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Vida de cão… e de homens

Uma noite adormeci de cansaço recostado no sofá, à mesma hora que os morcegos começam a recolher, e dei comigo na pele de … cão. É verdade tornei-me um canino, é a vida.

Nasci cão rafeiro, não um daqueles de raça, com “pedigree”, laçarote ao pescoço e cabeça levantada, com ar altivo como se fosse mais do que eu, simples rafeiro. Já vi essa postura noutra vida, onde alguns se julgam diferentes porque são “nobres”, de sangue azul, embora com uma simples mordidela dá para ver que, afinal, o sangue é todo igual…

Apesar de rafeiro, o homem que me adotou cuida bem de mim e dá-me tudo menos… “vida de cão”, no sentido depreciativo que lhe dão. Comida a horas, água à descrição, um  ninho almofadado, banho, sestas à lareira, carinho, brincadeira e até tenho quem limpe a m… que faço. Que posso querer mais? Fazer como muitos pessoas que “mordem a mão que lhes dá de comer”?

Incomoda-me a comichão que me dá no pescoço e me faz coçar desesperadamente com as patas. A comichão nos homens parece atacar mais a cabeça, onde se coçam muito. Talvez seja por isso que há para aí muitos… carecas.

Demorou mas consegui educar o meu dono e agora levo-o a passear todos os dias e, para se não perder, deixo-o pôr-me uma trela ao pescoço à qual se agarra firmemente. Quando chego ao parque, livro-me dele e vou brincar com os amigos da minha espécie, “cheirá-los” da cabeça ao rabo para os identificar e saber tudo sobre eles, dado que é pelo olfato que “vemos”. Nada muito diferente dos seres humanos quando “cheiram” as outras pessoas vasculhando-lhes a vida para saber quem são, de onde são, o que fazem e o que têm, especialmente se acham que há “caso” que possa ser motivo de coscuvilhice.

Também é pelo olfato que deteto quando há fêmeas com cio, o que me faz fugir de casa dos meus donos “pela calada da noite”, saltando o muro, para correr atrás delas e tentar ser o felizardo que consuma o ato sexual, com o único objetivo de assegurar a reprodução. Não deixo de achar curioso que, entre os homens, o ato sexual já há muito deixou de ter como função principal a reprodução, sendo esta cada vez mais residual, menos acidental e mais rara. E não é preciso que as “fêmeas” estejam com cio para serem procuradas…

Como cão rafeiro, às vezes tenho de me envolver em lutas com outros machos, o que é normal na nossa espécie. E, verdade seja dita, só mordo quando… fecho a boca. Pelo contrário, tenho reparado que os homens raramente mordem ao fechar a boca. Mas é ao “abri-la” que  são perigosos porque… é quando “mordem”, e de que maneira. Nisto, somos muito diferentes, não? Mas quando se diz “cão que ladra não morde”, já somos mais parecidos.

Sempre que há visitas lá em casa, é certo e sabido que andam à minha volta e falam sem parar, com uma voz fininha muito estúpida, que me irrita. Ainda se ganissem… podia ser que os entendesse…

Há uma coisa que me mete confusão, porque a acho muito estranha. Os meus donos só comem com um ferro torto em cada mão, o que os obriga a um exercício de equilibrismo notável para levarem a comida à boca. Não seria mais prático enfiarem o focinho no prato como eu e deliciarem-se à vontade? Podiam apreciar muito melhor o “aroma” da comida…

Como toda a gente, também gosto de animais de estimação. Ora, já que tenho pelo grande, e por isso excelentes condições para o efeito, gostava de fazer criação de pulgas e carraças, algo que é comum entre nós, caninos. Mas, tenho um problema, pois os meus donos puseram-me ao pescoço um “colar” que “fede que tresanda”. Até eu mal consigo aguentar o cheiro, que põe em fuga toda a bicharada de estimação que recolho por aí. Como vejo lá por casa muitas mulheres de colares ao pescoço e nos pulsos, penso que os seus donos lhe devem ter feito o mesmo para porem em fuga algum tipo de bicharada. Ou, como não são mal cheirosos como o meu, será para atrair bicharada? Também pulgas e carraças? Ou se outro tipo de bicharada que dá “picadelas” diferentes?

Um dia deixei de ver os meus donos e não voltaram a aparecer nos dias seguintes. Fiquei sem saber se seguiram o conselho do primeiro ministro deles (sim, porque nós caninos, não vamos atrás de nenhum “cão grande”, só corremos atrás das fêmeas com cio…) e emigraram, se foram ver a bola para o Brasil (até eu gostava de ir porque dizem que há lá muitas e boas “cadelas”) ou se entregaram a casa ao banco, comigo incluído. Certo é que apareceu por lá gente que nunca “cheirei” em lado nenhum, que entrava e saía como se eu não existisse, esquecendo-se mesmo de me darem de comer, a mim que sempre fui tratado com carinho. Um dos “gorilas” que lá foi, no momento em que eu me aproximava para o cheirar, teve o “desplante” de me dar um violento pontapé no traseiro que me pôs a ganir o resto do dia.  Às tantas agarraram-me, puseram-me um cadeado ao pescoço e enfiaram-me à força na bagageira de um carro mal cheiroso. Se já estava desconfiado, aí tive a certeza que iria passar a ter “ vida de cão”, aquela de que as pessoas lá em casa falavam quando se queriam referir a alguém com vida difícil. Para pôr fim ao sofrimento que vinha aí, a um pesadelo igual ao que tantos cães vivem por esse mundo fora, só me restava tomar uma atitude (que o resto dos cães, infelizmente, não podem tomar), e foi isso que fiz: ACORDAR DO PESADELO.

Como eu gostava de não ter razão…

Há um ano atrás escrevi nesta página um artigo que terminava com uma previsão expressa no ditado: “… vão buscar lã, mas vão sair tosquiados…” E se há coisas onde não gostaria que o tempo me desse razão, esta era uma delas.

Como qualquer ser humano, também sou ganancioso. Se dissesse o contrário, estaria a mentir a mim mesmo. Existe em mim o desejo de ganhar dinheiro, muito dinheiro e depressa, se possível sem grande trabalho. Por alguma razão vou jogando no euromilhões (já não me contento com o totoloto ou o totobola, só dão “trocos”), para ver se acontece um milagre. Se bem que, pelas estatísticas, é mais fácil sermos atingidos por um raio do que ganharmos o euromilhões. Mas vou tentando, “investindo” algumas moedas…

Também já fui aliciado a ganhar dinheiro fácil por diversas vezes e ainda hoje não sei qual a razão porque não cedi. Nos anos setenta, um colega passou a semana da Agrival a “massacrar-me” para investir na D. Branca, a “Banqueira do Povo”. “Excelente negócio”, dizia ele, “pois paga juros a 10% ao mês”. Para me convencer, mostrou-me um cheque do que dizia serem os juros do mês anterior. Não alinhei mas não sei se foi por medo, se por não acreditar no negócio, se por ele ter partido para outras bandas… Soube mais tarde que se tornara num dos angariadores da “Banqueira”…

Mas, aquilo que eu previ aqui há um ano sobre investimentos com juros de 10% ao mês (mais de 200% ao ano!!!) aconteceu. “Rebentou a bomba” e está para aí muita gente “a arder” e “com as calças na mão”. Por isso, aqui “assenta como uma luva” aquela expressão: “Eu bem avisei que era boi, mas eles insistiram em querer ordenhar…!!!”.

Não, não venho cobrar por isso e muito menos criticar aqueles que hoje vivem momentos de incerteza e preocupação sobre se irão ou não reaver o dinheiro investido. Não sou dos que dizem “é bem feito, foram gananciosos” ou outra coisa do género. De maneira nenhuma pois poderia também ser um deles.

Diz o ditado que “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”. E devia desconfiar mas, como no ilusionismo, a atenção ficou concentrada na ilusão, neste caso nos juros altíssimos, bloqueou e não viu mais nada, nem mesmo a voz da razão. E nem quis ouvir até porque, “quanto maior é a mentira, mais fácil é acreditar nela”.

Tal como na D. Branca, estes casos terminam sempre da mesma forma: Com a falta de novos investidores e a impossibilidade de pagar os tais juros ou com a intervenção das autoridades. Pela imprensa, e pela voz do povo, sabe-se que intervieram estas, se bem que já havia investidores a queixarem-se de atraso nos pagamentos.

Existe uma cortina de silêncio que não deixa ver toda a extensão e gravidade do fenómeno, e percebe-se porquê. Em primeiro lugar há os que são dominados pelo sentimento da vergonha, de não quererem ser ridicularizados pelos amigos (?) e não só, que não deixarão de criticar “como é que caíste nisso”, como se eles fossem mais inteligentes. Depois, há os que estão no “negócio” há anos, guardaram os juros que receberam e por isso já estavam a “jogar em casa” e com ganhos. Estes, também vão ficar caladinhos, para que ninguém (a começar pelas Finanças) lhes venha perguntar pelos lucros não declarados… E há os mais recentes, que ainda não tiveram a oportunidade de receber juros, e os que os foram deixando lá com o capital para que “rendesse” mais, que vivem na esperança de voltarem a ver a cor do seu dinheiro, tantas vezes as economias de uma vida de trabalho e que, em nome dessa esperança, continuam em silêncio e à espera.

O drama coloca-se mais para uns do que para outros, não se sabendo quantos são os “investidores” nem os montantes envolvidos, sendo que se fala de grandes quantias só nos concelhos de Lousada e Felgueiras, o centro nevrálgico deste negócio de capitais, dizendo-se que há mesmo quem tenha contraído empréstimos para aplicar o dinheiro num “sonho”, que pode “virar” pesadelo.

A “bomba” rebentou há poucos dias, pelo que há que aguardar para ver as consequências. É preocupante para muita gente, a começar pelos “angariadores” que deram a cara perante muitos clientes, a troco de um percentual nos juros. E agora? Quem é o responsável?

Ao que me dizem, parece que já existem por aí outros esquemas mais ou menos semelhantes, com “promessas” de juros ainda mais altos, e que estarão a fazer “o seu caminho”, encontrando na ganância inata dos seres humanos o terreno fértil para crescer. Como é possível, apesar deste “estoiro” e dos avisos?

Uma palavra para todos aqueles que, fruto de tais investimentos, se encontram em situação difícil. Que isto lhes sirva de lição de vida para não voltarem a “apostar” em falsos profetas. E que não sejam tentados a atos tresloucados (já soube de um caso) pois não é solução para nada. Há que enfrentar as consequências e seguir em frente, de cabeça levantada.

Que uma perda de dinheiro neste investimento, ilegal e falhado, não se transforme também numa perda maior. Se para a perda do dinheiro há sempre a possibilidade de se vir a ganhar outro ao longo da vida, já para a perda desta não haverá tempo nem meios para a conseguir recuperar…

E, GRANDE, não é aquele que nunca caiu, mas sim aquele que foi ao chão e se conseguiu levantar, por maior que fosse a pancada…

E os “palhaços”… somos nós

Tenho um grande apreço pelo palhaço, essa personagem que tem a difícil tarefa de entreter o público e de fazer rir as pessoas. Geralmente atua no circo, tem uma figura engraçada e veste-se de forma exuberante, com roupas extravagantes e coloridas.

Para desempenhar a sua tarefa o palhaço não se prende a normas nem convenções, nem sequer a preconceitos. Também não erra pois o que define o certo e o errado são os padrões sociais. Certo ou errado são juízos que o palhaço não possui. Ele quebra as regras da sociedade para atingir o seu objetivo: Fazer-nos rir.

Entre nós, o termo “palhaço” também é usado para classificar o comportamento de algumas pessoas não confiáveis, que não levam as coisas a sério, tal como aquelas que tentam constantemente ser engraçadas sem nunca terem graça. Esse sentido depreciativo da palavra “palhaço” refere-se ainda à pessoa que toma atitudes contraditórias, que é um fantoche, um vira casacas.

Foi com as suas “palhaçadas” que Tiririca foi eleito deputado federal no Brasil. Para o conseguir usou um slogan sugestivo: “Vote Tiririca, pior do que está não fica”. Dizia ainda: “O que faz deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas, vote em mim que eu te conto”. O povo votou, ele foi eleito e agora diz que “não dá para fazer muita coisa”, pelo que não se vai recandidatar e quer voltar a ser… palhaço.

Entre nós, Miguel S. Tavares achou que Cavaco Silva é um “palhaço”, tendo sido “premiado” com uma queixa crime por insultar o senhor presidente da república… Mas não é caso único. Em Guimarães, o Tribunal da Relação ilibou um homem que tinha sido condenado na primeira instância por crime de injúria agravado, ao dizer aos membros da Junta de Freguesia de Silvares “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos elegeu”. A Relação considerou que a expressão “não excede a grosseria nem a falta de educação, tratando-se de um mero juízo de valor que não atinge a honra e consideração dos visados”.

Com esta decisão do Tribunal da Relação, passamos a ser livres para “pôr a boca no trombone” e dizer o que nos vai na alma em relação às “palhaçadas” que os políticos fazem para aí, “pondo o nome nos bois” como diz o povo.

Mas não me vou aproveitar desse acórdão da Relação para chamar “palhaços” àqueles que, em nome do futuro (o deles, claro), colocaram o país às portas da falência, gastando o que não tínhamos em infraestruturas que não eram indispensáveis, permitindo o “regabofe” bancário sem qualquer regulação, que andaram a “alimentar” uma clientela política à custa do dinheiro público como pagamento por os fazerem chegar ao poder, que nunca tiveram o “sentido de estado” mas andaram por aí a passear-se “à conta do estado” sem saberem o que era governar “em nome do estado”.

Nem aos que compraram submarinos quando já estávamos “no fundo”, nem aos que autorizaram a construção de centros comerciais em zonas protegidas, porque era “negócio”, ou aos que arranjaram negócios para um determinado sucateiro e nem a todos os outros que conseguiram outros negócios para outros “sucateiros” porque era sempre “negócio”… para alguém. E não o faço porque, se o fizesse, estaria a ofender os verdadeiros palhaços.

No entanto, não posso deixar de me espantar com as múltiplas “palhaçadas” que se fizeram à custa dos resultados das últimas eleições europeias. Nessas “palhaçadas”, todos os partidos “ganharam” e exigem eleições antecipadas para já, ou desvalorizam as perdas, uns e outros fazendo de nós parvos, como se não soubéssemos ler aquilo que eles não querem ver, talvez para esconderem o seu falhanço e a crise que os partidos e o regime atravessa.

A verdade é que, sete em cada dez eleitores não votaram em nenhum partido. Eu disse SETE eleitores em DEZ, isto é, só TRÊS escolheram um dos tais partidos, porque os outros SETE mandaram-nos “à fava”. Esta é a grande evidência nos resultados eleitorais que todos os dirigentes partidários teimam em esconder “debaixo do tapete”. Porque, no fundo, no fundo, foram todos derrotados, e de que maneira…

A maioria dos portugueses está-se cada vez mais “borrifando” para os partidos e para os políticos que os dirigem, porque já não lhes dizem nada (nada nos disseram sobre a Europa) nem acreditam nas teorias que eles pregam. E foram “só” 73%…!!! Será que esta Maioria não tem significado? É que nem um só dos dirigentes políticos conseguiu aperceber-se dela, como grande vencedora… Claro que a preocupação deles é ganhar(ou dizerem que ganham), ainda que seja só com o voto da mulher… É como no futebol, onde o importante é que o nosso clube ganhe, mesmo com uma penalidade “roubada”…

Mas eles vieram para a televisão “fazer teatro”, melhor, “palhaçadas” para nos fazerem rir (pois é essa a função do palhaço, fazer rir). Mas o povo já não alinha na festa nem acha graça nenhuma às suas piruetas e não ri.

No entanto, vendo bem as coisas, quem está contente são eles, os políticos, a quem andamos a chamar “palhaços”, nada preocupados com o país real nem sequer com os “recados” que o povo lhes dá. Aliás, estão (pre)ocupados com a forma de se manterem no poder ou de chegarem até ele, ainda que tenham de fingir, até de cegos como é o caso.

Ora, como não são tolinhos, sendo eles que se ficaram a rir, é sinal de que alguém está a provocar-lhes o riso. Assim, e vendo bem as coisas, estão-se a rir do povo, estão-se a rir da gente pelo que, afinal, afinal… os “palhaços” somos nós.

Antes de te queixares, pensa no Serafim

Vi em criança como era difícil, muito difícil, o dia a dia das pessoas pois, para além de trabalharem “de sol a sol” (e era mesmo desde o nascer do sol até ele se pôr) e de terem de se deslocar de casa ao local de trabalho a pé, às vezes a quilómetros de distância, quase tudo exigia grande esforço.

Lembro-me do senhor Moura surribar uma mata para a transformar em quintal, cavando tudo a um metro de profundidade, com uma picareta e uma pá. Sozinho e à mão… Lembro-me de homens derreados sob o peso de sacos de adubo, de farinha e de outros produtos, com cem quilos cada. E havia quem o fizesse diariamente, descarregando ou carregando camiões e comboios, saco a saco, de cem quilos… Lembro-me das estradas serem abertas à “pá e pica”, usando a força dos braços…. Lembro-me dos pedreiros construírem as casas com pedras de granito, grandes e muito pesadas, à mão… e lembro-me das árvores serem serradas no monte, fazendo-se ali mesmo as vigas e as tábuas, usando a força humana. E nesse grande esforço físico, estavam sujeitos ao risco do tombar duma pedra, do rolar de um toro, de um deslize com um saco de cem quilos, não havendo proteção que lhes valesse, pelo que o risco profissional era elevado.

Com a invenção, desenvolvimento e multiplicação das máquinas esse esforço físico foi muito reduzido e reduzidos ou até eliminados foram muitos riscos profissionais em todos os sectores de atividade, da agricultura aos serviços e da indústria aos transportes. Mas, ainda continuam a existir profissões difíceis, onde há uma elevada possibilidade de se contraírem doenças graves e até incapacitantes, que todos os avanços tecnológicos de hoje ainda não resolveram.

Teoricamente, todas as profissões têm riscos, só que a graduação desse risco é muito diferente de umas para as outras. Certo é que, trabalhar todos os dias sob o risco de se adquirir uma doença grave, quando não, crónica, é algo em que não pensamos e que muito menos desejamos, uma realidade nalgumas profissões pouco tida em conta por quem não a sente.

É sabido que hoje, grande parte das doenças profissionais são muito mais resultantes de posturas de trabalho ou do ambiente em que se desenvolvem do que da exigência de esforço físico para a sua execução.

Serafim tem trinta e nove anos e é calceteiro desde rapaz. O pai era calceteiro e ele e os irmãos calceteiros se tornaram. Dias seguidos vi-o de passagem a assentar os cubos de um arruamento. Mas, como tantas vezes o fazemos, inconscientemente, passamos, olhamos mas não “vemos”. E foi assim que durante três dias olhei para o Serafim mas não o “vi”, apesar de o cumprimentar e de ele estar a trabalhar para nós.

Até que um dia parei, olhei e “vi-o” efetivamente. Estava na sua posição habitual de trabalho, ajoelhado no “pó de pico” que cobria o chão e debruçado para a frente, numa postura corporal difícil e violenta. Com o martelo na mão direita e o cubo na outra, trabalhava a uma cadência impressionante, como se de um autómato se tratasse. Batia com a “orelha” do martelo quatro ou cinco vezes no “pó de pico” para preparar a base de assentamento do cubo e, com a mão esquerda, colocava o cubo e dava-lhe cinco ou seis marteladas para o nivelar e ajustar, a uma cadência de cinquenta pancadas por minuto, três mil pancadas por hora e uma média de vinte e cinco a trinta mil pancadas por dia. Sempre naquela posição difícil. Uma loucura.

Depois de o observar a trabalhar, de o olhar e “ver” bem, conversei com ele. Parecendo-me pela posição de trabalho que as costas dele deveriam ser a parte do corpo mais sofrida, perguntei-lhe se ainda não tinha problemas. Já tinha, desde muito novo. Fora operado a uma hérnia discal aos vinte e três anos e, apesar do médico o aconselhar a procurar outra profissão, continuou na mesma anos a fio, porque “não sabe fazer outra coisa”. E ainda continua, apesar de ter agora várias hérnias lombares, para além de muitos outros problemas nas cervicais. E vai insistindo, sabendo que o seu fim como calceteiro está próximo, talvez no fim da próxima pavimentação…

Quando manifestei admiração por continuar a trabalhar apesar da gravidade dos seus males nas costas, disse-me, para minha surpresa: “Sabe, o nosso maior problema nem são as costas”. Ao dizer isto, parou de trabalhar, endireitou-se lentamente e levantou-se. Ao esticar as pernas, estas deram um “estalo” como uma caçadeira ao fechar-se. Até me arrepiei. “Vê, os joelhos é que são o nosso grande problema” disse ele. E para reforçar o que dizia, voltou a dobrar as pernas e a estica-las e o “estalo” ainda me pareceu maior, mais violento. “Deus meu, como é possível alguém aguentar isto”?

Sendo uma profissão com a certeza de se contraírem doenças graves e incapacitantes, até pensei que fosse bem paga. Puro engano. Serafim trabalha por sua conta e risco, ao metro, recebendo em função do que faz. Se chove ou faz muito frio, não trabalha nem ganha. Não tem direito a segurança social, ao décimo terceiro mês nem a subsídio de férias e tem de trabalhar duro, nove horas por dia, para conseguir um salário normal, bruto. Nos dias em que pode trabalhar. E enquanto puder trabalhar porque, aos trinta e nove anos, tem os dias contados como calceteiro, senão mesmo como trabalhador…

Pergunto-me quanto tempo aguentaria eu a fazer o que o Serafim faz, naquela posição. Um mês? Uma semana? Um dia? Ou uma hora?

E queixamo-nos nós, por tudo e por nada…