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A vida ensina-nos a desconfiar …

Tenho saudades de quando era ingénuo, crédulo e inocente. De só ouvir sem necessidade de ter opinião. De acreditar que era o Menino Jesus que punha as prendas de Natal no sapatinho. De sonhar com príncipes, princesas, castelos, histórias de encantar, sempre com final feliz. De jogar ao peão, ao espeto, à cabra-cega e arrancar os botões da roupa para jogar ao “pica”. Só que, à medida que os anos passam, tendemos a ficar empedernidos, de coração duro, frio e desconfiado. Dizem que são os pontapés que se apanham ao longo da vida que nos vão mudando, transformando o ingénuo em malicioso, o sonhador no realista, o puro num libertino e o inocente em mau caráter. Claro que os anos nos fazem desconfiados e ficamos com dúvidas demasiadas vezes porque, diz o ditado, “gato escaldado de água fria tem medo”. Da adolescência aos primeiros anos de adulto comecei a perceber que tinha de ajustar a minha visão à realidade porque a pureza de intenções não tem cabimento no mundo dos homens, já que fazem tudo, mas mesmo tudo, para acumular dinheiro e isso e muito mais para alcançar o poder. Se no início comecei por selar negócios com um simples aperto de mão e confiar na “palavra de honra” como boa garantia, com o tempo e conselho do meu pai reduzi ao mínimo os contratos orais para os passar a escrito. E, mesmo assim, encontrei gente que não cumpriu. Mas nunca me tornei totalmente cético, pois sempre fui fazendo alguns acordos verbais e tive, sobretudo dos mais pobres, quem nunca faltasse à palavra. Por isso acredito que ainda há esperança, embora os maiores sinais nos obriguem a desconfiar … 

Os supermercados são hoje locais de frequência obrigatória para todas as pessoas, goste-se ou não, pois vieram para tomar conta do setor de distribuição alimentar, mas já vão muito para além disso abarcando cada vez mais áreas de comércio, do têxtil às ferramentas, dos eletrodomésticos aos artigos para o lar, da cosmética aos artigos para animais, plantas de jardim e uma variedade enorme de todo o tipo de inutilidades que carregamos para casa como acumuladores de lixo que somos. Desde o início souberam como nos fazer consumir mais do que realmente precisamos, mas hoje atingiram o cúmulo da eficiência comercial ao associaram a tecnologia ao marketing além da publicidade, para nos controlar e induzir os impulsos consumistas que lhes sejam mais convenientes. Não bastavam os folhetos, cartões de descontos, selos de coleção com direito a produto, valor de crédito em talões com prazo, ilusão de preço mais baixo ao retirar um único cêntimo no preço para ele terminar em …,99 €, embalagens de pesos variados que nada têm a ver com o kg e que enganam muitas vezes o consumidor ao dar a ilusão de preço mais baixo, mas que às vezes nem meio quilo têm e todo o tipo de promoções e descontos variados. Um supermercado desenvolvido hoje controla os nossos hábitos de consumo, os produtos mais comprados e quais as prateleiras onde vamos, para selecionarem os artigos dos talões de descontos que nos enviam. Enfim, controlando e orientando-nos só para consumir mais.

Tirando as estratégias comerciais que muitas vezes são lesivas dos interesses dos clientes e induzem ao consumo desnecessário, sempre considerei os supermercados corretos no que cobram e, por isso, não controlava à saída o valor da fatura nem o preço dos produtos. Nunca pus em causa a seriedade dessas “catedrais de consumo” no que diz respeito ao objetivo deles, “a conta”. Até um dia …

Depois de passar pela caixa de um supermercado local com os artigos comprados a quererem fugir-me da mão (recuso-me a comprar saco), dirigi-me ao carro enquanto enfiava a conta no bolso sem a verificar, apesar de me ter parecido algo exagerada para o que trazia. Quando abri o carro vi o cliente que passou a caixa antes de mim a acabar de arrumar as suas compras, fechar o carro e voltar ao supermercado a olhar a fatura das compras na mão como quem não concorda com alguma coisa. Então fiz o mesmo: arrumei as minhas, tirei a fatura do bolso e pus-me a verificar parcela a parcela. E lá estava um produto de que comprara 10 unidades debitado ao preço normal embora na prateleira estivesse como uma boa promoção. E fiz o mesmo que o outro cliente: voltei à loja e à caixa onde ele ainda estava a reclamar. Quando acabou, foi a minha vez de colocar a questão à funcionária que, depois de mandar verificar o preço do produto na prateleira, pediu desculpa e devolveu-me pouco mais de treze euros que, se o acaso não me tivesse feito olhar para o outro cliente, bem ficaria sem eles em benefício de quem precisa menos do que eu …

Nas idas seguintes aos supermercados continuei a confiar, mas, por precaução, passei a fazer um cálculo aproximado da conta à medida que colocava os artigos no cesto. Até que noutro supermercado cá da terra aconteceu um erro semelhante ao anterior em prejuízo também do meu bolso. Foi assim que a vida me deu nova lição e me ensinou a desconfiar dos supermercados e da fatura. Foi assim que evitei já por mais duas vezes erros – e vou chamar-lhe isso para ser simpático – mas sempre contra mim. Quando em casa falei nestas “anomalias” a Ana Maria contou-me logo vários casos passados com ela pois desde há muito passou a escrutinar rigorosamente a fatura e foram muitas as vezes em que sairia prejudicada se o não fizesse. E os erros que ela tem detetado são os mais diversos, ao contrário dos que aconteceram comigo. Havia uma coisa comum a todos os “erros” que aconteceram comigo e com ela: o prejuízo era sempre do cliente …

A vida ensina-nos que, mesmo que alguns dos nossos pensamentos pareçam tontos, não podemos ignorá-los, pois são alertas de que há algo de estranho e alguém pode querer “passar-nos a perna”. Sem ter medo de desconfiar de quem quer que seja, devemos comprovar as suspeitas, até porque é melhor desconfiar do que vir a ser enganado. E pelo que me tem acontecido ultimamente, bem posso dizer que os supermercados não estão acima de suspeita ainda que, por alguma questão de bondade, lhes chamemos “erros” …

Pen drives, Gigas, USB, Bluethooth …

Os avanços da tecnologia trouxeram com eles numerosos termos novos em inglês que os jovens apreendem cedo e com facilidade, mas que as pessoas da minha geração têm alguma dificuldade em “encaixar” na mona e, sobretudo, a perceberem o seu significado.  A conversa podia ter acontecido comigo ou com qualquer outro “maduro” como eu, para quem o computador pouco mais é que uma máquina de escrever. 

Circula pela internet este texto que um amigo me fez chegar há dias: “Numa loja de material informático o senhor Belmiro tirou um papel do bolso, leu as suas anotações e perguntou ao funcionário: – Por favor, tem uma “pen drive”? E o jovem respondeu prontamente: – Temos sim. – Pode-me dizer o que é uma “pen drive”? É que o meu filho pediu para lhe comprar uma! – Bom, a “pen drive” é um pequeno aparelho onde pode salvar tudo o que tem no computador. – Ah, é como uma disquete? – Não. Com a “pen drive” o senhor pode salvar textos, imagens e filmes. Com a disquete, que já não há, o senhor só salva texto.

– Está bem, já percebi. Quero uma. – Está bem. De quantos gigas? 

– Como? E o funcionário: – De quantos gigas quer a “pen drive”? 

– O que são gigas? diz ele. E o funcionário: – É o tamanho da “pen”. 

– Ah, estou a ver. Quero uma pequena que dê para levar no bolso sem fazer grande volume. E o rapaz – São todas pequenas, senhor. O tamanho é a quantidade de coisas que ela pode arquivar.

– E quantos tamanhos tem? E ele: Dois, quatro, oito, dezasseis …

– Hum, meu filho não disse quantos gigas queria. – Nesse caso, o melhor é levar a maior. Dá para tudo. – Acho que tem razão. Quanto custa? – Bem, o preço varia conforme o tamanho. A sua entrada é USB? – Como? – Para acoplar a “pen” ao computador a entrada tem de ser compatível. E o senhor Belmiro: – USB não é a potência do ar condicionado? – Não, isso é BTU. – Ah, é isso mesmo. Confundi as iniciais. Bom, eu sei lá se a minha entrada é USB! E o rapaz: USB tem dentinhos que encaixam nos buracos do seu computador. O outro tipo é este, o P2, mais tradicional e o senhor só tem que enfiar o pino no buraco redondo. O computador é novo ou velho? Se for novo é USB, se for velho é P2. – Acho que o meu tem uns dois anos. O antigo era com disquete. – Hoje não têm entrada para disquete. Ou é CD ou “pen drive”. – Pois, não sei o que fazer. Acho melhor perguntar ao meu filho. – Pode telefonar-lhe?    – Eu queria, mas o telemóvel é novo e tem tantas coisas que ainda nem sequer sei funcionar com ele.

– Deixe-me ver. Puxa, que Smartphone! Tem Bluetooth, câmara fotográfica, TV digital, enviar e receber e-mail, micro-ondas …

– Blu… Blu… Blutufe? E micro-ondas? Dá para cozinhar com ele?

– Não, não. Funciona no sub-padrão. Por isso é mais rápido. 

– E para que serve esse tal Blutufe? – Para um telemóvel comunicar com outro, sem fios. ­Que maravilha! É uma grande novidade!   – Mas os telemóveis já não se comunicam com os outros sem fio? Nunca precisei de fio para ligar para outro telemóvel. Fio em telemóvel, que eu saiba, é apenas para carregar bateria… -Não, já vi que o senhor não entende nada. Com o Bluetooth o senhor passa os dados do seu telemóvel para outro sem usar fio. A lista de telefones, por exemplo. ­Ah, e antes precisava de fio? – Não, tinha que trocar o chip. ­ Ah, sim, o chip. E hoje não precisa mais de chip… precisa, mas o Bluetooth é bem melhor. ­Interessante o negócio do chip. O meu telemóvel tem chip? Um momento … deixe ver… Sim, tem chip. ­E faço o quê com o chip? – Se o senhor quiser trocar de operadora, a portabilidade, o senhor sabe. ­Sei, sim, portabilidade, não é? Claro que sei. Não ia saber uma coisa dessas, tão simples? – Imagino que para ligar tudo isso no meu telemóvel, depois de fazer um curso de dois meses, só preciso clicar nuns duzentos botões… – Não! É tudo muito simples, o senhor apreende logo. Quer ligar para o seu filho? Anote aqui o número dele. Isso. Agora é só teclar, um momentinho, e apertar no botão verde… pronto, está a chamar.

Osvaldo segura o telemóvel com a ponta dos dedos temendo ser levado pelos ares, para um outro planeta: Olá filho, é o pai. Diz-me filho, a tua pen drive é de quantos… Como é o nome? Ah, obrigado, quantos gigas? Quatro gigas está bom? Ótimo. E tem outra coisa, o que era? A conexão é USB? É? Que loucura.

Filho, comprei a tua pen drive. À noite levo-a para casa.           – Que idade tem o filho? ­Vai fazer dez em Março. – Curioso…

É isso, vou levar uma de quatro gigas, com conexão USB.

– Certo, senhor.

Mais tarde, no escritório, examinou a pen drive, um minúsculo objeto menor do que um isqueiro e capaz de gravar filmes!!! Onde iremos parar? Então olha com receio para o telemóvel sobre a mesa. “Máquina infernal”, pensa. Tudo o que ele quer é um telefone só para fazer e receber chamadas. E tem nas mãos um equipamento sofisticado, tão complexo que só um especialista ou quem tenha menos de quarenta anos saberá compreender.

Em casa ele entrega a pen drive ao filho e pede para ver como funciona. O miúdo insere-a no computador e no monitor abre-se uma janela. Em seguida, com o rato abre uma página da internet em inglês. Seleciona umas palavras e um ‘havy metal’ infernal invade o quarto e os ouvidos de Osvaldo. Um outro clique e, quando a música termina, o garoto diz: – Pronto, pai, baixei a música. Agora levo a pen drive para qualquer lugar e posso ouvir a música onde tiver entrada USB. No telemóvel, por exemplo. ­O teu telemóvel tem entrada USB? – É claro, o teu também tem. ­ É? Quer dizer que eu posso gravar músicas na pen drive e ouvir pelo telemóvel? Se não quiser tirar direto da internet…

Naquela noite, antes de dormir, deu um beijo na Clarinha e disse: ­Sabes que eu tenho Blutufe? – O que é isso? ­ Blutufe. Não me vais dizer que não sabes o que é o Blutufe? – Não me chateies, Osvaldo, deixa-me dormir. ­Meu amor, lembras como era boa a vida quando telefone era telefone, gravador era só gravador, gira-discos tocava discos e só tínhamos carregar num botão para as coisas funcionar? Claro que me lembro, Osvaldo. – Hoje é bem melhor, não? Várias coisas numa só e até Blutufe tem. E conexão USB também. – Que bom, Osvaldo, os meus parabéns. ­ Clarinha, com tanta tecnologia a gente envelhece cada vez mais depressa. Fico doente só de pensar quantas coisas existem por aí que nunca vou usar. – Ai sim? Porquê? ­ Porque aprendi a usar o computador e o telemóvel e tudo o que sei já está ultrapassado. Por falar nisso temos que trocar de televisão.- Como? A nossa avariou? – Não. Mas não tem HD nem tecla SAP, slowmotion e reset. ­Tudo isso?… – Tudo. ­ A nova vai ter blutufe?

Boa noite, Osvaldo, vai dormir que eu não aguento mais” …

Este é o diálogo possível entre duas gerações separadas por um mundo tecnológico que não para de nos surpreender, com uma linguagem própria que os jovens apreendem facilmente, mas que para a minha geração é uma confusão danada …

Feliz de quem recebe “flores” em vida

O senhor Joaquim vive há cem anos na mesma aldeia de um concelho vizinho, de onde quase nunca saiu para ver o mundo, mesmo que o mundo fosse só o Porto ou Lisboa. Passou fome, viveu com inúmeras dificuldades, atravessou uma Guerra Mundial, uma Guerra Colonial e conseguiu que os seus cinco filhos e filhas sobrevivessem, ganhassem asas e tivessem (e ainda tenham) uma vida boa apesar de, para tal, terem emigrado para França, por onde se mantêm. E tudo isso foi conseguido somente com o fruto do seu trabalho de jornaleiro e com a ajuda da senhora Maria, sua mulher, que governou a casinha onde moravam na aldeia e cuidou dos filhos enquanto não “voaram” para a “estranja”, para além de cultivar o pequeno quintal de onde tirava as hortaliças para o “caldo”, até ser “levada pelo Senhor” já lá vai “um bom par de anos”. Ainda com a cabeça completamente coberta de cabelo, mas a quem o tempo pintou de branco como um sinónimo de experiência e sabedoria, todos os dias depois do almoço vai até ao ponto de convívio da aldeia, uma antiga “tasca” que os proprietários teimaram em “modernizar” batizando-a de “Café da Aldeia” apesar de quase só lhe acrescentarem meia dúzia de mesas e nenhumas obras, por onde fica quase toda a tarde em conversa com quem está por ali. E ele, como bom contador das muitas histórias de uma vida longa e intensa, alimenta com facilidade as tertúlias com amigos e vizinhos. Há dias recebeu a visita de um velho amigo, “rapaz” mais novo que ele, emigrante em França, mas que nos últimos anos tem vivido entre cá e lá, que não deixa de o visitar sempre que vem a Portugal nem de convidar e acompanhar ao tal “café” da aldeia onde passam horas a fazer o que melhor sabem: falar. Naquele dia sentou-se à mesa um dos filhos do senhor Joaquim, também ele emigrante em França, que assistia mais à conversa do que participava e ouvia o pai repetir com frequência “aqui o Manel é o meu maior amigo”. E, volta e meia, lá vinha mais um novo “aqui o Manel é o meu maior amigo”. 

Às tantas, o filho do senhor Joaquim perguntou-lhe: “Ó pai, porque é que está sempre a dizer que o Manel é o seu maior amigo”? E ele, sem desviar o olhar, respondeu: “Porque o Manel já me levou a França e trouxe duas vezes, deu-me cama e mesa em sua casa e levou-me a passear por aquelas terras que eu nunca vira, para além de me visitar e fazer companhia sempre que cá vem, coisa que nenhum dos meus filhos fez apesar de virem cá todos os anos nuns “brutos carrões” e mostrarem que “puxam bem” e a vida lhes corre de feição. Mas só o meu amigo Manel se lembrou de mim” …

Encontrei-me há dias com esse tal Manel e estivemos à conversa, embora não tenha sido tão prolongada como as que ele tem com o seu amigo. Vinha muito incomodado pelo comportamento da mulher de um seu familiar porque, enquanto no funeral fizera um espetáculo de dor e sofrimento, chorando e gritando desalmadamente em plena igreja, já na missa de sétimo dia apareceu feita “viúva alegre”, sem sinal de dor pela perda do marido, permitindo-se até contar anedotas nada adequadas à sua condição, quanto mais ao momento. “E eu sei bem como é que ela o tratou em vida”, acrescentou. “Já preparou um espetáculo de viúva cheia de saudades do marido para o Dia de Fiéis e Defuntos. É por isso que, apesar de respeitar a tradição, nesse dia não vou ao cemitério colocar flores na campa dos meus familiares. As “flores” dou-as às pessoas em vida” …

É no Dia de Finados que milhões de pessoas vão ao cemitério levar flores, rezar e acender velas ou lamparinas pelos seus entes queridos que morreram, numa romagem anual que faz viajar de muito longe quem não se esquece, sentida para muitos, uma mera formalidade a “cumprir calendário” para outros. Podia ser o “Dia da Memória” por levar a que muita gente não se esqueça por completo dos familiares e amigos que partiram nesta vida tão atarefada e de pressa, obrigando-os a recordar ainda que uma só vez por ano, porque há quem ali vá com mais ou menos regularidade prestar homenagem e cuidar do espaço e para quem o dia 1 de Novembro é só mais um dia. No meio rural como o nosso, também há quem “vire o bico ao prego” e veja no momento uma oportunidade para “fiscalizar” todos os túmulos do cemitério, julgar e condenar a família que não cuidou e alindou o seu, além de avaliar enquanto “jurados num suposto concurso de arranjos florais” quem teve os ramos de flores mais valiosos e de maior beleza, motivo de rivalidades e competições entre familiares, vizinhos ou conhecidos e matéria de comentários na aldeia durante a semana seguinte. 

Parece muito estranho ver algumas viúvas que foram tão maltratadas pelos seus homens e que neste dia não deixam de lhes levar arranjos florais vistosos. Será que é mesmo para homenagear o defunto, para lhes dar o seu perdão ou, pelo contrário, para agradecer a Deus o ter-lhes concedido a liberdade e o fim do martírio? Fica a dúvida …

O Papa Francisco não deixa de nos enviar numa das suas mensagens estas considerações: “O ser humano é estranho. Briga com os vivos e leva flores para os mortos. Lança os vivos na sarjeta e pede “um bom lugar para os mortos”. Afasta-se dos vivos e agarra-se desesperado a eles quando morrem. Fica anos sem conversar com o vivo e desculpa-se e faz homenagens se ele morre. Não tem tempo para visitar o vivo, mas tem o dia todo para ir ao velório do morto. Critica, fala muito mal e ofende o vivo, mas santifica quando ele morre. Não liga, não abraça e não se importa com os vivos, mas se autoflagela quando morrem. Aos olhos cegos do homem, o valor do ser humano está na sua morte e não na sua vida” … 

Será preciso perder para valorizar? Porque é que se passa a ser uma excelente pessoa e os elogios só aparecem depois de morto? Qual a razão por que só se recebem muitas flores já quando se não podem cheirar, olhar e apreciar? Estamos demasiado ocupados com a vida para “dar flores” aos vivos e só nos lembramos de o fazer quando eles já estão do lado de lá? Considero importante e indispensável a tradição do Dia de Finados como Dia da Memória que é para todos nós e a homenagem sincera que cada um faz aos entes queridos diante da campa ou jazigo onde estão depositados os seus restos mortais, expressa das mais diversas formas, seja através de um simples ramo de flores do campo, de uma vela ou lamparina acesa, de uma oração em silêncio ainda que diante da campa despida de enfeites para além da cruz, como um despertar de consciências para aqueles que se esqueceram deles, de tão presos e entregues à pressa dos dias. Pelo contrário, os arranjos e enfeites de flores e artefactos caros, mais não são do que vaidades expressas na arrogância do dinheiro ou na tentativa de aliviar as consciências pelas “flores” que se não ofereceram ao morto em vida. É notável como a jovem Anne Frank, com menos de 15 anos, percebeu bem a natureza humana ao escrever um desabafo no seu célebre Diário: “Os mortos recebem mais flores que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão”.   
Razão tem o Manel quando diz que “as “flores” devem dar-se em vida às pessoas de quem gostamos, pela presença e companhia, a forma como as tratamos, lhe dizemos que as amamos e saberem que podem contar connosco”. Essas “flores”, sim, temos a certeza de que chegam diretas aos seus destinatários e os ajudam a suportar melhor esta vida terrena…