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Chá de limonete e água das Pedras…

Era dia de casamento lá na terra. Casava-se a irmã do Alberto e o que mais o estava a entusiasmar era a possibilidade de “tirar a barriga de misérias”. Passara o ano a comer praticamente caldo e broa, tirando uma ou outra ocasião em que a mãe matara uma galinha gorda que já não punha ovos e fora assim que “metera o dente” numa coxa de ave que teve de dividir com o irmão mais novo. Naquele dia a “conversa” seria outra. O almoço de casamento era obrigação dos pais e a mesa foi colocada debaixo da ramada, no quinteiro, para ficarem abrigados do sol intenso daquele dia quinze de Agosto. A mesa comprida para acomodar tantos convidados era composta por mais de dúzia e meia de pequenas mesas emprestadas pelos lavradores vizinhos a quem o pai recorrera. Cobertas com toalhas de linho branco, dava gosto olhar aquele alinhamento todo dos pratos, copos e talheres prontos para o que viria a seguir à missa de casamento. No seu fato domingueiro, ele foi dos primeiros a chegar a casa, tendo esperado somente pela saída dos noivos da igreja para lhe atirar os “confeitos”, enquanto as irmãs os cobriam de flores. Viera logo a seguir porque tinha de ajudar a preparar as canecas de vinho tinto da pipa que o pai mandara abrir de propósito para a boda.

Quando toda a gente estava sentada, com os noivos instalados ao meio ladeados pelos padrinhos, “começou o trabalho” logo que da cozinha saíram as panelas de canja de galinha que as moçoilas foram servindo em grandes tijelas, amarelinha da muita gordura a boiar à tona, enquanto os convivas enchiam as tigelas com bocados de pão para fazer sopas. Seguiu-se o lombo de porco assado no forno com batatas, em assadeiras de barro, acompanhado de arroz em caçoilas, tostado por cima e amarelinho do açafrão, mas com bom aspeto. A cozinheira, que viera da aldeia vizinha era muito conhecida pelo seu arroz de forno. Toda a gente se serviu mais que uma vez e comiam muito calados, ao princípio. Mas, depois de emborcarem as primeiras canecas de vinho, a conversa animou. Desapertaram-se as gravatas, tiraram-se casacos, arregaçaram-se mangas e comia-se a bom comer. Quando o lombo começou a rarear, serviram o cozido à portuguesa, preparado com carne dos dois porcos que o pai da noiva matara para o repasto. Tinha carne da barriga, costela, colada, coração, salpicão, chouriça de sangue e muita tronchuda, além de arroz a acompanhar. O Alberto comia com sofreguidão, como se estivesse com medo que a comida acabasse e pudesse armazenar na barriga o suficiente para mais duas ou três semanas, como os camelos. Quando veio o cabrito assado, a barriga negou-se. Não cabia mais. “Não pode ser”, pensou. Olhava a assadeira e o apetite mantinha-se … na cabeça. Só. Agora que tinha ali comida à farta, não era capaz? Não hesitou. Levantou-se da mesa e foi ao fundo do quintal. Meteu dois dedos à boca e … “atirou a carga ao mar”. Não foi caso único, muitos outros fizeram o mesmo. E sentiu que podia voltar à liça, pois já tinha espaço para “armazenar” o cabrito e o que mais viesse a seguir.

No final, o pessoal ficou por ali encostado, alargando dois furos ao cinto para atenuar o incómodo da barriga inchada como um balão, de tanto enfartamento. Para “ajudar à digestão”, veio “bagaço”, que agravou mais do que ajudou. Numa boda cá da terra, alguém “enfardou” mais de “uma cesta de vindima de comida”. E ficou a chorar, com pena de não conseguir continuar …

O enfartamento por comer demais já vem de longe. Se nesse tempo só nos casamentos se podia “tirar a barriga de misérias”, nos dias de hoje, de outras formas, são muitíssimo mais as lautas “comezainas”, a sensação do estômago cheio que não passa, a indisposição que é um desassossego, a pança inchada de “vaca prenha” e a dor remoendo a parte superior da barriga. Os casamentos são o “mal menor”, porque nem são muitos. Mas os almoços e jantaradas, com parceiros do jogo da bola semanal, do grupo de ginásio, encontros de família, batizados, comunhões, Páscoas e Natais, nas festas de aniversários, celebrações e outras festas pelos motivos mais estranhos, são frequentes, muito frequentes. E, quando ainda não se recuperou de um, já temos de ir a outro. Então, nesta quadra natalícia, tudo serve para se organizar um almoço, jantar ou mesmo um lanche ajantarado, servido com comida que dava para várias refeições e o triplo de pessoas, que teimamos em comer numa só. Os amigos “vendem-nos a ideia” que se “come um cabrito espetacular” em Lamego, “lampreia à bordalesa” como não há outra em Monção, boas enguias em Benavente, um javali maravilhoso em Bragança, chanfana (cabra velha) de “morrer e chorar por mais” nas Beiras e o tradicional leitão à moda da Bairrada, mas noutro local qualquer, para não falar em mais algumas centenas de especialidades que nos levam a um roteiro gastronómico diferente para cada dia dos anos da nossa vida e onde, seguramente, comemos demais, bebemos melhor e saímos enfartados e com dor de barriga, a clamar por uma garrafa de “água das Pedras” para ajudar à digestão. E, chegados a casa, só resta apelar para a mulher: “Fazia-me tão bem um chá de limonete”!!!

Hoje comemos demasiado, como nunca. E por isso, “sofremos mais agora ao comer demais do que se sofria antigamente por comer de menos”. É que achamos espetacular “aquele restaurante” que tem entradas de arromba que, só por si, seriam um lauto almoço. Mas nós comemos as entradas (e acompanhamos com gin ou whisky) e ainda o almoço de um ou dois pratos (regados a vinho tinto) e atacamos as sobremesas, “fechando a porta” com café e “digestivo. É demasiado. E esse demais repete-se muitas vezes. Ainda sem recuperar de ontem, já estamos a “enfardar” hoje noutro. E não há barriga que resista …

Quem vai para uma “guerra” dessas onde sai sempre a perder, tem de tomar providências: “Engolir um “omeprazol” em jejum, pela manhã, beber água das Pedras antes de “começar a dar ao dente” e meter um “imodium rapid” na boca a derreter, pelo sim, pelo não”. Fica pronto para a refrega e o abuso nos “comes e bebes”.  Com isso, talvez evite as dores de barriga, o “roncar” da pança, os afrontamentos, arrotos e até os “gases”, mais ou menos sonoros, mais ou menos “perfumados”.

Cá por mim, que já ando “nesta vida” há muitos anos, prefiro seguir outra estratégia: “Muita conversa enquanto os outros comem. Comer um só prato de que goste e, na sobremesa, um pouco de fruta”. E isso resulta? Não posso afirmar que sim. A intenção é boa, mas como não costumo cumprir a rigor, quando chego a casa só me resta tomar chá de limonete e beber três ou quatro garrafas de água das Pedras para “desmoer”. E então, a tal pressão abdominal começa a abrandar. Quando abranda …

Quando morre a avó, perde-se tanto …

Avó também é mãe. Mas, muito mais que isso, é mãe de mães, o saco de histórias feitas belas prendas para os netos, a experiência de vida transformada em sabedoria, o rosto engelhado com alma macia, um coração de mãe adoçado pelo mel da idade. Quem tem uma avó ao longo de muitos anos tem um tesouro e pode orgulhar-se de viver com a história. Avó verdadeira marca a infância dos netos, é alguém especial que ensina coisas sábias da vida até pelo exemplo, que conta histórias de encantar, quer saber da vida dos netos, ser a confidente que compreende e não repreende, ouve e não acusa, ensina e não cobra. Sempre sabe dar um abraço quando todos querem dar castigo. Avó é cabelos brancos, olhos vivos, rugas profundas. Também regaço de netos e ajuda de filhos, sorriso tranquilo, armazém de paciência. Mas avó é mortal, é uma despedida, é perda, é adeus, um “até breve”.

Foi assim que morreu uma avó, de seu nome Maria, já na última etapa para chegar ao centenário. Teve vida plena e, por isso, deveríamos celebrar a sua partida para uma outra vida, se acreditamos nela, em vez de chorar a perda, uma manifestação do nosso egoísmo. Mas seus netos fazem o luto e choram, porque no luto não há certo nem errado já que a perda pode trazer tristeza, confusão, raiva, choro e solidão. O tempo curará tudo isso. E ajuda pensar no que se aprendeu com ela, na felicidade de a ter tido na vida, de saber que teve de atravessar o sofrimento e a dor, mais moral que físico, para chegar até aqui.

Nasceu pobre, igual à maioria das gentes do seu tempo e desde bem cedo teve que trabalhar como “criada de servir”, a profissão de uma vida, longa. Quando ainda solteira engravidou. Os pais, condicionados pela moral espartana de então, não aceitaram e, clamando desonra e vergonha da família, expulsaram-na de casa. Foi acolhida pelos donos do lar onde “servia”, que a trataram não como empregada, mas antes como filha. Dali saiu para casar na igreja com o amor da sua vida, um mês antes de nascer a filha. Dizia que nunca casaria com um lenhador ou pedreiro, pela vida dura que levavam. E o que lhe saiu na rifa foi … um lenhador.

Encontrou na sogra aquilo que perdeu da mãe, em proteção, carinho, compreensão e amor. Mas retribuiu-lhe em dobro, ao ponto de fazer questão de tirar para ela o melhor bocado do almoço de domingo e levar-lho a casa mesmo antes de comer. Trabalhou em diversas casas de família, sendo profissional excelente, zelosa e merecedora de toda a confiança. Por onde passou deixou amizades para a vida, respeitou e fez-se respeitar. E até soube manter na ordem um patrão conhecido por “abusar” das empregadas. Ignorou-o quando simulou doença só para a atrair e quando na cozinha lhe apareceu por trás e a abraçou pela cintura, não hesitou um segundo e passou-lhe a faca ao correr dos dedos fazendo-lhe um golpe em todos eles que o fez dar um salto, recuar e gemer a sério. Acabou-se ali o “assédio” …

Em casa, acendia o lume no lar com pinho, lenha e tonas de eucalipto que apanhava no monte e carregava à cabeça atado molhes. Por duas vezes foi chamada à GNR, acusada por um proprietário forreta que aos pobres nada dava. Só lhes tirava o suor. A sua vida ficou marcada pelo trauma da expulsão de casa pelos pais. Só conseguiu apaziguar a mágoa quando voltou a ouvir deles o “Deus te abençoe, minha filha”. Ao morrer a avó Maria perderam-se histórias, sabedoria, experiência, memórias e tantas coisas mais. Mas ela ganhou: regressa finalmente à casa paterna e ao convívio dos pais …

Porque é um hino maravilhoso e sentido à “Avó Maria”, a “Guerreira”, da autoria de uma neta, não posso deixar de partilhar este poema:

“Onde estão teus cravos Mulher?

Gastaste seu cheiro para abafar tuas lágrimas

Abafaste um regime para vencer tua luta

Desafiaste autoridades para sustentar tua casa.

Mulher de trabalho árduo

Que sempre ajudaste quem por ti clamou

Trabalhaste na dura labuta para seres alguém.

E foste, e és.

Irmã mais velha de uma imensa família.

A ti eram imputadas todas as fainas

Grávida e sem matrimónio consumado

Por teus pais foste excomungada

Verteste lágrimas de sangue.

Mas tua força maior não vacilou

O Homem que ao teu lado estava

E que teu coração cedo roubou

Não te abandonou, sempre te amou.

Tua força era medonha

Teus dias completavam muitas horas

Tuas mãos concebiam trabalhos muitos

Tua cabeça molhos de lenha carregou

Para tua lareira arder e bocas alimentares.

Onde estão teus cravos Mulher?

Cortaste-os para as sepulturas asseares

Dos entes que partiram sem deixares

Mulher a quem os anos levaram

A força braçal imensa

A destreza de tuas pernas

O sorriso e as palavras poucas.

Onde estão teus cravos Mulher?

Estão agora em teu jardim

Que admiras com prazer

Nos dias que descontam

Tuas histórias de Mulher

Teus conselhos prudentes

Tuas palavras parcas.

Onde estão teus cravos Mulher?

Para sempre em teu coração…

Quer um conselho? Não roube. Desvie …

Não sou juiz, nem pretendo julgar ninguém. Sou um simples cidadão que, dos tribunais, só gostaria de ter notícias através da comunicação social. Mas não, também tenho a minha dose, especialmente no que toca a esperar. Esperar no átrio da entrada para saber se há ou não há julgamento. Esperar anos e anos para que o julgamento tenha um fim. Ir a tribunal para ser ouvido como testemunha e esperar toda a manhã ou a tarde sem sequer ser ouvido, tendo de lá voltar outra vez, quando não mais algumas vezes, sem que alguém tenha respeito por nós testemunhas, como se fossemos escravos que podem ser usados quando e como o sistema quiser. E sem direito a reclamar. Mas não é sobre isso que hoje escrevo, mas de algo que me parece um paradoxo. Julgo que a Justiça portuguesa é só uma, com as mesmas leis para todos os tribunais e que, à luz dessas leis, julgamentos e sentenças devem ter uma linha comum, com coerência, onde ninguém se sinta discriminado por ser rico ou pobre, mais gordo ou magro, mais alto ou baixo, da religião A ou B, do partido centrista ou comunista, ou por ser branco ou negro. A verdade é que, às vezes, não parece que assim seja. “Todos somos iguais, mas um são mais iguais do que outros”. Ou parecem …

O tribunal de Aveiro julgou um antigo funcionário bancário por ter “desviado” 286.000 euros de clientes, tendo sido condenado a três anos e meio de prisão … com pena suspensa por igual período. Ainda foi condenado ao pagamento de 35.000 euros, a serem pagos em sete prestações de 5.000 euros cada. Só vai “bater com os costados na cadeia” se não pagar a “multa”. Caso cumpra, pode fazer com o resto do dinheiro ROUBADO o que quiser, sem que tenha de pagar por isso. O que “até acho bem”, pois o homem precisava de ser recompensado pelos momentos de angústia – se é que os tinha – sempre que “estava a meter a mão no prato”, ou melhor, “na conta dos clientes”. Daí ser justa a “pena suspensa”, até porque eu nem era cliente do banco …

Que é que isto tem de original? Nada, até porque o bancário não fez nada de mal. Não roubou. Ele “DESVIOU”, o que é bem diferente de ROUBAR. Que não haja confusões. Ladrão, ladrão é aquele malvado que o tribunal de Braga acaba de condenar a um ano e meio de prisão efetiva por ter roubado a avultada quantia de … 6,00 euros. Repito e por extenso: SEIS EUROS!!! No julgamento, o arguido confessou o crime, mostrou-se arrependido e pediu desculpa à vítima. Disse que na altura consumia estupefacientes e “andava desesperado” por falta de dinheiro para comprar droga. Segundo a acusação, ele abeirou-se da vítima, disse-lhe que tinha uma faca e exigiu que lhe desse todo o dinheiro que tinha consigo. E a vítima deu-lhe a carteira com 6,00 euros, que ele levou, pondo-se em fuga. Mas este, sim, é um ladrão a sério, que diz que roubou. E logo na rua, à vista de quem passa, o que é uma ousadia maior. Ainda se fosse escondido num gabinete, mesmo foleiro, vá que não vá. Mas, na rua, é obra. Merece ir “ver o sol aos quadradinhos”, até para que na próxima aprenda a não roubar, mas a “desviar” ou a “governar-se” para nós, opinião pública, o absolvermos automaticamente quando dissermos: “Este é que foi esperto” …

Eu confesso, não assisti a nenhum dos julgamentos e reproduzo o que a comunicação social informou, tendo mesmo questionado se devia o “ladrãozeco” apanhar tanto por tão pouco. Presumo que a imprensa não tenha mentido e comparam-se critérios, se é que são os mesmos. Leio outras notícias sobre outra sentença. Que posso pensar ao ler a notícia que “o conhecido banqueiro que levou um banco à falência foi condenado a cinco anos de cadeia … com pena suspensa. O roubo terá sido também suspenso? E ainda a informação de que um maestro foi condenado a cinco anos de prisão … com pena suspensa. “Utilização indevida” de 720.000,00 euros do erário público e falsificação de documentos. Porque será que estes “dois ladrões”, com penas bem maiores, tiveram direito a que fosse suspensa a aplicação efetiva da sentença, enquanto o “pilha-galinhas” que roubou seis euros – sendo certo que a carteira podia conter alguns milhares, que não tinha – não teve a mesma “benesse” de ver a pena suspensa? Acho que o dito não usa suspensórios, com toda a certeza … Por uma questão de transparência, convém dizer que o “pilha-galinhas” já era reincidente, mas, “por seis euros” deve-se pô-lo “à sombra” por mais ano e meio? Custa a entender a lei. Daí o espanto dos jornalistas … e o meu.

Comparando com outros julgamentos e outras sentenças, para quem não é juiz nem quer julgar nada, “a bota não bate com a perdigota”. E se basculhar na imprensa por notícias de sentenças diversas, tanto de roubos como de crimes económicos (que não são outra coisa senão roubos), já para não falar em violações, pedofilia e outros, encontro com certa frequência a aplicação de prisão, mas com pena suspensa. Provavelmente as prisões estarão com excesso de lotação e há que travar o fluxo de mais “clientes” para aqueles “hotéis”, cuja fatura é paga por todos nós. Não acredito que seja pela cara mais ou menos bonita do “artista”, pela sua capacidade oratória e desempenho como ator dramático ou pela roupa que veste no momento.

De tudo o que li e ouvi, fico com a convicção de que, quem um dia quiser “governar-se”, deve começar por manter a “ficha limpa” até ao momento do “golpe”. Depois, não se proponha roubar, mas fazer um “desvio” para satisfazer um vício, verdadeiro ou falso, ainda que o tenha de inventar. E, por fim, não caia na patetice de “desviar” seis euros, nem nada parecido. Faça a coisa em grande, na ordem dos milhões, muitos. Quando for julgado, declare que está arrependido (chore para ser convincente) e diga que gastou tudo no casino, nas mulheres ou no “pó”. “Que tudo o vento levou”. Vai apanhar alguns anos de prisão, mas como é a primeira vez, terá certamente … a pena suspensa. Pode ter de pagar uma multazita, “aos bochechos”, mas vai sobrar-lhe muita “massa” para ter a reforma antecipada num paraíso qualquer, onde não terá tentações para ser reincidente.

E nunca será um ladrão, mas um homem “esperto” …