Consideramos herói alguém que tem uma dimensão semidivina, algo entre os deuses e os humanos, e que representa a transcendência da condição humana com facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir – determinação, coragem, fé, força de vontade, paciência, etc..
Desde sempre as sociedades tiveram e criaram os seus heróis, nas suas múltiplas variedades, como os “super-heróis”, os heróis bíblicos, os heróis de guerra, os heróis olímpicos, os heróis populares, os heróis do acaso e tantos outros, até os anti-heróis e os “heróis” fabricados do tipo “big-brother”.
Também tive os meus, que foram mudando com a idade. Se em criança eram os “super-heróis” que me faziam sonhar, personagens de ficção dotados de atributos físicos e poderes extraordinários, desde o Mandrake ao Zorro, do Super-Homem ao Tintim, já na adolescência passei a idolatrar o Pelé e o Elvis, já para não falar de alguns jogadores do meu clube.
Mas, à medida que os anos foram passando, os meus olhos (e o coração) foram encontrando novos heróis, pessoas anónimas do dia a dia que foram capazes de atos de heroísmo enormes, de grande dimensão humana, só alcançáveis por quem realmente era extraordinário. Esses anónimos não eram nem são dotados de superpoderes, nem de invencibilidade, não usam armaduras nem capa nem espada. Não voam, não atravessam paredes, não disparam raios nem teias de aranha. Não são estrelas de futebol ou de qualquer outro desporto, nem do mundo do entretenimento, simplesmente gente em toda a sua humanidade, invisíveis aos olhos de quem só olha para muito longe ou para muito alto sem ver quem lhe está próximo.
A senhora Emília saiu da sua aldeia com a família para acompanhar o marido que foi trabalhar na barragem de Picote, em Miranda do Douro, no início dos anos sessenta. E por ali foi ficando, ali teve mais uma filha e gerou uma outra, até ao dia em que o seu marido foi à pesca, como lhe era habitual nos dias de descanso, e não voltou, sendo encontrado mais tarde afogado, entalado entre duas rochas onde teria caído. E, de repente, a senhora Emília vê-se com seis filhos e um sétimo na barriga, longe da sua aldeia e sem emprego nem condição económica.
Uma senhora amiga ofereceu-se para lhe ficar com a filha mais nova, mas ela respondeu com convicção: “Muito obrigado, mas quero que todos os meus filhos cresçam juntos e tudo farei para que não passem fome”. Na sua humanidade fez a coisa mais corajosa que uma mãe pode fazer: Amar seus filhos e dar-se-lhes por inteiro. A camioneta que carregou os seus parcos haveres de regresso a Lousada também carregou os filhos, a dor, a incerteza do futuro e o corpo do marido, clandestinamente, por não ter dinheiro para o fazer segundo as normas legais, já que quis que fosse a enterrar no cemitério da sua aldeia, próximo de si e das flores que iria colher e levar-lhe até ao fim dos seus dias.
Cumpriu o que disse àquela senhora que queria ficar-lhe com uma filha, trabalhando duramente como criada doméstica primeiro e empregada fabril depois, abdicando de si a favor dos filhos a quem se devotou, mas a quem nunca deixou passar fome, apesar dos tempos muito difíceis que atravessou. As dificuldades que teve de enfrentar sem qualquer apoio social e sem a ajuda do marido, que partiu prematuramente, foram bem mais difíceis e bem mais longas que as de qualquer atleta olímpico num jogo ou corrida contra o tempo, nunca tendo desistido daquilo a que se propusera, perdendo só a última das suas lutas, contra um cancro, já depois de ver todos os filhos criados e “arrumados”.
E a vida tem coisas muito curiosas, aquilo a que chamamos acasos ou coincidências, como aquela que viria a acontecer com a senhora Emília. Desde que se manifestou a doença, quem não foi mais trabalhar para poder estar junto dela a tempo inteiro, prestar-lhe todos os cuidados, fazer-lhe companhia no momento da partida desta vida e fechar-lhe os olhos, foi a filha que ela se recusou a dar à guarda da outra senhora, apesar do momento terrível e difícil que estava então a viver.
Acaso? Coincidência? Com toda a certeza foi um ato de gratidão de um coração reconhecido, quiçá um toque de algo muito mais sublime. A senhora Emília foi sem dúvida uma mulher extraordinária, com as tais facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir, alguém que deveria servir de modelo (e não podia ter maior atualidade) para tantas jovens mães de hoje que nem sempre aceitam as responsabilidades inerentes a essa condição, mas permanecerá anónima como muitos outros e outras que se transcenderam e de que a história não falará nunca.
Uma lição de vida excepcional, de coragem, de força de vontade, de abnegação, de espírito de sacrifício e, acima de tudo, um exemplo perfeito de Amor de MÃE. Um dos meus heróis (neste caso, heroína) anónimos do nosso dia a dia…