Após a Segunda Guerra Mundial, num meio rural como era o de Lousada, os socos e as chancas eram o calçado habitual, sobretudo entre as gentes do campo, à alternativa que era andar descalço.
Era nos Eidos Novos que o meu avô tinha uma indústria artesanal para os produzir e na qual o pauseiro era parte importante. Perto de minha casa, em Macieira, morava e trabalhava o Avelino, pauseiro de profissão, um dos que produzia os “paus”, isto é, as peças (solas) de madeira necessárias ao fabrico dos socos e outros congéneres. Sentava-se num “banco”, uma espécie de tripé com uma tábua relativamente baixa a servir de assento, tendo na parte da frente um apoio firme e próprio para trabalhar a madeira.
Os toros de amieiro eram cortados em rolos e estes partidos em quatro e rebouçados. E era a partir destes “cavacos” que ele, sentado no seu “banco” e de enxó em punho, ia tirando lascas e dando o formato à palmilha onde assentaria o pé, socorrendo-se para isso de um molde. Com o formão fazia o entalhe para a fixação do couro à volta da peça de madeira e a folha de lixa eliminava as pequenas irregularidades que a enxó deixava, por forma a que a superfície da madeira ficasse lisa e com acabamento regular. Quando uma remessa estava pronta ia entrega-la aos Eidos Novos e na volta, trazia a paga do seu trabalho e outros tantos bocados de amieiro para continuar a trabalhar.
Passei muitas horas junto ao seu “banco”, com outros amigos mais velhos do que eu, não só a vê-lo trabalhar num ritmo cadenciado, tipo piloto automático, como a conversar ou a congeminar ação, desde o “cantar as janeiras” ou “cantar os reis” até às malandragens mais diversas.
Foi ali que o meu irmão António tirou uma fotografia ao grupo usando como “máquina fotográfica” uma simples lata de litro de óleo, limpa e pintada a preto. No centro de um dos topos fez um orifício redondo que tapava ou descobria com um bocado de cartolina colado de um lado, na prática um obturador arcaico. Depois, enfiado entre os cobertores da cama (a câmara escura mais à mão) colocou uma película virgem no fundo da lata, com a tampa e o orifício tapado. Reuniu o grupo, apontou-nos a “máquina fotográfica” e “disparou”, subindo e descendo a cartolina. Apesar da imagem ter ficado tremida, ainda guardo essa fotografia.
No tempo das cerejas íamos às Cepas, “acampávamos” em cima das cerejeiras (onde sabiam melhor) até encher a barriga, escondidos entre as folhas para não sermos vistos pelo dono. Não sei como, numa dessas investidas o Avelino caiu do alto da cerejeira, batendo de ramo em ramo até se estatelar no chão, todo amassado.
Jogávamos à bola no caminho de Recemonde e, apesar deles jogarem descalços e eu calçar umas botas grossas com sola de pneu feitas à mão pelo senhor Pereira da Coutada, era eu quem apanhava mais caneladas.
O Miro “Latas”, latoeiro de profissão, trabalhava na casa ao lado e andava sempre a pensar em malandragem. Um dia apareceu com uma cana comprida, furada por dentro. Só descobrimos para que servia tal apetrecho quando, já de noite, nos levou para o monte por detrás da adega da Quinta de Talhos e enfiou a cana através dum postigo, mergulhando-a no lagar que estava cheio. E, à vez, chupamos golfada atrás de golfada, até apanharmos uma “barrigada” de vinho doce…
Nas “visitas” aos meloais eu não ia por ser novo demais. Para os guardar, os donos colocavam uma barraca de madeira com quatro pegas, tipo padiola, onde o guarda ficava à noite. Numa ocasião, enquanto o guarda dormia, conseguiram rodar a barraca colocando a saída virada para uma “presa” de água. A seguir fizeram barulho e esconderam-se. Imagine-se o rapaz a saltar da barraca, cair diretamente na água e ficar como um pintainho, e ir a casa contar ao dono. Claro que era esse o objetivo… No meloal do Souto, com ratoeira a fogo e vigiado por um “criado” armado de caçadeira, a tática foi diferente: À noite, sorrateiramente, colocaram um molho de palha de milho no meio do meloal, amarrado com uma corda para puxarem de longe. Esconderam-se e fizeram ruído suficiente para acordar o desgraçado que, ao sair de arma em punho, com mais medo que coragem, berrou: “Quem anda aí?”. Ninguém lhe respondeu mas foram levantando e baixando o molho que, no escuro da noite, dava a sensação de ser alguém a escolher melões. Apontando a arma ao “ladrão”, perguntou várias vezes “quem está aí?” mas, não tendo resposta, puxou o gatilho e o “ladrão” caiu. E o guarda saiu a correr em direção à casa do Souto a gritar “ai que matei um homem, ai que matei um homem”… Com trabalho diário e “malandragem” ocasional, o Avelino viu morrer a profissão após a chegada da indústria de calçado, acabando por arrumar o “banco de pauseiro” e procurar outro ganha pão.
Assim acabou uma etapa desta minha viagem e não posso deixar de recordar e agradecer ao Avelino, que já partiu para a Terra onde não são precisos socos nem pauseiros, o companheirismo, a amizade e os ensinamentos que me deu, “calçado” necessário para me ajudar a vencer o “piso acidentado” do meu caminho.