitores, não quero deixar de as partilhar neste jornal, para os manter a par de informações de tão doutos visionários. Recomendo que a sua leitura deve ser feita na companhia de outras pessoas porque as revelações poderão “chocar” os espíritos mais sensíveis. Vá lá, chame a vizinha e deem a mão, mas não se aproveite para “apertar” com ela. Assim, vamos às previsões:

“Tanto o Tondela como o Arouca, não serão campeões esta época”. Ora, uma previsão deste tipo é realmente chocante para os habitantes das duas cidades.

“Não há corrupção em Portugal”. O homem vai acertar na “mucha”… Todos os processos contra cidadãos que, por acaso, e só mesmo por acaso, passaram a ter uma vida muito boa de repente, vão cair de maduros. Isto só vem provar o que eles afirmam: São inocentes e até vítimas do zelo da polícia e de juízes invejosos, que gostariam de ganhar tanto como eles, sem ter de se esfalfar a julgar montanhas de processos. Não têm culpa de ganhar tanta “massa” com facilidade. Saibamos “aprender” com eles, pois são “autênticos profissionais” …

“Neste mês de Dezembro, há Natal”. Não conseguiu prever com exatidão o dia pois, no momento em que o ia fazer, deu um espirro monumental e fiquei sem saber se foi provocado pelo frio ou por alguma alergia ao pó que se acumulava em cima da mesa…

“Os portugueses vão ter um futuro mais amargo”. Que visão. Será que foi por isso (previsão) que o governo “azedou” os impostos sobre o açúcar e produtos açucarados?

“Quem gastar mais do que ganha, tem de ir às poupanças ou fica a dever”. Ora, nesta é que eu não acredito, nem nenhum português. Porque, o que nos andaram a dizer nas últimas quatro décadas, foi precisamente o contrário: “Gastem, como se não houvesse amanhã”.   

Quando contei a um amigo que tinha ido ao bruxo, a sua primeira reação foi: “E ele acertou”? Respondi instintivamente: “Se acertou… Foi mesmo em cheio!!! Antes de fazer as previsões, disse-me: -Passe-me cento e cinco euros da consulta. Ora, como é que ele sabia que era precisamente o dinheiro que eu tinha no bolso”???

Afinal, quem é dono de quem?

Ser dono da sua habitação, é o sonho da maioria dos portugueses. Eu incluído. E se puder ser uma moradia … É uma “tontice”, como tantas outras que nos passam pela cabeça ou, pior, que nunca de lá saem. Mas sonhar ser dono da sua própria habitação é assim tão estúpido? Não. Se for só sonhar, não é. Estúpido mesmo, é ser proprietário, “suposto dono”. Sim porque, a partir do momento que tal acontece, pensamos que somos “donos”. E eu disse “pensamos”.

Depois de casar, fui viver para um apartamento arrendado. O “dono” mandou-o pintar antes de me entregar as chaves. A meu cargo, ficou a mobília para a cozinha, um quarto e parte da sala, tal como os eletrodomésticos que o “Guerrilha” me vendeu. Não havia dinheiro para mais. Os fornecedores montaram tudo. Trabalho meu, pouco. E pedi a ligação de eletricidade e água. Com o apartamento em si, não tive de me preocupar. Nem antes, nem depois. Se havia um problema, comunicava ao senhorio e este mandava compor. Não era comigo. Ele que se “desunhasse”. Mas, nesta vida nunca estamos satisfeitos com o que temos e, como qualquer bom estúpido, pensei construir a minha própria casa.

Sonhava com uma moradia, onde não tivesse de ouvir o vizinho de cima a puxar o autoclismo ou mesmo a “gemer” enquanto fazia força na sanita ou a vizinha do lado a “gemer”, mas por outras boas razões. Quando arranjei dinheiro para o terreno, comprei, paguei e fiquei tão “liso” como um pneu usado. E, como pensava que sabia alguma coisa de desenho de construção civil, fiz o projeto de uma casa, linda de morrer naquela fotografia da revista francesa de onde o copiei. Mas, quando um empreiteiro me deu o orçamento provisório, a “casa de sonho” ficou só no sonho. Nessa noite fiz um projeto mais “acessível” para uma bolsa vazia. Se agora é uma dor de cabeça mandar construir moradia, naquela época nem se fala. Como qualquer português que se preze, optei pelo orçamento mais baixo. O empreiteiro era da minha aldeia e, para me influenciar, “vendeu” as suas supostas qualidades de construtor ao meu pai, nesse tempo já cego e muito doente. Entreguei-lhe a obra porque não tive orçamento mais baixo e meti-me num rico sarilho e numa carga de trabalhos.

Seria penoso para quem lê esta crónica ter de seguir a “Via Sacra” que percorri durante a construção da moradia e que só terminou quando me consegui livrar de tal “feitor de casas”, antes sequer de a concluir. Ora, para abreviar, vamos dar a casa por concluída e passar adiante, para ver se tenho descanso. Engano, puro engano. Em primeiro lugar, tive de me esfalfar a trabalhar para pagar o que me emprestaram. Foi a “massa” toda. TODA. E quando me livrei desse encargo, meti-me a construir anexos, muros, e mais anexos, e jardim, e mais anexos… Trabalhei muito para arranjar dinheiro, mas também “dando o corpo ao manifesto” na construção dos muros e anexos, com a ajuda do senhor Teixeira, onde fiz de pedreiro, soldador, trolha, serralheiro, pintor e não sei quantos ofícios mais. E foram muitos os trabalhos, gastos, sacrifícios, consumições e problemas, que davam para um filme que “nunca mais tinha fim”. Igual às telenovelas onde estão sempre a inventar mais enredos, problemas, traições, zangas de namorados, faltas ao casamento e tudo o que der para prolongar a sanha, numa “história interminável”.

Se quisermos ser realistas, somos pouco “donos” da nossa casa, mas muito escravos dela. Quantos de nós não tivemos de fazer enormes sacrifícios para a construir, abdicando de tantas coisas? Certo é que, depois de pronta, quando o nosso “Ego” está satisfeito, vem o estado “dizer-nos” que temos de “pagar renda”, pela casa que pensávamos ser nossa. Afinal, é nossa ou do estado? Se temos de pagar “renda” a alguém (e o estado chama à “renda” IMMI), quem é o “dono”? Para além dessa “renda”, ainda temos de investir constantemente sempre que o tubo rebenta, entope a fossa, entra água no telhado, a parede está rachada. E alguns investem mais para dar satisfação ao sonho antigo de ter uma piscina … Custa um dinheirão, mas ficam de bem consigo (atenção: fui burro, mas não cheguei a tanto). E o estado agradece, aumentando a “renda” … Mas não era suposto sermos só “donos”? Se a casa for do senhorio, ele que pague. O problema é dele. Mas, se nós formos tidos por “donos”, quem é que “está à pega”? Nós. Pagamos e não bufamos.

Também pensamos que, ao construir uma casa grande, vamos gozar a vida melhor, com os filhos… Eu disse filhos? Enquanto estão no berço, talvez. Estão por perto. Mas, mal crescem (e crescem muito depressa, talvez devido às vitaminas, à poluição, às hormonas e às alterações climáticas…), descobrimos que estamos sós, os velhos, a viver numa parte da casa porque o resto, já sobra. Mas continuamos a pagar “renda” da casa toda … “Ah, mas assim vamos deixar um património para os filhos, uma casa para viverem”, dirão alguns. Como? Para eles morarem? Só se não tiverem mais para onde ir. Caso contrário, não vão querer um casarão e vai ser um problema nas partilhas entre eles. O habitual. Se os pais que já partiram tivessem permissão para vir do “Além” corrigir um único erro dos muitos que fizeram em vida, é certo e sabido que, na grande maioria, desfaziam-se dos bens, a começar pela casa de família. Evitariam desavenças familiares e partilhas pela via judicial.

Cá por mim, há muito que perdi as ilusões e deixei de me considerar “dono” da minha casa. De maneira nenhuma. Não fui, não sou, nunca serei. Porque acho mesmo que “ela”, a casa, é que é dona de mim. De tal forma que, um dia destes, sem me pedir opinião, “despacha-me para o Além” e troca-me por outro “dono”. E eu não tenho direito a ter opinião, a reclamar e dizer que não quero ir, que eu ainda mando. Porque não é verdade. Eu vou e ela fica por cá, já com outro “pateta” a pensar, tal como eu o fiz, que é o “dono”. Como se fôssemos “donos” de alguma coisa…

Como andamos enganados. E iludidos!!!

Um americano foi à Índia ouvir os conselhos de um “Guru”. Ao entrar na sua casa, encontrou-o sentado numa esteira. Não havia mobília. Estranhando, perguntou ao “guru”: “Onde estão os seus móveis”? Mas ele respondeu-lhe com outra pergunta: “E onde estão os seus”? O americano, sem hesitar, disse: “Mas eu estou aqui de passagem”. E o indiano (e homem sábio), rematou a conversa: “Também eu”.

Não o calamos? Haja quem o faça…

O que se consegue fazer com este pequeno aparelho que os homens trazem sempre no bolso e as mulheres na carteira, é impressionante. Ao ver as inúmeras capacidades dum telemóvel, agora na versão “smartphone”, dou comigo a pensar que sou do “tempo da Idade da Pedra”. Só pode. Os muito poucos telefones que existiam na minha infância cá na terra, eram uma novidade. Para se telefonar, dava-se à manivela para chamar a telefonista que estava no edifício dos CTT na Vila e pedia-se a ligação para o número pretendido. Ela estabelecia a conexão de um telefone com o outro, enfiando a cavilha da extensão da uma linha no ponto de ligação do número pedido. Tudo manual. Por isso, estar agora sentado no meio da serra e poder fazer uma ligação direta para o meu filho na Colômbia, com imagem, é algo de surreal. Para quem veio de uma sociedade agrícola e com rudimentos de tecnologia, ainda parece inconcebível.

Também sou dos que andam com ele sempre enfiado no bolso das calças, com exceção dos fins de semana em que fica a “dormir” na sala. Estou (quase) sempre “on”. É bom? Não, não é. Apesar da utilidade, já tenho idade para ter juízo e usar o “animal” só mesmo quando é preciso. No entanto, ainda penso que os filhos podem precisar de mim ou tenha de resolver alguma coisa com urgência. Uma mania como outra qualquer. Se fosse à cinquenta anos, em que as comunicações à distância eram quase só por carta, resolviam-se os assuntos à mesma.

Hoje, o telemóvel faz parte da própria identidade da pessoa, havendo quem sofra e se sinta desconfortável sempre que não o tem à mão. “É como se estivesse nu”, dizia um jovem adolescente. Daí o problema que as escolas têm com o seu uso no espaço escolar. E não deve ser nada fácil conciliar posições tão divergentes sobre o proibir ou ser permitido em tal espaço. Mas existem muitas situações onde, das duas uma: Ou não há respeito pelo lugar onde se está e pelas pessoas ou é-se muito distraído ou… burro. Porque não há outra explicação.

Estava numa missa fúnebre com a igreja repleta de gente, onde imperava um silêncio pesado, só interrompido pelas palavras do celebrante e pela resposta dos fieis. Quando o padre fez o sinal da cruz para dar início à celebração, no silêncio da igreja ouviu-se uma música roqueira saída de um telemóvel, algures no meio dos fieis. A música tocou quatro ou cinco vezes e a maioria dos presentes ficou sem saber se foi interrompida pelo dono do telemóvel ou se quem chamou se cansou de esperar. O padre fingiu não ouvir e continuou, enquanto ao meu lado um homem tirava o telemóvel do bolso e o colocava no silêncio. O toque do outro lembrou-lhe que não “calara” o seu e deveria ter servido de aviso para todos os presentes. Situação normal, que pode acontecer a qualquer um, embora não devesse acontecer… Um pouco antes do padre fazer a homilia, no fundo da igreja ouviu-se outro a tocar, desta vez com um toque clássico de telemóvel. Senti mais uma mexida entre algumas pessoas, talvez para desligar ou verificar se estava desligada a sua “caixa de ruído”. Durante o resto da missa, “só” tocaram mais três telemóveis. Quanto ao primeiro, até admito que houvesse um esquecimento ou distração, que não deveria ter existido. Vamos dar-lhe o benefício da dúvida. Mas os outros… Com franqueza, não podia acontecer. Ou são surdos – e nesse caso ficaram a saber que têm de ir ao otorrino fazer um exame de audiometria para confirmar se há necessidade de prótese auditiva – ou são irresponsáveis – e pensaram ser aceitável e normal deixar que o telemóvel tocasse num lugar daqueles e naquela cerimónia – ou já conseguiram ser promovidos a imbecis. Será que não ficaram sequer um pouco incomodados quando tocou o primeiro telemóvel? Não se deram conta do “incidente”? Ou acharão mesmo que os telemóveis são para ser usados, seja em que espaço for? Não era nada comigo e senti-me constrangido…

Mas já assisti a outra situação semelhante, mas mais embaraçosa. Quando o celebrante distribuía a comunhão e no momento em que um homem abria a boca para receber a hóstia, do seu bolso saiu o malfadado toque musical, em jeito de contestação. E ele ficou tão “encavacado”, que já não sabia se havia de receber a comunhão ou “cortar o pio” ao telemóvel que, teimosamente, continuava a “berrar” dentro do seu bolso. Confrangedor… é o mínimo que se pode dizer. Tenho de reconhecer que a dignidade tem estado do lado dos celebrantes. Em regra, não reagem ou, quando muito, suspendem por instantes a celebração, como que a dar tempo (e oportunidade) para o “infrator” tomar consciência e desligá-lo. Só numa ocasião houve reação verbal do padre. Com muita subtileza, disse que “este não é o melhor momento nem o melhor local para se atender o telemóvel. Por isso, recomenda-se que esteja no silêncio ou desligado”.

Mas o mesmo acontece em sessões solenes e cerimónias diversas, onde os aparelhos electrónicos não são convidados nem devem ter voz… mas têm. E quando não é conveniente. Não adianta, somos como somos. Na realidade não somos um bom exemplo no respeito pelos outros e pelo local onde estamos em certos momentos. Talvez porque o telemóvel esteja primeiro. É sagrado.

Só encontro uma saída para resolver estes incidentes. Por muito que nos custe, devemos ser tidos por irresponsáveis compulsivos e, por isso, ser tratados como tal. Assim, só colocando um equipamento técnico que bloqueie todas as comunicações dentro do espaço que se pretende livre de “intrusões” indesejadas será possível acabar de vez com elas. Senão, vem sempre a desculpa do “esqueci-me”, “pensava que estava no silêncio”, “estava à espera de uma mensagem”.

Diz o povo que, “para grandes males, grandes remédios”. E isto precisa de um remédio. E grande…

Quem decide o que compramos? Nós?

Sábado de tarde. Tive de ir a três supermercados cá da terra para comprar aquilo que desejava. E não enchi nenhum carrinho de compras. Eram só quatro artigos. Numa das superfícies comerciais encontrei o senhor João, que já não via há alguns anos, desde que se reformou. Entre cumprimentos, perguntar pela família e o que faz, fiquei a saber que vai lá três dias por semana, uma delas ao sábado. Para quê? Para ver os produtos em promoção e comprar o que lhe interessa. Mas só mesmo aquilo de que precisa. A reforma é pequena e tem de aproveitar os descontos para ir fazendo as compritas, conseguindo assim um abatimento na conta mensal. Mas não se deixa iludir nem entusiasmar. No entanto, observa isso noutras pessoas que conhece. “Não podem ver um desconto acima dos trinta e cinco por cento. Tentam-se logo, mesmo que seja uma coisa que não usam. Eu cá não embarco na publicidade. Tenho uma lista mensal e só vou comprando o que me falta. Nada mais”.

Os “shoppings” são tidos como as catedrais do consumo mas os supermercados não lhes ficam atrás. Para além dos produtos de consumo básico e essenciais, pouco a pouco foram alargando a oferta a outros artigos, muitos deles supérfluos mas que, posicionados em pontos estratégicos da loja e com preço promocional em grande destaque, acabam por ir parar à maioria dos carrinhos de compras. Não precisam daquilo mas “o preço é tão baixo, que vale a pena comprar. É uma oportunidade…”

O primeiro passo começa com os folhetos despejados nas caixas de correio em nossas casas, com regularidade semanal. Abri-los e dar-lhes uma vista de olhos, já é meio caminho andado para ceder à tentação. Se os lermos com cuidado, descobrimos a razão: Logo na capa do folheto, em letras grandes, anuncia “5 Super oportunidades. Desconto imediato de 50%”. E os artigos são interessantes… Já não falo nas outras frases de impacto: “Super Fim de Semana”, “Se encontrar mais barato, devolvemos a diferença”, “Só domingo, 50% em toda a loja” ou então “Preços à prova de qualquer comparação”. Alguns folhetos têm sequências bem conseguidas. Assim, na folha dos congelados dizem: “Aqui, os preços também estão congelados”. Na peixaria, “São preços baixos, sem espinhas”. No talho, “Os preços estão bem cortados”. Na perfumaria, “Cheira a preços baixos”. E na padaria, “Preços baixos são o pão nosso de cada dia”. Por outro lado, as fotografias e a apresentação dos produtos são atrativas. É assim que está lançada a semente da “necessidade”, ainda que falsa.

A segunda fase é na loja. Não se entra por qualquer lado. Tem de ser por “ali”. Se a intenção é comprar só um quilo de arroz, temos de atravessar a loja toda para o fazer. O arroz, como todos os bens de primeira necessidade, está ao fundo. Para lá chegar, passamos por um mar de “pechinchas”. Que nos querem impingir. (Quase) tudo o que não nos faz falta. “Olha que… E é tão barato. Vou aproveitar”. E vai para o carrinho das compras. Quando chega ao fundo da loja, já não há espaço para o pacote de arroz… Quem resiste ao “Mega preço”, ao “Super desconto” ou ao “Preço imperdível”? “Vejam lá que nem chega aos trinta euros” (o preço é de 29,99 €)!!!

A tudo isto, juntam-se os cartões, os descontos em cartão, os pontos acumulados, os selos, as mensagens para o telemóvel que arranjam mais “corredores” para a loja que a Maratona de Lisboa ou o anúncio de “ganhe um carro novo ao volante de um carrinho de compras”. É tentação a mais para um homem/mulher só…Como pode resistir? E para não falar na associação de descontos, e grandes, no sector de artigos de confecção ali mesmo ao lado, onde há muito que ver e comprar… E no sector dos eletrodomésticos… E nas bicicletas de montanha… E nas malas de viagem… E nos combustíveis…

Vivemos “acampados” na sociedade de consumo, onde o problema não está na capacidade de produção mas sim na dificuldade de venda. Capacidade produtiva não falta, daí haver excesso de produtos que é preciso escoar de qualquer jeito. “Compre três paga dois”. “Um custa 20 e dois 30”. “Compre uma caixa de seis garrafas, duas são de graça”. Tudo isto, para “impingir” mercadoria. E nós vamos carregando para casa e acumulando… lixo. Porque é aquilo que somos: Acumuladores de lixo.

Alguém dizia: “Na sociedade de consumo, o marketing e a publicidade são uma espécie de máquinas que abrem buracos em nós, as “falsas necessidades” que nos fazem tomar o desejo pela falta”. E acabamos por sentir a “falta” desses bens supérfluos como se fossem essenciais. E compramos, para tapar o “buraco”, a “necessidade desnecessária”. Quase sempre os produtos são “embelezados” pela publicidade, como sendo portadores do bem estar e da felicidade: “Compre e terá estatuto social”. “Compre e terá a mulher dos seus sonhos”. E nós até pensamos (se é que pensamos) ser verdade, que temos de comprar para nos sentir bem, porque é uma excelente oportunidade. E é… para quem vende.

Mais do que nunca, tal como o senhor João, cada um tem de criar as suas próprias defesas a esse assalto que a publicidade e o marketing fazem às nossas mentes, ao nosso inconsciente. Caso contrário, não passaremos de marionetes em “mãos” que nos manipulam, embora estando convencidos que somos livres de escolher o que queremos. Mas não somos…

Já tenho com quem caminhar…

O escritório, que a Teresa e o Luís “dirigem e onde eu, às vezes, até trabalho”, é um misto de empresa imobiliária com atividade na compra e venda de propriedades e de sede provisória da Associação Lousadanimal, para além de “família de acolhimento” da “Clarisse”, uma cadelita abandonada e maltratada por um energúmeno que a cegou intencionalmente. Ora, tendo no escritório a Teresa, elemento da direção da Associação, extremamente dedicada à causa e uma defensora acérrima dos direitos dos animais e da sua proteção, tinha a certeza que não iria passar muito tempo após a morte da minha cadela Diana sem que ela “sugerisse” ser a altura de adoptar um novo animal. Não podia esperar outra coisa, até porque a Associação que representa tenta promover a adopção de vários animais ainda sem dono e que estão entregues a “famílias de acolhimento”. E, diga-se de passagem, apesar do pouco tempo de existência e da falta de recursos, tem sido extraordinário e digno dos maiores elogios, o trabalho da instituição, bem visível nas cerca de duas centenas de adopções já concretizadas. É obra!!!

Pois bem. A Teresa deixou correr o tempo para que eu fizesse o luto da Diana e um dia disse-me: “Temos uma cadelita numa família de acolhimento, que recomendo lá para casa. Encontrava-se num estado miserável mas já está recuperada. É meiga, sossegada e muito afetiva. Acho que a devia levar por uns dias, à experiência”. Foi desta forma que começou o “filme” da vinda de um novo membro para o seio da nossa família que, transitoriamente, se chamou “Bela”, durante uns dias ainda deu pelo nome de “Pintas” e “Pintinhas” e acabaria por se vir a chamar “Becas”. Independentemente do nome, já estamos todos apaixonados por ela… Quem não ficaria? É de uma doçura fora do comum, afetuosa e com um olhar muito profundo. Só lhe falta falar… Mas não precisa, porque diz muito com o seu olhar… Começou a acompanhar-me nas caminhadas matinais ou, pensando melhor, arranjei alguém a quem posso fazer companhia… Porque é ela que, no entusiasmo do passeio, me puxa com força, como quem arrasta um peso morto. E só é “metade de um cão”… Eu explico: Pesa menos de metade da Diana, daí a “metade…”. De raça “Epagneul Breton”, com pelo curto, branco e muitas pintas castanhas no corpo todo (daí o nome Pintas).

Só mais tarde me contaram a história da “Becas”, ela também um animal abandonado. E é uma história que merece ser partilhada…

Terá sido um caçador que, provavelmente por achar que não era bom cão de caça, se quis ver livre dela. Para o efeito, amarrou-a com uma corda a um pinheiro no meio da mata e ali deixou abandonada. Ora, um animal abandonado, amarrado a uma árvore no meio do nada, sem comida nem água, só pode esperar uma coisa: Morrer. E com muito sofrimento… Mas ela não se entregou e lutou pela vida, até conseguir roer a corda que a amarrava e que lhe deixou marcas visíveis da luta que travou para se soltar do pinheiro. Quando foi recolhida, ainda trazia a “gravata” de corda, bem justa no pescoço… O curioso é que, depois de se soltar, não abandonou o local onde foi deixada pelo dono. Como um bom cão de caça, permaneceu firme à espera que “ele” a viesse buscar. Porque ela não sabia nem sabe que os homens fazem coisas que os cães não fazem: Traem quem neles confia, abandonam quem se lhes entrega e matam quem já não lhes serve. Enquanto durante o dia se mantinha no lugar onde fora atada, à noite ia de contentor em contentor junto às casas, à procura de comida, para regressar ao mesmo local e continuar a espera. E assim se manteve ao longo de dois anos até que, um acaso da sorte (e aqui pode-se verdadeiramente dizer que “há cães que têm sorte”…) a recuperou para a vida: Em Maio, a Farmácia Fonseca organizou uma caminhada em Lousada. Num ponto do percurso, já em Meinedo, alguns dos participantes desviaram-se do trilho e, ao atravessar um monte, encontraram duas cadelas num estado lastimável. Mãe e filha. Muito desnutridas e completamente parasitadas, “eram uma dor de alma”. A informação passou de imediato e nesse mesmo dia já lhe fizeram chegar comida e água para, de seguida, serem resgatadas por dois voluntários da Lousadanimal.

Recolhidas numa caixa, foram de imediato levadas a um Centro Veterinário, alimentadas e tratadas. Já depois de efetuada a sua recuperação, viriam a ficar numa família de acolhimento até há pouco tempo.

Ao longo dos dois anos que permaneceu naquele monte, teve quatro ninhadas que foram recolhidas por alguns dos moradores próximos, excepto uma das cadelitas da última gestação, a que a acompanhava quando foi encontrada, para quem a Associação já conseguiu família…

Hoje ainda lhe noto alguns medos, os fantasmas de uma vida à espera do dono que, afinal, a rejeitara. Mas depressa nos conquistou e está a adaptar-se e a tomar conta do seu espaço. E de nós…

É legítimo que qualquer pessoa, por um ou outro dos imponderáveis da vida, possa não ter condições para continuar a ter o seu cão. Sem problemas. Pode acontecer a qualquer um. Mas já é criminoso fazer o que o dono desta cadelita lhe fez. O que é que ele merecia se fosse identificado? Que se apresentasse queixa ao Ministério Público? Presumo que a lei e a pouca tradição judicial nestes casos iriam, na melhor das hipóteses, aplicar-lhe uma pequena multa. Por isso mesmo, o que a sociedade devia fazer era amarrá-lo ao mesmo pinheiro onde deixou a cadela, também sem comida, nem água, mas com açaime, para não roer a corda nem morder a quem passasse. E de mãos atadas atrás das costas, para não se poder coçar quando os parasitas o cobrissem e mordessem, como cobriram a cadelita.

Infelizmente, não é caso único. Todos os dias somos confrontados com este tipo de crimes, porque de crimes se tratam, sem que os seus mentores sofram as consequências, até porque a sociedade ainda pouco ou nada os penaliza. Mais ainda, fazem questão de passar esta “cultura” aos filhos, como sendo “educação a preservar”. Porque há impunidade. Por isso, rezemos para que acabe depressa…

É que os animais não podem continuar a ser vítimas de todo o tipo de crimes e esperar por uma justiça adiada…