Monthly Archives: July 2019

Com a “memória” no bolso…

Dizem os cientistas que o cérebro humano tem capacidade quase ilimitada. Dizem mesmo que é ainda maior do que a internet. Coisa estranha, pois muitos de nós temos dificuldade em decorar o simples nome de alguém, uma morada, o número de telefone ou as tarefas do dia, pelo que “não bate a cara com a careta”. Das duas, uma: ou não somos capazes de fazer uso dessa apregoada capacidade quase infinita da nossa memória ou o seu tamanho não tem nada a ver com aquilo que os investigadores e cientistas afirmam “a pés juntos”. E isso vê-se todos os dias nos “esquecimentos” que todos temos ao ir daqui para acolá. Quando lá chegamos para ir buscar algo de que precisamos, já não nos lembramos do que íamos fazer. Se coisas bem simples como esta acontecem, imagine-se o que é ter de fazer várias tarefas ao longo de um dia em locais diversos se a tal “memória” não ajudar e resolver pregar-nos partidas. Em miúdo, como não existia papel ao desbarato nem esferográficas ou canetas à mão, tinha de se memorizar bem os afazeres para “dar conta do recado”, ou então ficavam algumas coisas por realizar. No entanto, conheci gente com uma memória impressionante, que registava bem datas e horas de compromissos com um rigor e precisão admiráveis. Mas também me lembro de quem amarrava um fio no dedo ou no pulso para lembrar algo. Só à medida que a utilização do papel se foi vulgarizando no dia a dia, também passou a ser usado como “auxiliar de memória”, vindo só a ser substituído a quando do aparecimento e desenvolvimento das chamadas “novas tecnologias” para relembrar os compromissos, através de diversos equipamentos eletrónicos. E é assim que hoje em dia já poucas pessoas se dão ao trabalho de decorar o que têm para fazer. Por isso, fazem-se acompanhar de algum telemóvel com lembretes sonoros, um computador com agenda ou um Ipad, onde se anotam todas as tarefas, não só para o dia, mas para a semana, meses ou anos. Chamam-lhe “agenda desmaterializada”, nome pomposo da “cábula” moderna. No entanto, se uma boa parte fica dependente das novas tecnologias com apitadelas a toda a hora e toques diversos que vão da música mais na “berra” à buzinadela, das marimbas até aos sininhos, só para lembrar o interessado que está na hora de tomar o remédio para a caspa ou de levar o filho à natação, ainda há muitos que preferem recorrer aos métodos antigos, à velha anotação numa agenda de bolso, no pequeno bloco ou até num simples retângulo de papel que se mete no bolso das calças ou do casaco e que se consulta volta e meia, para relembrar o que ainda falta fazer, se bem que ainda há os que assinalam a tarefa com uma cruz ou um nome escrito com esferográfica na mão ou no braço. 

Os “auxiliares de memória” são cada vez mais variados e dependem da organização de cada pessoa. Já há muitos anos estou habituado ao uso de uma agenda dita “de secretária”, que renovo a cada ano que passa, onde anoto (ou penso que anoto) o que é importante para o meu dia a dia. Os compromissos, os encontros e todos os afazeres. E até registo o resultado de algumas reuniões, acordos ou conversas. Mas, mesmo assim, é frequente dar comigo a utilizar papelinhos mais ou menos pequenos, onde faço a relação daquilo que é prioritário para o dia, por uma questão de facilidade de manipulação e acesso, o que me faz andar com as duas coisas em simultâneo para… me esquecer de as consultar. É que a “cábula”, esse pequeno retângulo de papel, tem como vantagem permitir usar a esferográfica sempre que executo uma tarefa qualquer, para a riscar da lista. É menos uma, o que me dá algum consolo, embora de curta duração. Só dura até ver o que me falta fazer …

Estas listas de tarefas são profundamente ingratas, sejam elas feitas em papelinhos ou em agenda. É que, por cada tarefa que faça e abata, o que é sempre uma satisfação, há logo mais duas ou três novas para acrescentar ao rol, tornando a missão de acabar com a lista simples miragem. Em vez de mingar, o diabo da lista cresce, feita massa de bolo dentro do forno.

O Jaime era um “profissional” nessas “memórias de bolso” feitas de papel. Sempre que se aproximava a realização de algum dos eventos desportivos que realizamos ao longo de anos, ele usava um retângulo pequeno escrito com letra miúda onde tinha elencado tudo o que lhe competia fazer na distribuição de funções, guardando essa listagem de prova para prova, de ano para ano. Dada a sua grande capacidade de organização de trabalho, ia dando conta do rol de afazeres com uma regularidade impressionante. Trabalhamos juntos durante anos e anos e invejava-o sempre que o via riscar uma ou outra tarefa na sua lista de letra miudinha. É que, pelo contrário, no meu “auxiliar de memória”, as tarefas não paravam de crescer … 

As agendas, em papel ou “desmaterializadas”, ajudam na organização individual de cada pessoa, tal como o simples papelinho … desde que se não perca ou não nos esqueçamos de o consultar. O importante não é o tipo de “auxiliar de memória” que usamos, mas a sua eficácia e o bom ou mau uso que dele fazemos. Isso tem a ver com a nossa organização pessoal. Como “burro velho não toma andadura”, eu vou continuar a usar a agenda, assessorada pelas “memórias de bolso” feitas de papel, se bem que o aumento da idade seja inversamente proporcional à memória. Mas, para isso, não há volta a dar …   

Uma viagem acidentada…

Há viagens que nos ficam mais na memória, às vezes não pela beleza das paisagens, mas pelos insólito a que estivemos sujeitos. Dois anos depois da revolução em Portugal, vivia-se um clima difícil e muito tenso, sem sabermos se, ao sair de uma ditadura, iríamos cair noutra. Casados há pouco mais de um ano, eu e a Luísa decidimos ir visitar a Madeira, levando “à boleia” alguns familiares de um e outro lado. Ao todo, éramos meia dúzia de turistas. Como não havia voo direto do Porto para o Funchal, fomos apanhar o avião em Lisboa. Na hora do embarque, quando chegamos junto do avião deixei-me ficar para trás dando prioridade à família e aos outros, acabando mesmo por ser o último a entrar no avião. Como não havia lugares marcados, cada um dos passageiros foi procurando acomodar-se à medida que entrava. Então eu, que era o último, já tive de procurar lugar no avião todo, mas… nada, não havia lugar para mim. Fiquei de pé no corredor, junto à cadeira onde a Luísa estava sentada. Passaram as hospedeiras de bordo para trás e para diante, apercebendo-se que eu “estava a mais”. Por isso, o comandante veio ter comigo. Cumprimentou e disse: “Peço muita desculpa, mas é incompreensível que tenham vendido um bilhete a mais do que a capacidade do avião. Isto só acontece porque estamos a viver um período revolucionário na empresa, em que as pessoas se estão a preocupar mais com plenários, greves e outras manifestações, do que em cumprir as suas funções laborais com dignidade. A TAP nunca foi isto…” E, para minha surpresa, perguntou: “Não se importa de ir comigo na cabine do avião?” Claro que não ia perder a oportunidade que me era oferecida e aceitei de imediato. Daí a instantes, estava sentado junto do comandante e do co-piloto. Mas o avião continuou parado. Então, o comandante explicou-me: “Não vou levantar voo enquanto não vier a refeição que falta, já que temos uma pessoa a mais. Já avisei os serviços de terra”. Meia hora depois, com o meu “tacho” a bordo, levantamos voo rumo à Madeira levando a meu lado um comandante muito simpático que foi o tempo todo a explicar-me para que serviam todos os botões e alavancas. Sempre que mexia num, dava-me conta da sua função. A viagem foi espetacular, comigo ali sentado no “bico” do avião.

Já quase na Madeira, disse: “Vamos ter de regressar a Lisboa. Há muito nevoeiro no Funchal e não temos condições para aterrar”. Deu meia volta e regressamos à Portela. Ao aterrar, encaminharam-nos para uma sala de espera isolada, onde ficaríamos até haver condições de voltar a voar para o Funchal. Deixei entrar a família à minha frente e, no momento em que eu ia atravessar a porta de entrada, dei meia volta e fiquei cá fora a passear de um lado para o outro, enquanto os outros passageiros iam entrando. Porque recuei? Foi instintivo. No momento em que me aproximei da porta vi um polícia com um daqueles detetores de metais com que nos percorrem o corpo, usando-o em todos aqueles que entravam na sala. Lembrei-me então que não podia entrar. Era perigoso. Seria apanhado em flagrante e, na “febre revolucionária” que se vivia então, seria um problema grave. O que foi? A sede da empresa onde trabalhava ficava em Lisboa e, um dos empregados, como sabia que eu ia passar pela capital, tinha-me pedido para lhe arranjar seis balas para uma pistola pessoal. Nesses tempos conturbados, era conveniente não ter só a arma …  e foi fácil comprar as balas. Coloquei-as numa pequena caixa de plástico, daquelas onde vinham os rolos fotográficos. Só que, quando cheguei a Lisboa, nunca mais me lembrei de dizer ao Soares que tinha a sua “encomenda”. Entrara no avião com ela no bolso, fora até ao Funchal, regressara e ninguém detetara nada. Felizmente. 

Mas, ao ver o polícia a rastrear os passageiros, acordei. “Alto e para o baile, posso ser apanhado”, disse cá para mim. Enquanto pensava, só olhava para a forma como o polícia fazia o rastreio: passava o aparelho pelo corpo acima e abaixo, primeiro à frente e depois atrás. Os passageiros iam entrando e, às tantas, só estavam dois à minha frente. E depressa chegou a minha vez, não dando para fugir mais. Agarrei a pequena caixa na mão, fui direito ao polícia e, quando ele se preparava para me revistar com o aparelho, levantei os dois braços ao alto, por forma a que o sensor ficasse bem longe da minha mão. O sensor percorreu-me acima e abaixo toda a frente do corpo e depois repetiu a manobra nas costas. E o polícia, fez-me sinal para seguir. Lá dentro, a família estranhou o meu comportamento. Quando cheguei, perguntaram-me. “Estás tão amarelo. O que se passa?” Pedi para nos afastarmos da entrada e só depois contei o sucedido. E as balas? Despejei-as num vaso enorme que estava num canto da sala. Uma hora mais tarde, regressamos ao avião e instalei-me novamente na cabine junto do comandante que, dessa vez, conseguiu fazer-nos aterrar na Madeira. Apesar de estar a grande distância temporal, ainda me recordo que as férias foram excelentes. Mas, mesmo com toda a simpatia e boa vontade do comandante do avião, a “aula de pilotagem” não me habilitou para conduzir aviões …

Lições para o Caminho e… a vida

Estou de regresso a casa depois de me ter feito ao Caminho. Porque é a “casa” que o Caminho nos faz regressar, passado o sofrimento e as dores por que passa o caminhante de muita estrada. E, para quem sai do Porto de mochila às costas com o essencial (e algum supérfluo na falta de experiência), são duzentos e quarenta quilómetros a pé por estradas, avenidas, ruas, vielas, calçadas, carreiros e trilhos, feitos de subidas e descidas através de cidades, vilas e aldeias, por campos e montes, vinhas e carvalhais, seguindo as setas amarelas que indicam o norte, a direção e o destino. Nas vésperas, a incerteza de resistir ao desafio pela falta de preparação física para tão duro teste. Animava-me a força do querer e a última mensagem do “Peregrino Lider”, um alento a quem parte na motivação espiritual e que não resisto em divulgar (que me perdoe a inconfidência …). 

“Está declarada a “Ultreya y Suseya”, o mesmo que dizer: para a frente, na busca de uma meta de vida que, com fé, será sempre alcançada; para cima, na busca de uma realização espiritual. Era assim na Idade Média, será assim para um peregrino hoje e amanhã. Depois disto, só os fracos fenecem (e eu posso ser o primeiro deles…).

Quem está fica e faz o Caminho e quem não está seguirá no nosso pensamento. O destino é Santiago e o campo das estrelas. Em boa verdade o primeiro milagre do Santo já se operou comigo, quando me obrigou a sair de mim (da instalação da vida, do conforto, das coisas fáceis ou mais acessíveis, etc….). Às vezes é preciso isso: “sair” para “ver”. É como subir à montanha.

Levarei comigo os que partiram e os que, no reino dos vivos, gostariam de ir sem o poder fazer. Que cada um busque, pois, a sua âncora ou “leitmotiv” (motivo condutor) para o Caminho.

Levo no peso da minha bagagem a simbologia do ser pecador. Cada passo dado em direcção ao destino me recordará isso.

Levo nas noites mal dormidas nos albergues o teste necessário à certeza de que quero alcançar o destino.

Levarei no corpo, nas pernas e nos pés cansados, quiçá magoados, o derradeiro teste do meu querer e da alegria de conseguir chegar. 

Se “cair” no Caminho sei que seguirei. Retomo ali, nesta ou noutra vida. Para mim já não há mais regresso. Abraçarei Santiago.

Certezas? Sim, num grupo familiar que soube responder à chamada e se fez ao Caminho. Chegaremos? Claro que sim!”

Até parece que o número nove era um bom presságio. Foi num dia nove, às nove horas da manhã, que o grupo de nove pessoas se juntou frente à Sé do Porto como “Peregrinos por Santiago” (e nove foram os dias que demoramos a chegar e abraçar o Santo). Todos eles eram maridos/esposas, tios/sobrinhos e irmãos. Todos estavam em duas destas situações, pelo menos. Só eu era “o primo”. O “Peregrino Artesão” distribuiu os “bastões”, um seu trabalho manual em madeira natural. Com as “credenciais de peregrino” para carimbar ao longo do “Caminho”, as “vieiras” penduradas na mochila, símbolo de Santiago e já com mochilas às costas, instalados nas escadas laterais da Catedral fizemos pose ante a objetiva do Alcindo para documentar em imagem fotográfica a partida do Porto e o ritual do grito “Por Santiago”. E, a partir daí, “fizemo-nos à estrada”, por Santiago.

Seria maçudo fazer aqui o relato desses nove dias a caminhar e dizer que no final fiquei com a “credencial de peregrino” onde colecionei carimbos da minha passagem, a “vieira” como símbolo do Santo e do Caminho, o bastão personalizado pelo “Artesão” e a “Compostela”, o certificado em como fiz o Caminho a pé a partir do Porto, emitida pela “Oficina do Peregrino”. O significado do Caminho vai muito mais além disso. Estava preparado? Não, nem física, nem mentalmente. E essa consciência tomei-a ao longo da jornada, porque é importante que o caminhante conheça os seus limites, seja persistente e se dispa por completo do supérfluo. Mais importante que chegar ao destino, Santiago de Compostela, é a jornada que nos leva até lá e o caminho que cada um faz. Porque cada um faz a sua jornada, como tem a sua vida. E lida com as dificuldades do Caminho como as da própria vida, duas faces da mesma moeda. Reclamando ou aceitando, com má cara ou tranquila e pacientemente. 

A força mais importante não é a das pernas, que tantas vezes pedem clemência, mas da mente, na persistência, capacidade de superação e força de vontade. Em muitos momentos é preciso ignorar a dor para prosseguir, as irregularidades do piso para caminhar, os incómodos do tempo para não desistir. A maior lição desta peregrinação veio-me da mochila que carreguei às costas, como símbolo do que carregamos na vida. O “Lider” dizia que nela levamos “o peso dos pecados”. O seu peso foi decisão minha, com tudo o que lá meti, necessário ou não. Só quando tomei consciência que cada grama tornaria a caminhada mais penosa, fui capaz de me despojar do supérfluo, ainda que isso tenha significado ter de lavar roupa no fim da jornada para secar à noite ou no dia seguinte pendurada na mochila, “um estendal em movimento”. E é esse despojamento que precisamos de fazer na vida, libertando-nos do “excesso de carga” que carregamos no dia a dia. Seremos capazes? 

Que posso dizer sobre o Caminho? Mais do que uma peregrinação, o Caminho é uma lição para a vida, um compêndio da sabedoria que deixamos de lado por comodismo, arrogância, inveja e vaidade. O Caminho, faz-nos sair da nossa zona de conforto e do comodismo em que formatamos as nossas vidas, voltando às origens.

Caminhar é uma oportunidade para meditar e refletir sobre a vida e praticar o despojamento do que não é essencial, só com a ajuda do cajado e da mochila. E o cansaço da caminhada chega a ser relevado com a saudação frequente de outros peregrinos ou não com que nos cruzamos, desconhecidos, mas solidários, com a frase motivadora e generosa de “Buen Camino”.  

Um amigo perguntou-me se ainda me sinto peregrino. Respondi-lhe com uma frase feita bem conhecida, que expressa o meu sentimento: “Uma vez peregrino, é-se peregrino para sempre”. E, como peregrino que vou continuar a ser, espero conseguir aplicar a aprendizagem do Caminho no “caminho da minha vida” …  

Viver tomando banho… ou não

Numa casa de habitação de uma das aldeias de Lousada, mãe e filha conversavam sobre a necessidade de tomar banho a propósito de um vizinho pouco asseado. A filha, para além dos trinta anos, perguntava à mãe: “Será que uma pessoa que não toma banho há mais de quinze dias, não sente que cheira mal”? A mãe, num raciocínio mais lógico e inteligente, respondeu-lhe: “Provavelmente, não. Há medida que os dias vão passando e o odor corporal se deteriora, o sentido do olfato adapta-se e acompanha a alteração, considerando-a normal”. Quando soube desta troca de ideias, lembrei-me do como e quando as pessoas tomavam banho no meu tempo de criança e, na realidade, tenho a certeza que não sentiam qualquer mau cheiro. Estavam habituados. Quem tomava banho e quando? Com regularidade, ninguém. E uma vez por outra, que o mesmo é dizer de mês a mês, muito, mas muito poucos. É um erro observar esses tempos à luz das comodidades de hoje, em que basta rodar o manípulo da torneira ou da misturadora e temos água quente e fria quanta se queira, até para desperdiçar, com regulação automática, e não se concebe que alguém tenha desculpas para não tomar banho. 

Não sabem e nem imaginam que por estas bandas há sessenta anos, para não puxar o filme mais atrás, as casas não tinham água canalizada. Pior, muitas delas nem sequer tinham água. A maioria das habitações eram em pedra, térreas, com o chão em terra e já era uma sorte quando tinham poço, de onde podiam tirar água ao balde, com um sarilho, com que se enchia o cântaro, o “depósito” ambulante que servia a casa. Mas, como uma boa parte nem sequer tinha poço, as mulheres iam buscar a água à fonte (que por vezes ficava a grande distância de casa) num cântaro de barro feito na Fábrica do Barro, em Nogueira, que carregavam à cabeça em cima de uma “rodilha” num equilíbrio perfeito, sujeito a partir-se em cacos ao mínimo descuido. No meu lugar, muita gente ia buscar água à “fonte de Talhos”, um pouco distante para alguns. O cântaro ficava arrumado na cozinha e dele se tirava água para beber, cozinhar e … lavar. E a casa de banho? Se alguém fizesse a pergunta nesse tempo, a resposta viria noutra pergunta: “O que é isso”? Só nalguns solares era possível encontrar esse luxo, onde havia uma banheira de ferro que se enchia… a cântaro. Aí, a água era aquecida no fogão de lenha ou na lareira em grandes panelas e, mesmo assim, de longe a longe. 

Na casa dos meus pais existiam lavatórios em ferro esmaltado para lavarmos a cara e as mãos, “à gato”. A água estava no jarro ali ao lado… Para tomar banho, usávamos um alguidar de barro e, está bom de ver que ninguém se metia lá dentro… não dava para isso. Era na “retrete” que se punha o alguidar para nos podermos “lavar”. Sim, na “retrete”, aquele espaço onde havia um “caixote de madeira com um buraco redondo” para assentar a “padaria” e fazer as “necessidades” sobre uma fossa cheia de mato, onde moscas e moscardos “zoavam” como pequenos aviões em constante movimento. Mal se “largava a carga”, tapava-se à pressa com a tampa de madeira munida com pega, que se ajustava perfeitamente. Ao tapar o buraco, não passavam os insetos, mas aquele “odor selvagem” subia pelas frinchas e “aromatizava” o espaço. Mas a maior parte das casas nem sequer tinha “retrete” nem lavatórios, quanto mais lugar para tomar banho. Por isso, passavam-se dias, semanas e normalmente meses, sem um banho. Pensando bem, só o rio Sousa proporcionava aos homens o luxo de um banho durante o verão e poucas vezes com um pedaço de “sabão macaco” a ensaboar o corpo depois de um mergulho. As mulheres? Não tinham essa sorte. Ao falar com a filha sobre isto, questionou-me como era possível viver assim, sem tomar banho durante dias e dias. “Muito fácil”, respondi-lhe. “Como não havia condições nem existia o hábito de tomar banho diário, não se sentiam nem a necessidade nem os odores corporais ou o mau cheiro”. Faziam parte da natureza …

Nos anos sessenta estive no interior norte de Angola e trabalhei com muitas pessoas de raça negra. A maioria eram pequenos agricultores que cultivava algodão. Todas elas tinham um odor corporal intenso, forte, que se dizia ser o “cheiro a catinga”. Não posso afirmar se era uma característica da raça negra ou se tal seria o resultado da falta de higiene. Certo é que, quando comentava isso com algum deles e lhes dizia que “cheiravam a catinga”, a resposta nunca mudava: “E vocês, brancos, cheiram a morto” …

Durante o meu serviço militar, depois de uma longa marcha forçada de um dos pelotões da nossa companhia, o furriel de serviço mandou todos os recrutas tomar banho quando chegaram ao quartel. Estava-se em Julho e, embora não houvesse água quente, o banho sabia bem. Às tantas, o furriel apercebeu-se que um dos recrutas ficou para trás e deu sinais de que não ia tomar banho. Então deu-lhe a ordem para se juntar aos outros, tendo ouvido como resposta: “Tomar banho outra vez? Eu ainda tomei banho pelo Natal …”  

Hoje, o banho é uma conquista civilizacional e está enraizado nos nossos hábitos de higiene, contribuindo com a sua quota parte para o aumento da nossa longevidade. No entanto, estamos a exagerar ao tomar demasiados banhos. Estudos revelam que mais de dois banhos com sabonete ou similar prejudicam o equilíbrio natural da gordura e bactérias que são benéficas e protegem a pele, como que a “barreira protetora”. Conheço alguém que chega a tomar quatro e cinco banhos por dia. A brincar, diz-me, que gasta o sabonete, o shampoo, a água, a reserva de toalhas, o tempo e … a pele. Vejam quanto economizaria se tivesse vivido setenta anos atrás, tomando banho de meio em meio ano …