Monthly Archives: November 2013

Apanhados… em cuecas

Sou um colecionador de provérbios e admiro a forma como neles, a sabedoria popular conseguiu condensar em pequenas frases um profundo conhecimento do ser humano e do mundo que o rodeia.

Se alguns são contraditórios, dando a entender que os ditados se podem arranjar para qualquer situação – é o caso de “a mulher, como a sardinha, quer-se da mais pequenina” e “a mulher, como a pescada, quer-se da mais abonada” – a verdade é que, a grande maioria, revela esse conhecimento empírico do povo, transmitido quase sempre de forma encantadora e original.

Na subtileza de “quando o pobre come galinha, um dos dois está doente” encontra-se uma realidade social dos meus tempos de criança (não atualizada, felizmente), em que os pobres, efetivamente, só comiam galinha se estivessem doentes ou se a galinha estivesse a morrer, sendo neste caso preferível comê-la antes que fosse para enterrar. Aliás, os ciganos comiam-nas mesmo depois de enterradas…

Dos milhares de provérbios que conheço há um pelo qual tenho uma particular atração, tal é a riqueza da sua mensagem dirigida a todos nós e à nossa condição humana, para contrariarmos algumas das nossas fragilidades como pessoas em relação aos outros e a nós próprios, no sentido de sermos melhores.

Trata-se de um provérbio árabe (a primeira vez que o li foi-me passado como sendo chinês), mas a sua linguagem é universal e compreendida facilmente por todos. Diz o seguinte:

          Não digas tudo o que sabes

          Não faças tudo o que podes

          Não acredites em tudo o que ouves

          Não gastes tudo o que tens

          Porque:

          Quem diz tudo o que sabe

          Quem faz tudo o que pode

          Quem acredita em tudo o que ouve

          Quem gasta tudo o que tem

          Muitas vezes:

          Diz o que não convém

          Faz o que não deve

          Julga o que não vê

          Gasta o que não pode

E ao ler “julga o que não vê”, lembrei-me de dois momentos curiosos sobre um motivo comum, com julgamentos opostos e interessantes.

Um aconteceu há dias quando me mostraram um vídeo que tem estado a circular na internet, onde se vê um homem em cuecas a fugir por uma janela de um bloco de apartamentos, a descer por um lençol para o andar abaixo e a atirar-se para cima de um insuflável que os bombeiros haviam montado para o salvar, enquanto na varanda ao lado uma mulher tenta conter um homem irado, com muitos transeuntes a observar e a gozar a cena.

Ao ver o vídeo, todos nos rimos com o caricato da situação e a conclusão foi comum: O homem foi meter “a foice em seara alheia” ao querer fazer filhos em mulher alheia” e ia sendo apanhado com “as calças na mão” ou, pior, sem elas, pelo que conseguiu fugir a tempo, ajudado pela dona da “seara”, que se mostra ali a segurar o marido pelos “ditos”, numa “pega de cernelha”.

O outro momento fez-me regressar a Coimbra e a uma das muitas memórias que guardo da Escola Agrícola onde estudei.

Todos vestíamos calças e camisa de ganga, com botins de atanado de cano alto, o que era prático tanto para os trabalhos de campo como para montar a cavalo. E, quando se completava o curso, a tradição mandava que os colegas rasgassem a roupa do recém formado, deixando a ganga em tiras e o aluno em cuecas.

Ora havia na Escola um aluno que por lá andava há mais de dez anos, sem perspetivas de acabar o curso e de ver as suas roupas rasgadas como os outros, pois “tinha outras preocupações mais interessantes do que os livros”, dizia ele. Era o Macário e morava com alguns colegas em S. Martinho, na casa do Bento, uma espécie de “república”. Conheciam-no bem umas velhotas que moravam na mesma rua, passavam o tempo à janela e lhe perguntavam frequentemente quando é que acabava o curso.

O dono da casa era o Bento, um sexagenário que também ali vivia, amancebado com uma senhora muito jovem e demasiado atrevida. Foi por isso que, a partir de certa altura, quando o Bento saía de casa, o Macário enfiava-se no quarto dela, deixando o Reis de atalaia à entrada, a vigiar a rua. E, se o Bento aparecia ao fundo da ladeira, o Reis assobiava e o Macário mudava-se para o seu quarto pelo que, quando ele entrava em casa, não se apercebia de nada.

Mas um dia, há sempre um dia, enquanto o Macário estava com a patroa e o Reis vigiava, a empregada passou junto deste, insinuou-se e incendiou a chama do rapaz que, de repente, se viu enrolado com ela, perdendo a noção da sua condição de vigia e só dando conta do Bento quando este entrou em casa. Daí o sinal tardio, deixando que ele se apercebesse rapidamente da marosca, corresse ao escritório, agarrasse na caçadeira e subisse as escadas a berrar “vou-te matar, vou-te matar”. Quando do alto das escadas o Macário viu o Bento, fugiu para o quarto, deste saltou para o quintal através da janela, dali para a rua e, em cuecas, desatou a correr ladeira abaixo. Quando passou diante da casa das suas vizinhas, num julgamento sumário e adorável ao vê-lo em cuecas, as simpáticas velhotas começaram a gritar de alegria: “Olha o senhor Macário formou-se, o senhor Macário formou-se…”

Estou de acordo, a culpa é… do azeite

Li há tempos um excelente artigo de Isolda Brasil a propósito dos países mediterrânicos que são sempre muito mais afetados pela crise e pela corrupção do que os países nórdicos, cujas economias são mais estáveis, mais transparentes, onde não há corrupção (pelo menos à descarada), e em que se interrogava: “Será do azeite?”

Lembrei-me disso ao rever a entrevista de um sueco que se instalou em Portugal para se dedicar à cultura das oliveiras e ao fabrico do azeite dizendo que, no seu país, era um produto tão raro que só se vendia nas farmácias. Ora aí está: Como não têm nem produzem azeite e são imunes à crise e à corrupção, ressalta uma conclusão: Onde estas existem, a culpa… é do azeite.

Pelo contrário, os chamados países do sul como a Grécia, Espanha, Itália e Portugal são dos mais “azeiteiros” (não, não é o que já estão a pensar…) isto é, produtores de azeite e como tal, especialistas na “dieta mediterrânica” de que o azeite faz parte. Provavelmente, esta dieta será a responsável por “provocar nos nossos governantes este estado de espírito manhoso, esta compulsão para a defraudação do erário público, esta desonestidade constante e esta despreocupação com a coisa pública” nas palavras de Isolda Brasil.

Ora, se com os nossos vizinhos é “outra história”, até porque a sua capacidade “azeiteira” é bem maior que a nossa, cá entre nós, a sua produção e consumo estimulou muito o interesse pela profissão de cozinheiro, digamos, “governante da cozinha” – e ainda não existiam os concursos de “masterchef” – dando origem a uma proliferação de “chefes” e candidatos a. Duma coisa é certa, quando algum deles tem o “poder sobre a panela”, a primeira coisa que faz é arranjar “tachos” para o rancho de “ajudantes” que o seguem , mesmo que estes não percebam nada da arte. E, agarrados ao “tacho”, é só vê-los a “meter a mão na massa” sem dó nem piedade, antes que esta acabe ou ganhe “bispo”.

Às vezes interrogo-me se terá sido por termos uma Oliveira a segurar a “panela” e a distribuição de “tachos” durante trinta e tal anos e a “dar-nos de comer pela medida grande”, que nos ficou a inclinação para a “azeitice”, pois outras Oliveiras nasceram e disseminaram-se pelo país, para mal dos nossos pecados. Uma delas foi plantada no BPN e a sua dimensão foi tal que, ao ser arrancada (à força), deixou um buraco tão grande (tipo buraco negro) que, ao fim de alguns anos, ainda não se lhe conseguiu ver o fundo. E o problema é que os tais “chefes” puseram todos os portugueses a “cavar” para tapar tal buraco, como se fossem eles a ficar com o “azeite”…

Uma coisa é certa, temos arranjado cá uns “cozinheiros” que parecem escolhidos a dedo, como os melões, e já nem sequer os conseguimos tirar pela “pinta”. Começam por arranjar uns “caldinhos”  que lhes permitem “encher a pança” (à conta do nosso “milho”) pois como têm “a faca e o queijo na mão”, “comem-nos as papas na cabeça” com um à vontade próprio de quem só se lembra do povo quando precisa dele para construir a escadaria humana que os leva ao poder. Com as suas “receitas”, consumiram demasiado “azeite” e por isso arranjaram cá um “estrugido” que deixou o país “a pão e água” e já não há “mezinha” que nos salve. Por isso, o povo “tem de comer o pão que o diabo amassou” e calar, se é que ainda tem voz, ao aperceber-se que acabou por “comer gato por lebre”.

Vejam-se as “peixeiradas” de um grupo que se junta lá para os lados de S. Bento, comemoradas e “regadas” horas mais tarde, entre os mesmos, num qualquer restaurante chique da cidade.

Sendo o azeite um produto de consumo corrente no país, é natural que se tenha criado o hábito de o usar para “untar mãos”, que ficam “mais macias”, talvez até mais ágeis no sentido de fazerem aquilo que se deseja. Assim, se algo de errado ou ilegal acontecer, com toda a naturalidade se pode dizer que a culpa… é do azeite. Aliás, para que as “coisas” funcionem bem, nada como “olear” a máquina… com azeite, claro. É que, não sendo nós um país produtor de petróleo, temos de consumir o que é nosso: “O azeite”.

Segundo estudos efetuados por uma universidade estrangeira (de lá de fora), a grande maioria dos tais “chefes” tem “engordado” muito desde que são “cozinheiros” do “reino” ou dos “ducados” (às vezes, para manterem “as aparências da elegância” perante o povo, ficam de dieta mas fazem “engordar” os familiares, “azeitando-os”), em parte devido às grandes preocupações que têm consigo e que os leva a seguirem a tal dieta mediterrânica onde, claro, não pode faltar o “azeite”. Dizem as más línguas que se enfiam na “despensa oficial” e, às escondidas do “despenseiro-mor”, papam só “carne da perna” até encherem o bandulho, chegando a gabarem-se: “Comi como um abade” (se um abade os ouvisse, diria “abade sou eu e não como assim. Você comeu foi como um burro”). Daí que se fala que alguns já deixaram de comer da “panela” e passaram a comer da “gamela”.

Sabe-se ainda que estes “chefes” (tantas vezes “aprendizes de feiticeiro” ou “do diabo”) são tão especiais que conseguem transformar um “arroz malandro” em “arroz de malandros”, tal é o jeito para “meterem a mão no prato” e “manipularem” os segredos da cozinha, usando e abusando do “azeite”, fazendo mesmo com que corra muita “massa por debaixo da mesa”.

É assim que há algumas décadas andamos a ser cozinhados em “lume brando”, sem que isso nos leve a reagir. No entanto, quando um dia destes sentirmos verdadeiramente o “fogo no rabo” e nas narinas o “cheiro a alho” ou a “esturro”, não me admiraria que “o caldo fique entornado” e o povo venha para  a rua “agarrar o touro pelos cornos”. E acabavam os “cozinheiros”, os “chefes” e o “azeite”, pergunta-se? De maneira nenhuma, para isso era preciso arrancar todas as “Oliveiras”, deitar abaixo os “lagares de azeite” e fechar as “cozinhas” e os  locais de “comes e bebes”. Mas não é possível, pois isto faz parte do nosso paladar, da nossa cultura, da nossa tradição.

Aliás, mesmo que enterremos tudo num enorme buraco ou no oceano mais profundo, não podemos esquecer que… “o azeite vem sempre ao de cima”.

Por tudo isto, não há quem me tire da cabeça que estamos mesmo “feitos ao bife” e a culpa… é do “azeite”.

 

Se a vida te dá melões… come melão

“Vamos acordar, pessoal. São seis horas”. Acordo com o acender da luz e o chamamento à porta do quarto por alguém que não conheço. “Onde é que estou ”, interrogo-me ainda ensonado? De repente lembro-me, estou no Pantanal, a dez mil quilómetros de casa, entre amantes da pesca e longe do conforto. “O que faço eu aqui? Como é que vim aqui parar?”

Conheci o “Seu” Marcílio há alguns anos e, a partir daí, fomos falando ora pelo telefone, ora pessoalmente. Desde o primeiro dia me falou das suas pescarias nos rios do Brasil, com especial relevo na pesca do jáu, um peixe que pode atingir os cem quilos. Na brincadeira, disse-lhe que um dia ia lá apanhar um desses bagres e, sempre que falávamos, alimentava essa ilusão com perguntas sobre o jaú, se estava a cuidar deles, etc..

Foi assim ao longo de anos, com ele e a filha Luciana a insistirem para os ir visitar. Como tive de ir a São Paulo, dei mais uns dias à viagem e fui a Maringá para esse reencontro, só que não esperava um programa completo de uma pescaria no rio Paraguai, em pleno Pantanal, mil quilómetros a norte. Dei comigo na “caminheta” (a nossa pickup) com o “Seu” Marcílio e o cunhado “Seu” Osvaldo, rumo a Albuquerque, pequena localidade junto à Bolívia, para nos juntarmos a mais cinco pescadores na casa de pesca do “Seu” Darci, onde chegamos ao fim de um dia de viagem. Ali estava eu…

Sentado na cama, olhei os companheiros de quarto a vestirem roupas apropriadas com bonés de aba traseira e rede frontal para proteção contra os mosquitos. “Mas não venho preparado”, penso eu…

Vou para a cozinha e a azáfama dos pescadores aumenta, arranjando todo o tipo de apetrechos para a pescaria. É preciso levar um barco, motor, gasolina, bateria suplente e outros acessórios, para além de todos os instrumentos de pesca, desde as canas, fio, aparelhos, anzóis e milhentos pequenos acessórios e ferramentas, para resolver problemas em pleno rio.

Saio de casa para ajudar a carregar a “caminheta” e sou atacado por uma nuvem de “pernilongos” (mosquitos) que me obrigam a recuar para dentro e “enxofrar-me” com repelente nas partes visíveis do corpo, a tapar a cabeça com um barrete que o “Seu” Marcílio me emprestou e a apertar bem as mangas da camisa.

Ao pensar no meu desconhecimento dos princípios básicos da pesca e na impreparação para a batalha com os mosquitos, pergunto-me: “Que raio estou aqui a fazer? Não será melhor ir-me embora? Ou ficar dentro de casa, protegido dos insetos picadores”?

Mas não, nem pensei mais. Se a situação não era cómoda, não deixava de ser uma grande oportunidade de fazer algo diferente e conhecer a beleza do Pantanal, e havia que aproveitar o momento.

E valeu bem a pena pois, apesar dos “pernilongos”, que também farão parte das recordações desta viagem, foi excepcional conhecer aquela região do Brasil e todas aquelas aves no seu habitat natural, do beija flor (colibri) ao tucano, das araras aos papagaios, dos gaviões ao joão de barro, da grande ema ao bem-te-vi e tantas outras que de que não sei o nome mas que são lindas. E os crocodilos, os macacos, as capivaras, a variedade de árvores, arbustos e plantas, o rio Paraguai e o seu afluente Miranda, as pousadas e hotéis sobre estacas por causa das cheias, a esperança dos pescadores na pesca “daquele peixe grande” que a fotografia perpetuará… (atenção, eu pesquei e tenho fotos disso). E, finalmente, o convívio franco e amigo de um grupo onde a regra é “o amigo do meu amigo, meu amigo é”.

Ficaram-me as histórias do Teixeira que nos fizeram rir muito, do José e o milagre com a sua mãe de 93 anos, do João e da sua camisola do centenário do Santos que lhe custou quatro mil reais e do Péricles, que já foi casado com uma senhora do Porto.

A lição de vida do Darci, que nunca teve sapatos em miúdo mas era engraxador e que venceu no meio de um ambiente hostil, muito graças à firmeza de princípios da mãe.

E, claro, da simpatia, amabilidade e da paciência do “Seu” Marcílio e do “Seu” Osvaldo comigo, eles sim, dois pescadores, companheiros que não esquecerei. Tudo valeu a pena, foi uma experiência única, uma viagem para recordar.

E tudo isto para dizer que a vida conduz-nos muitas vezes a locais ou situações para os quais não estamos preparados ou não gostamos, companhias incómodas, uma festa, uma cerimónia, uma viagem, umas férias num local que a família escolheu contra a nossa vontade. Porque não aproveitamos e vivemos esses momentos, olhando-os pelo lado positivo em vez de nos incomodarmos e incomodar os outros? A vida flui, levando-nos a cenários imprevistos. Porquê recusar apreciá-los? Em tudo há um lado belo, saibamos transformar um incómodo numa oportunidade em vez de fazer de menino birrento que vai contrariado (e amuado) com os pais, porque não gosta, porque quer outra coisa.

Estás aqui apenas para uma visita rápida. Não te preocupes, nem te apresses, e tira partido de tudo por mais imprevisível que seja pois, provavelmente, serão as memórias que mais vais recordar. Por isso, se a vida te dá melões… come melão.

 

A honestidade paga com a ingratidão

A notícia passou há dias na TV e, provavelmente, em todo o mundo. Um sem abrigo de Boston encontrou uma mochila com cerca de cinquenta mil dólares e, apesar das suas necessidades e da sua condição, foi entregá-la às autoridades para ser devolvida ao seu verdadeiro dono, dizendo que o fez porque “Deus sempre cuidou bem de mim”. Com este ato de honestidade e honradez, um homem invisível aos olhos de quem com ele se cruzava, tornou-se um herói nacional, reconhecido e distinguido pelas entidades locais, vindo a ser  beneficiário de uma angariação de fundos em onda de solidariedade que ultrapassou os valores existentes na mochila.

Sendo esta uma boa notícia, merecedora de ser divulgada até por se tratar de um cidadão remetido ao mais baixo escalão da hierarquia social, pareceu-me também como que a exibição de uma raridade – ao que parece, os valores daquele ato também não abundarão para aquelas bandas – um modelo moral para uma sociedade demasiado materialista.

Mas será que estas coisas só acontecem na América? De maneira nenhuma. Felizmente, entre nós ainda existe quem preserve valores como a honestidade, a dignidade e a honradez, não se deixando cair na tentação do dinheiro fácil, só que muitas vezes passam pela indiferença dos que as conhecem e que as remetem para o caixote do esquecimento, não sendo motivo para notícia, nem para campanhas de solidariedade e distinções.

Uma pessoa amiga falou-me elogiosamente da senhora Maria, mulher simples e caseira de uma quinta em Lousada que, quando ele lhe falou da possibilidade de ela autorizar a venda de um dos campos da sua quinta, respondeu-lhe prontamente: “Fale com o senhorio, pois ele é que é o dono. Se quiser vender, por mim não há problema”.  E assim foi, o campo foi vendido e a senhora Maria nada exigiu em troca, mesmo sabendo que a lei lhe conferia certos direitos que, na prática, normalmente se traduzem numa indemnização monetária de que a maioria dos caseiros não abdica. Uma posição rara e de elevado sentido moral, sobretudo vindo de alguém cuja condição económica era precária.

Mas, mais tarde, falou-me de um outro acontecimento passado com esta senhora, que vale a pena contar. Eis a história real.

Era ela caseira de uma outra quinta, também em Lousada, quando lhe pediram para fazer uma “muda” (serviço de mudanças). A mulher que lhe encomendou o serviço recebera a herança de uma velha tia, pelo que era necessário carregar todos os bens herdados para sua casa. Quando procedia ao carregamento, aquela perguntou-lhe se queria aproveitar algum dos móveis, já muito velhos, porque ia rachá-los para lenha. Agradeceu e escolheu uma cama e um roupeiro que, de passagem, deixou em sua casa, antes de ir descarregar as tralhas na residência da cliente.

Acabado o trabalho, regressou à quinta para preparar o almoço e foi surpreendida pelos filhos a exibirem dois volumosos maços de notas de cinco contos, uma pequena fortuna à data. “Oh mãe, olhe o que encontramos num gavetão do roupeiro”, disseram os rapazes. Sem hesitações, tomou conta dos dois volumes e respondeu: “Este dinheiro não é nosso, tenho de ir imediatamente entregá-lo à dona”.

Assim, deixando o almoço por fazer e feliz pelo achado, dirigiu-se a casa da herdeira para dar-lhe conta da boa nova e entregar-lhe os maços de notas, sem sequer se dar à curiosidade de saber o valor. Aquela, ao ver a “cor” do dinheiro, ficou confusa mas foi dizendo: “Corremos os bancos todos e não sabíamos onde parava o dinheiro da minha tia. Está aqui todo? Não estará lá mais algum escondido?” perguntou-lhe a herdeira, deixando uma certa suspeita no ar. – “Olhe, se quiser venha lá ver” respondeu-lhe de pronto, mas ela acabou por rejeitar. No entanto, soube posteriormente comentar com uma vizinha que “se ela me trouxe a casa dois maços de notas, se calhar, ficou com mais do que aqueles que me levou”…

O prémio para a honestidade foi a ingratidão e a dúvida lançada sobre si, por alguém que lhe devia estar grata e respeitar, mas a quem a ganância e avidez não deixou enxergar para além do seu umbigo.

Não estiveram lá os jornais nem a televisão para promoverem a honorabilidade desta mulher simples e humilde, cuja riqueza maior está muito para além da sua condição que a fez aproveitar os móveis velhos, nem para contar a história ao país e ao mundo e mostrar tão valioso exemplo de honestidade e dignidade, algo que ainda nos faz acreditar na bondade do ser humano, nos valores perdidos e agora (quase) só encontrados no coração dos simples.

Ela seguiu à letra as palavras de Jesus, “a César o que é de César…” e provou-nos que a honestidade está no caráter do ser humano e não na roupa que ele veste, que não se promete, pratica-se, obedecendo incondicionalmente às mais elementares regras morais.

Atualmente o conceito de honestidade está deturpado pois, quem age corretamente, é chamado de “burro” ou “tolo”, quando não humilhado. Ora, ao não se desviar do que é digno a troco de coisa nenhuma, neste caso de dois maços de notas, na honestidade e no reto procedimento denunciou a formosura da sua alma.

Chama-se Maria (não me permitiu que revelasse mais do seu nome), cultiva como caseira uma quinta em Pias, tem um coração enorme e foi para mim uma honra conhecê-la.