Monthly Archives: August 2017

Morreu um cão…

Morreu um cão. Apesar do profissionalismo da equipa médica que dele tratou, não foi possível debelar o mal intestinal que o consumia e lhe fez perder um terço do peso nos últimos trinta dias. Numa longa conversa, o médico veterinário responsável falou com o dono e informou-o da queda dos valores das análises muito para baixo dos mínimos e do seu significado, desenganando-o e deixando nas suas mãos a decisão sobre o futuro do seu cão. E foi a decisão mais difícil que teve de tomar na sua vida. A sua opção foi de não prolongar mais o sofrimento do animal, um sofrimento inútil e sem sentido. Nem prolongar o seu sofrimento pessoal e o da família. Mas chorou muito, como já há muito tempo não o fazia… E chorou também nos dias seguintes sempre que abria a porta de casa pela manhã e sentia a falta daquela enorme bola de pelos a irromper casa dentro, abanando a cauda de alegria e encostando-lhe o focinho nas pernas, pedindo os acostumados mimos matinais. Ficou-lhe uma saudade imensa desse animal que adoptou de um canil e a quem salvou a vida e recuperou por traumas do passado, mas a quem se afeiçoou tanto. E recebeu dele muito mais do que lhe deu. Sim, porque o seu cão recompensou-o plenamente daquilo que fez por ele.

Foi um companheiro fiel e leal sempre pronto a segui-lo para todo o lado com alegria e entusiasmo. Fazia parte da rotina da sua vida diária e era importante na felicidade quotidiana da família, com a sua presença constante, sem nada pedir em troca. Uma companhia que nunca o criticou nem julgou, ajudando a amenizar o stress do dia a dia. Se no início não era opção entrar dentro de casa, bem cedo se foi insinuando pela ternura e pela docilidade e, pouco a pouco, virou membro pleno da família, com acesso a toda a casa, onde passava a maior parte do tempo. Tornou-se um companheiro inseparável que raramente perdia os donos de vista. Mal o dono pegava na trela, saltava e rodopiava sobre si numa alegria incontida, a comemorar antecipadamente a saída para uma caminhada pelas ruas da terra. E tanto corria no relvado, como passava horas deitado a seus pés quando lia, trabalhava ou via televisão. Mas perdeu-o e só lhe restam as imagens e a saudade, uma imensa saudade.

Agora percebe o porquê de todos os donos de animais de estimação sentirem não ter “autorização” da sociedade para ficarem tristes ou até chorarem pela morte do seu animal. É que a grande maioria da sociedade não considera que uma pessoa “possa estar de luto” e “entristecer” pela simples morte de um animal, mesmo que lhe seja próximo, que lhe esteja ligado afetivamente. É um facto, a sociedade não dá espaço ao luto e tem de se continuar a viver como se nada tivesse acontecido. Normalmente nem se fala com os outros sobre o que se está a sentir, pois parece que são muito poucos os que se sensibilizam quando se diz “o meu cão morreu”. Por isso, a morte de um cão é uma perda, embora não reconhecida como tal. Ouve-se até com frequência: “Era só um cão!!!…”, como quem quer dizer “uma coisa vulgar, sem qualquer valor. Há muitos outros por aí. Se ao menos fosse uma criança?”. Mas ao dono apetece gritar: “Não, não era só um cão. É O MEU CÃO e fazia parte da minha vida”.

Mas, falar do sentimento de perda em relação a um cão é incompreensível para muita gente. E é natural. Quem nunca teve a felicidade de viver com um animal, não faz (nem pode fazer) a mínima ideia do quanto se sofre (nem sequer do quanto se perde) com a sua morte. E nem compreende a importância que ele pode ter tido na vida do seu dono e da família. Essa insensibilidade é extensiva a muitos daqueles que, tendo animais de estimação à sua guarda, nunca os “adoptaram” verdadeiramente, nem integraram no agregado. Muitos, usam-nos para prestar um serviço, seja ele caçar, guardar a propriedade ou como mera “fábrica de produção” de cães para negócio. Quando deixam de servir, desfazem-se deles abandonando-os no meio do monte a duzentos quilómetros de casa, com um tiro na cabeça ou afogando-os. São descartáveis, tal como os seres humanos quando deixam de ser úteis, quando deixam de produzir. Só que os humanos não são abatidos… para já. Mas já faltou mais…

A morte, esse desfecho que encerra a vida de todos, é uma certeza que aprendemos a ignorar no dia a dia, fingindo que não é connosco. Mas ela chega, porque nunca se esquece de nós. E então, ficamos tristes por perder algo que amamos tanto. É por isso que a perda de um parente ou amigo costuma ser devastadora. Ora, os animais de estimação ocupam lugares semelhantes na vida de quem os integrou na família e a dor de perdê-los é igualmente grande. Porque nos dão muito, em lealdade, em amor incondicional, em fidelidade. Como me dizia uma mulher simples da aldeia, “com um cão nunca estamos sós, nem sentimos a solidão. E ao chegar a casa temos sempre alguém à nossa espera, a receber-nos com expressões de alegria impensáveis num ser humano”. E, verdadeiramente, só cada dono é capaz de saber o quanto representa para si. Ninguém mais. Assim, a morte de um cão que esteja integrado na família não é diferente da perda de um ente querido, até porque de um ente querido se trata. E sofre-se com a sua perda, somente porque nos permitimos amar, retribuindo em singelo o que ele nos dá em dobro.

Morreu um cão… Era tido como membro da família que o adoptou, deixando um vazio e uma saudade enormes, um sentimento de perda que não se imaginava e para o qual não se estava preparado.

O cão que morreu tinha oito anos. Era uma fêmea dócil e dava pelo nome de Diana.

E eu sinto-me orgulhoso. Triste, mas orgulhoso, por poder dizer que tive o privilégio e a felicidade de ser seu dono…

Levantar cedo? Que sacrifício…

Nunca fui um “madrugador militante” e só em casos de extrema necessidade ou quando não tenho alternativa me submeto a esse suplício. Sim, porque é uma violência, muito especialmente para quem se deita quase à hora do galo cantar… Definitivamente, estou com os que dizem que só os tolos se levantam cedo. Os tolos e os necessitados. O homem não nasceu para acordar cedo, nasceu para acordar. Em lado nenhum está escrito que tem de ser cedo. Isso é só para os que dormem a correr… A natureza não nos criou com esse “defeito de fabrico”, é uma invenção da era industrial. E então, ter de acordar com o barulho estridente de um despertador enfurecido, é violência psicológica que mais parece uma tortura da Idade Média, deixando qualquer um traumatizado para o resto da vida. Para atenuar tal violência, já se desperta ao som da música preferida… que só o é, até se tornar a música do despertador. Todas as manhãs tenho muita vontade de acordar cedo mas, para ser sincero, a vontade de continuar a dormir é bem maior. Por isso, todos os dias luto comigo mesmo para saltar da cama para fora e, quando consigo, dou comigo a dormir em pé. É natural que, neste tempo em que se vive muito a noite e de noite, toda a gente desperta com uma grande vontade: De continuar a dormir. Até porque, o difícil não é o deitar tarde. Difícil, difícil, é acordar cedo. Quem comanda este mundo louco só devia autorizar o acordar sem ser ao compasso de horários, ao ritmo dos compromissos, dos toques do telefone, campainhas de rua ou de despertadores roufenhos, de ser cedo ou tarde, noite ou dia.

À medida que os anos passam, as coisas ficam mais complicadas para mim. Deito-me para recuperar forças e acordar renovado e fresco mas, na realidade, quando me levanto tenho o corpo moído, como se tivesse sido atropelado por um comboio. O que está errado? Só o facto de me ter levantado. Nada mais. Aliás, o meu corpo reage sempre negativamente a isso, pela manhã. Sem mais nem para quê, mal saio da cama desato a espirrar e só paro muito para além da meia dúzia de “Atchins”. Constipação? Nada disso. Trata-se de alergia pura e só pode ser ao “levantar”. Ou, quando muito, à “manhã”. Sim, alergia matinal, aos primeiros raios de sol, à luz do dia e tudo o mais que possa acontecer a essa hora.

Já foi tempo em que o Tónio Silva, vizinho dos meus pais e pedreiro de profissão, se levantava às cinco da manhã para ir a pé para o trabalho a quilómetros de distância, onde tinha de “pegar” ao nascer do sol. E só “arriava” depois do sol posto… para regressar a casa a pé. Aí, a “ditadura da miséria” impunha leis contra natura, como essa de ter de levantar cedo, quando o corpo pedia descanso. Como não havia televisão, o povo “deitava-se com as galinhas e, antes de adormecer, entretinha-se a fazer filhos. Era uma “ocupação” boa? Tão boa como outra qualquer. Daí haver “ninhadas grandes”…

Agora, não há nada disso. Vivemos (quase) todos agarrados à televisão que transmite toda a noite em “trezentos canais” diferentes, não deixando tempo para essa “outra distração”, pois até o cidadão mais enfezado tem de fazer uma ginástica do caraças com a mão para dominar o comando da TV, saltando de canal em canal. Claro que, assim, só pode ir para a cama às tantas da manhã, já sem físico nem paciência para “cambalhotas”. E depois, faz algum sentido ter de aguentar um despertador qualquer aos berros às sete ou antes? Não faltava mais nada.

Cá em casa já parti os despertadores todos à marretada, para não ficar qualquer fiozinho ligado, por mais pequeno que seja, que ainda permita chatearem-me a horas inconvenientes. Já não me conformo ao ser acordado por um despertador desafinado, quando não roufenho. Nem sequer pela Rádio Comercial… É que é muito difícil viver quando a gente se deita para dormir e, minutos depois, já é dia e hora de pôr o coirão fora da cama. Que culpa temos dos ponteiros do relógio andarem a grande velocidade quando estamos a dormir? Por isso, nas muitas vezes que acordamos de madrugada com vontade de fazer xixi, mantemo-nos no aconchego dos lençóis a lutar contra o “vou ou não vou” à casa de banho. E vamos aguentando na cama, divididos entre a “vontade” do xixi que não deixa dormir e o sono que não nos deixa sair da cama. Faz falta o velho “penico”…

Ninguém compreende os que defendem que nos devemos levantar cedo. Só se for para castigar o corpo ou para termos tempo de voltar para a cama… Esta coisa do sono é coisa séria. Um dia num Lar de Idosos (agora chamados de seniores ou “sessenta mais”), uma mulher gritava desalmadamente: “Ai, ai, ai…”. Aqueles gritos incomodavam qualquer um e a minha mulher, no seu habitual espírito de tentar ajudar, perguntou-lhe: “A senhora tem dores”? E a utente respondeu prontamente: “Tenho, tenho muitas dores”… “ E de que se queixa”, insistiu? E ela respondeu-lhe logo: “São dores de sono”…

O mundo evoluiu, há que reconhecê-lo. Se foi para melhor ou pior, não sei. Antigamente deitávamo-nos “com as galinhas” (isto é, cedo) e cedo nos levantávamos. Mas isso era antes… Agora, tiramos cursos de morcego, fazendo noitadas até às tantas da matina. E depois, ainda querem que se acordemos cedo… Mas o que é isso de “acordar cedo”? Às sete… da tarde? Ou tem de ser às cinco?

A Simone de Oliveira dizia numa entrevista que a pior coisa que lhe podia acontecer era ter de acordar e, quando se levantava de manhã (e para ela “manhã” era a partir do meio dia), sentia que “tinha cem anos ou mais”. Mas, à medida que o dia ia avançando, revivificava e rejuvenescia hora a hora, a tal ponto que, quando chegava à meia noite, era como se tivesse quarenta anos ou menos.

Nos últimos tempos a Luísa acorda quase sempre entre as sete e as oito horas da manhã e diz logo: “Quero ir embora”, que é como quem diz, “Quero levantar-me”. Bem enterro a cabeça na almofada, finjo que estou a ressonar ou digo que ainda não é dia, mas nada adianta. Tenho de a ajudar a levantar-se, com tudo o que isso implica… Mas pareço um zombie. E ela, apesar dos seus problemas de saúde, todos os dias se apercebe desse meu estado. E enquanto a estou a ajudar, no seu espírito solidário, diz-me sempre: “Estás cheio de sono. Vai dormir que eu levanto-me sozinha”… Vejam isto, até ela é a primeira a reconhecer que são horas impróprias para eu acordar. Por isso, meus amigos, deem-me uma ajuda e nunca me telefonem… antes do pôr do sol. Posso estar a dormir…

Uma época de pura felicidade…

Está a chegar ao fim o período de maior felicidade de uma mulher: A época de saldos, se bem que agora “já é Natal (quase) todo o ano”… Fazer compras, faz bem a qualquer mulher. Oh se faz… Por isso, após uma ida às compras, toda a mulher se sente alegre e volta para casa mais animada, revigorada. É que, se está deprimida, se lhe dói a cabeça, se não sabe o que fazer ou sem razão nenhuma especial, nada como uma ida ao shoping. É remédio santo para todos os males. Mulher às compras irradia felicidade, está no seu mundo. E quanto maior é o tamanho e o número dos sacos de compras à saída da loja, maior é a dimensão dessa felicidade. Até quando só experimenta um centena de sapatos na loja, sem comprar sequer um par, diz: “Depois eu volto”. Já o homem odeia essa viagem, detesta acompanhar a mulher numa ida ao shoping. Basta olhar para os sofás e bancos espalhados pelos corredores dos centros comerciais a abarrotar de homens com a mesmas “trombas” e olhar triste, à espera pela mulher que anda às compras… Têm todos o mesmo ar de desgraçados. E, vá lá, vá lá. Pior é para aqueles que têm de as seguir loja dentro e ser assistentes no programa completo delas, a experimentarem roupa ou calçado: “Este está apertado… aquele faz-me gorda… a cor desta não liga bem com o casaco…” E ver o ar infeliz por debaixo do sorriso profissional das empregadas, ao tirar e pôr artigos atrás de artigos das caixas e cabides, a dobrar roupa e voltar a arrumar a loja de alto a baixo. O homem sente-se envergonhado. Afasta-se e finge olhar uma coisa qualquer, para não ser tido por cúmplice no virar a loja de pernas para o ar.

Pois é, meu caro companheiro de desdita. Aqui estou eu a manifestar-lhe a minha solidariedade e dizer-lhe: “Não se sinta só. Há milhões de homens que odeiam ir às compras com a mulher… mas têm de ir. Conte com a sua solidariedade, com o mesmo sofrimento, porque é no sofrimento que as pessoas mais se aproximam. E todos nós sabemos que, acompanhar a mulher numa ida ao centro comercial, é tarefa pesada, muito pesada. E cara… É o chamado “frete supremo”… Eu sei com que cara fica quando está à entrada da loja à espera dela, fingindo ver montras ou ver as mensagens no telemóvel. A sua cara não engana e nem consegue esconder esse mal estar: Está desolado… Mas tem de estar por perto quando ela o chama… para pagar e carregar a mercadoria. Mas, do mal o menos. Ao ficar fora da loja livrou-se de “ser consultado” quando ela veste ou calça qualquer artigo: “Achas que me fica bem”? “Não é muito escuro”? “ Liga bem com os sapatos”? “Não me faz mais velha”?

Mas, preste bem atenção, para o caso de ter de funcionar como “consultor de moda”. Se ainda lhe resta uma pontinha de juízo, não responda. Abane com a cabeça como os burros, que bate certo com aquilo que ela quer, e não diga nada. Porque tudo o que disser, joga contra si. Se diz que fica bem, ouve logo: “Não vês que me faz gorda?”… Se diz o contrário, vai ter de ouvir: “Pois é, o que tu queres é que eu não gaste dinheiro”… E, mesmo quando sabe de antemão que não vai comprar nada, ela experimenta a loja toda… Como é possível? Não é para nós homens entendermos. Para elas, são “momentos de pura felicidade” à borla.

Um dos argumentos mais usados pela mulher para ir às compras é invocar a necessidade dele: “Estás a precisar de comprar calças. As que tens estão velhas”. “Tens de comprar camisas. As tuas estão puídas no colarinho”. “Andas sempre com a mesma roupa, precisas de ir às compras”… E ele, numa tentativa de evitar o “desastre”, argumenta: “Ora, ora. Tenho o armário cheio de roupa que não uso há muito tempo”… Mas, nada adianta. Ao outro dia o desgraçado lá vai atrás dela, arrastado e contra a vontade, a pensar para si próprio: “Que seja para desconto dos meus pecados”… No final, sem ter voto na matéria, sai carregado de sacos e caixas, que já não tem mãos que chegue. E a ele tocou-lhe um par de calças de marca que lhe custaram os olhos da cara, quando ficava bem servido com aquelas calças azuis que estavam no quinto saldo… É que assim, ela tem argumento para lhe dizer: “A tua roupa está muito cara”…

Se mulher adora fazer compras e de ficar horas numa loja, homem odeia. Enquanto ela anda feliz da vida, saltando de loja em loja, ele só é capaz de entrar se vir algo na montra de que goste. Nesse caso entra, aponta para o artigo da montra, pergunta se tem o seu tamanho, experimenta e, se servir, compra e sai. Dez minutos já é tempo demais para permanecer numa loja. Detesta experimentar artigos e não quer incomodar as empregadas. Só o indispensável. E até pede desculpa pelo incómodo…

Telefonou-me um amigo. Eram quase sete horas da tarde e ainda se encontrava num “outlet” lá para os lados de Vila do Conde, para onde tinha ido às três da tarde. Carregado de embrulhos, seguia a mulher de loja em loja, pois ela exigia a sua presença e a sua “opinião”, que é como quem diz, “não ter voto na matéria”. Estava cansado e farto mas não tinha “autorização” para o manifestar. Queria desabafar mas, além de o ouvir pacientemente, só lhe pude manifestar a minha solidariedade…

Na China, o problema é semelhante. Por isso, alguns centros comerciais resolveram o incómodo criando um “berçário” para homens, uma sala com poltronas para relaxar, ver televisão ou dormir, onde as mulheres que “não necessitam dos seus serviços” os largam, para felicidade deles. Mas não se esquecem de lhes levar o cartão de crédito…

Um artista que é “um espetáculo”…

Participei recentemente num congresso durante dois dias, ouvindo alguns palestrantes com prazer, enquanto outros só me conseguiram embalar, até me porem a dormir. Valeram-me os companheiros de jornada, já avisados: Quando ressonava mais forte, davam-me uma cotovelada, suficiente para acalmar o ronco e evitar com isso que os outros “acordassem”. Nesses dois dias havia um homem no auditório vestido de jeans e t-shirt, que carregava cadeiras e mesas, regulava microfones, organizava o palco, uma espécie de “faz tudo”, humilde e discreto naquela multidão de gente engravatada. No segundo dia, à noite, o programa deu-nos um espetáculo nesse auditório. Talvez por já ter dormido o suficiente com a intervenção de alguns palestrantes, alinhei no sarau. De início tocaram dois grupos locais, que ouvi com muito agrado e depois entrou o “arrumador” com uma viola regional e a mesma roupa com que andara vestido durante o dia. Regulou o microfone e pensei que deveria estar a prepará-lo para o artista seguinte. Mas não. Sentou-se, pegou na viola, chegou o microfone para junto de si e anunciou: “Agora vai tocar o porteiro”. E daquela viola regional a que chamam “viola da terra” e que noutras regiões do país apelidam de “braguesa”, “dois corações” ou “campaniça”, retirou uma música dedilhada com um virtuosismo impressionante, que deixou toda a plateia extasiada. Só tocou três músicas, entremeadas por conversa bem humorada e inteligente, que arrancou enormes gargalhadas à plateia. Quando terminou, foi aplaudido de pé, com o pedido para continuar. Mas ele pediu desculpa e não tocou mais, porque o espetáculo tinha de prosseguir com o programa previsto, de que ele era o responsável.

No dia seguinte procurei-o. Andava a preparar o auditório para a sessão de encerramento, com a mesma simplicidade, ficando até surpreendido por o abordar. Conversamos um bocado e, se já a sua música e a veia humorística me tinham impressionado no dia anterior, a sua humildade e modéstia despidas de qualquer sombra de vedetismo, deixaram-me rendido ao homem e ao artista.

Luís Gil Bettencourt é o seu nome. Músico, compositor e produtor musical, que mantem uma atividade na organização de eventos culturais, é natural da Terceira, nos Açores. Descendente de família de músicos, começou aos seis anos a tocar e cantar para os militares americanos da base das Lajes. Viveu a adolescência nos Estados Unidos com os pais e nove irmãos, a maioria deles músicos e fez parte de uma banda que atingiu grande prestígio. Mas deixou a terra do tio Sam para regressar ao seu país e aos Açores e “puxar” pela cultura das ilhas que são a sua casa. E fez disso a sua missão.

Na sequência da nossa conversa e de contactos posteriores, atuou recentemente no Auditório de Lousada. E, se dúvidas houvesse sobre as suas reais capacidades, dissiparam-se por completo ao longo dum espetáculo que o público (onde me incluía) não queria que acabasse. Desde o momento da apresentação até à última canção, transportou os espectadores numa viagem musical que começou nas ilhas e atravessou o país, tendo ele sido o cicerone e o guia, levando-os do riso às lágrimas, do silêncio ao coro geral da sala, com mestria e inteligência, na simplicidade e humildade de um grande artista.

Para introduzir uma canção de embalar, falou da sua mãe e de como ela lha cantava quando era pequeno. “Nós somos dez irmãos, quase todos ligados à música. E temos a sorte de nos darmos muito bem, de estarmos juntos muitas vezes. A minha mãe morreu nos Estados Unidos. Nos últimos dias, já era a máquina que lhe suportava a vida. Não havendo mais esperança, a família reuniu-se e deliberou que a máquina devia ser desligada. Coube-me a mim essa honra. Então, com os filhos à volta da cama, no momento em que eu desligava a máquina, todos em coro cantamos-lhe esta canção de embalar”. Neste momento a maioria dos espectadores estava com um lágrima no canto do olho. E ele, imediatamente e para quebrar esse momento carregado de emoção, acrescentou: “E ainda hoje não sabemos se a minha mãe morreu por eu lhe ter desligado a máquina ou se foi por cantarmos tão desafinados”… E as pessoas passaram das lágrimas ao riso, levadas por um artista completo, senhor do palco e do público com quem interagiu plenamente.

O seu irmão mais novo a quem ensinou os primeiros acordes da viola, é já há alguns anos considerado um dos maiores guitarristas do mundo e dá pelo nome de Nuno Bettencourt. E ele, que teve tudo para ser consagrado também no mundo da música, abdicou de uma carreira para se dar aos Açores, mantendo laços de amizade com muitas estrelas mundiais da música, algumas das quais faz questão de levar à sua terra em dois mil e dezanove, num festival invulgar na Lagoa das Sete Cidades.

Voltou a Lousada como amigo. Quando lhe disse que os UHF iam atuar à noite e estavam nos testes de som, quis dar um abraço ao vocalista António Ribeiro, seu amigo pessoal. Fui com ele junto do palco no centro da Vila mas só lá estava o pessoal auxiliar a testar o som. Músicos, nenhum. Então foi junto do controle do som e tentou falar com um membro da equipa. Muito educadamente, perguntou pelos músicos mas só recebeu indiferença e má educação, de alguém que se julga “importante” por trabalhar com os UHF. Mas ele, com humildade, disse-lhe que gostava de cumprimentar o vocalista. A indiferença e cara de poucos amigos do “manager” continuou a ser a mesma. Ao fim de alguns minutos, quando viu que nada havia a fazer ali, pediu-lhe: “Já agora, faça-me um favor. Diga ao António Ribeiro que o Luís Bettencourt esteve cá e lhe deixa um abraço”. O homem que permanecera sentado e indiferente durante a conversa, levantou-se como que impelido por uma mola e deu um grito de surpresa: “Luís Bettencourt? Oh que grande honra vê-lo aqui”… E desfez-se em amabilidades, cumprimentos e elogios, numa manifestação de imbecilidade e subserviência, a contrastar com a arrogância e indiferença de momentos atrás.

Como a conversa já vai longa e para concluir, um primeiro conselho: Se encontrarem um imbecil como este, armado em gente importante, ignorem-no. E um outro, que nunca devem esquecer: Se tiverem a oportunidade de ir a um concerto do Luís Gil Bettencourt, agarrem-na com unhas e dentes, porque ele é excepcional, como músico e humorista. E como homem. Como diria o Fernando Mendes, irão ver “um artista que é um espetáculo”…