A raiva é uma infeção provocada por um vírus e transmite-se através do contacto da saliva, por mordedura. Foi erradicada em Portugal há muito tempo, mas como precaução, a vacina é obrigatória para cães com mais de três meses de idade. E a Becas, a minha nova cadelita, está vacinada e protegida. No entanto, tenho andado preocupado, muito preocupado mesmo, porque corre sérios riscos de poder vir a ser infetada com uma nova “variante” desse vírus mortal e não sei como protegê-la. O novo “vírus” tem-se espalhado a uma velocidade incrível, maior do que a dos incêndios do verão passado no centro do país, tornando-se já uma epidemia que o Ministério da Saúde deve reconhecer a qualquer momento. E o meu grande receio é que um dos infetados apanhe a Becas distraída e lhe pregue uma mordidela “à falsa fé”.
O problema é grave e todos os dias podemos ver gente infetada com o novo “vírus”. Basta assistir a qualquer programa de televisão sobre futebol e ouvir comentadores “isentos”, para ver as manifestações da “doença,” em convulsões violentas. Arreganhando os dentes de forma agressiva, “infetam” todos os que não estão imunes às “mordeduras”, transmitindo o “vírus” pessoa a pessoa, em contágio sucessivo, dos cafés ao emprego, das tertúlias aos tascos. Os dirigentes inflamam os adeptos e estes as redes sociais, onde vertem o “vírus”, convencidos de que são opinião avalizada e não sectária, disseminando a doença de forma avassaladora. E são tantos os “infetados” que, nesse jogo da bola, “mordem” com violência, sem já se aperceberem que o fazem. Como se fosse natural.
Mas, se passarmos do futebol à política, as manifestações de “raiva” são mais que muitas, porque não são admitidas opiniões contrárias. Há que denegrir os adversários, atingi-los na sua vida pública ou pessoal com tudo o que há de pior, “mordendo” de qualquer jeito e em qualquer sítio para tentar abatê-los e diminuir a concorrência. E “ataca-se” com a estratégia da “alcateia”, em grupos organizados, não se limitando a “morder” só os inimigos externos, de outros “credos”, mas também os próprios companheiros de grupo que possam ser um estorvo para as suas ambições pessoais. Da Assembleia da República às Assembleias Municipais, dos Congressos partidários aos comícios, a doença está disseminada. Ouvi-los e vê-los, é assistir ao contágio do “vírus” em direto e a cores, nalguns casos na forma mais “virulenta”. E infetam legiões de seguidores, que o reproduzem com mais ou menos intensidade, num “efeito bola de neve”.
É por isso que não deixo a Becas ver televisão, ler jornais ou ouvir rádio. Muito menos entrar nas redes sociais e ler opiniões inflamadas e agressivas, ofensivas da boa educação. São “mordeduras” graves e muito contagiosas, que a podem “infetar”. E sei que a “raiva” pode degenerar em ódio, um derivado ainda mais perigoso e fatal porque atrai a vingança, num círculo de “ferro e fogo” que não para.
Os acessos de “raiva” não são um exclusivo do mundo do futebol, da política e das redes sociais. Nada disso. A “infeção” já alastrou a toda a sociedade e é visível em manifestações mais ou menos públicas. Algumas delas são feitas às escondidas, com o “raivoso” a “morder pela calada”, atrás do anonimato cobarde e mesquinho.
Um amigo, dirigente conceituado de uma instituição social à qual dedicou parte da sua vida, desabafou comigo, triste e revoltado, por ter recebido uma carta anónima onde o acusavam de vários absurdos inimagináveis. Estava chocado com tanta maldade e mentira, que só tinha um pensamento: demitir-se. Ele, que dera uma boa parte da sua vida à instituição como voluntário, era vítima da “raiva” vertida por um “covarde”, que só o queria destruir. Quando li a carta, não reagi e ele, ansioso, perguntou-me: “Não achas revoltante? Porque é que eu tenho de aturar isto”? Vou-me embora e não quero ouvir falar mais na Instituição” … Não foi fácil, mas consegui acalmá-lo. Mas ainda o ouvi: “Eu pensava que dediquei a minha vida a cuidar de desgraçados e, afinal, o desgraçado sou eu”. Tive então de lhe dizer umas quantas coisas a que ele estava alheio. É que, nem sequer sabia que as cartas anónimas viraram praga e os dirigentes das IPSS são os mais visados. Usa-se e abusa-se desse meio para, a coberto do anonimato, denegrir, vilipendiar e tentar manchar a reputação de gente séria que dá o seu melhor ao serviço dos outros. A vez dele chegara, como chegara a de tantos outros. E vai continuar.
A delação dos informadores no tempo da PIDE era criticada e hoje a lei alimenta e protege os “bufos” que condenava no tempo da ditadura. O que não deixa de ser curioso… E disse-lhe ainda que eu também já tive o “privilégio” de receber umas quantas cartas anónimas enquanto dirigente da instituição a que presido. Para mim, são um bom indicador. Se não as tivesse recebido, era sinal de que era “um banana”, “um gajo porreiro”, mas que não zelara pelos interesses da Instituição. Já me acusaram de bater nos idosos do Lar, de os roubar, dar-lhes fome e outras mentiras mais que mirabolantes, que só uma mente em delírio seria capaz de inventar. E até enviaram cópias ao Presidente da República, Polícia Judiciária, Segurança Social e outras entidades.
Preocupado? Nada, nem sequer um pouco. Estou de consciência tranquila, tal como os restantes dirigentes da Instituição. Com esta autoridade moral, participamos ao Ministério Público e informamos a Segurança Social porque, “quem não deve não teme”. Há que alertar as autoridades para o perigo de mentes “raivosas” à solta. E temos de proteger os calcanhares… Por isso, o meu amigo só podia sentir-se ofendido por ter recebido uma única carta anónima. Já tinha estatuto para ter mais no currículo…
Cartas anónimas são habituais quando a Instituição está bem e é ano de eleições. Porque, quando está mal, ninguém lhe pega. Carregam a “raiva” e, ao mesmo tempo, a cobardia dos seus autores, incapazes de denunciarem os factos (se os tiverem) nos locais próprios e de cara destapada, como gente de bem. Que não são. Ao ouvirem relatos de ilícitos numa ou outra instituição, “medem todos pela mesma bitola” e julgam os outros em função daquilo que eles próprios são.
Se os “acessos de raiva” que vemos na televisão e redes sociais são o sintoma triste e deprimente de que parte da sociedade é intolerante e doente, as cartas anónimas são reveladoras de gente com “raiva” e incapaz de se assumir, o que a torna mais perigosa para a Becas. É que, jovem e ingénua como é, pode deixar-se “morder pelas costas” por “cão raivoso que não dá a cara”. Por isso, vou ter de protegê-la com a única vacina que conheço ser eficaz contra esse perigo: “Uma consciência perfeitamente tranquila” …