Monthly Archives: November 2019

“Reter ou não reter”? Eis a questão …

“Chumbei” no 2º. ano, que hoje corresponde ao 6º., tendo ali ficado “a marcar passo” durante um ano, para além de levar uma reprimenda dos meus pais, como que a perguntar se queria continuar a estudar ou se preferia ir trabalhar. Optei pela primeira e não voltei a sofrer mais “retenção” nenhuma, como agora se diz. Com outros pais menos compreensíveis e mais rigorosos, a “conversa” seria outra e teria de “tirar as medidas” ao cinto de cabedal do pai. Não fiquei preocupado? Claro que sim. De tal forma que, no ano seguinte, “dei ao pedal” para cumprir o objetivo: passar. E o que ainda retenho na memória desse “acidente”? Que me acordaram para o sentido da “responsabilidade”. Nesse tempo nunca ouvi falar de “estatísticas”, de “percentagens de chumbos”, “traumas” ou coisas do gênero. Várias décadas passadas, tudo mudou. O ensino massificou-se, as crianças já não vão sozinhas para a escola por razões diversas, a desresponsabilização dos pais cresceu e retiraram dos seus filhos a responsabilidade de estudar e aprender, atirando-a para os professores e as escolas, como se estes fossem os progenitores e tenham o dever de, além de ensinar, educar. Perdeu-se o respeito e outros valores que regiam a sociedade. Apesar dos inúmeros meios de que hoje dispõe a escola quando comparada à desse tempo distante, passou a ser um local inseguro. Que o digam os professores em relação a (alguns) pais (e até alunos). Que o digam alguns alunos em relação a outros alunos e a agentes externos. Hoje a escola passou a ser objeto de “estatísticas”, sobretudo para políticos e suas agendas “políticas”, laboratório de ensaios e experiências feitas a cada mudança de “côr” do “poder instalado”. 

É assim que agora se anuncia o “fim das retenções até ao 9º. ano” o que, numa linguagem corrente, quer dizer “fim dos chumbos”, uma prática importada de outros países onde as realidades sociais, económicas e culturais nada têm a ver connosco. 

Os que defendem e querem acabar com os “chumbos” até ao 9º. ano, acham que “as retenções multiplicam as retenções” e que “quem está contra pensa com base no senso comum e não com base na melhor informação”. Já para os que se opõem à medida, dizem ser a cultura do “facilitismo” e “trabalhar só para as estatísticas”, o que não ajuda o aluno porque aí é que ele fica entregue à sua sorte. Acrescentam até que “é uma medida injusta, pois premeia tanto aquele que estuda, se esforça e é responsável, como o que não cumpre e faz da escola um local de turismo”. 

Num país do “faz de conta”, só há vantagens nesta vontade de acabar com os “chumbos”, pois todos “saem a ganhar”. Começa por ganhar o país, pois dizem os “contabilistas” desta medida que a poupança é de duzentos e cinquenta milhões de euros, o que dá um “jeitão” ao Mário Centeno e às finanças públicas para abater as dívidas a fornecedores. Além disso, o estado livra-se de gastar mais recursos nas escolas para combater o insucesso escolar (o verdadeiro problema) e sobe para o topo do “ranking” estatístico, mesmo que de forma administrativa, o que não deixa de ser motivo de orgulho nos fóruns internacionais e “bandeira” eleitoral. Ganham as escolas, porque se livram dos cábulas “de uma penada”. Beneficiam os professores, cansados de “malhar em ferro frio”, pois a partir de agora promover ou não o sucesso passa a ser indiferente, não têm a pressão das estatísticas e no final do ano as aprovações serão de 100%. O sistema deixa de os chatear. Usufruem os pais desta medida porque, ao verem aprovados os jovens rebentos ano após ano sem um único “chumbo”, passam a viver “tranquilos e felizes”, e até orgulhosos pelo “sucesso escolar” dos seus herdeiros, embora deixem de ter motivos para implicar com os professores e a escola (mas podem sempre inventar qualquer argumento). Quanto aos alunos cábulas, são só “ganhos” (pensam eles): veem aprovada a teoria de que “malandragem” compensa, que quem estuda é “burro” e de que “ser responsável” é só para os velhos. 

Não sei se deva, mas faço a pergunta: “Afinal, o que é que desejamos? Baixar a fasquia para apanhar tudo na rede ou mantê-la alta e puxar para cima quem está em baixo? No nosso sistema procura-se ensinar e que os alunos aprendam e tenham sucesso, classificando-os em função do seu desempenho, trabalho e responsabilidade ou “medir todos pela mesma bitola”? Dizem para aí que o nível de exigência corresponde seguramente a qualidade do ensino e a sucesso efetivo dos alunos. Se insistirem neste novo caminho, para que o “êxito educacional” do país seja completo, talvez seja melhor regressarmos ao tempo do PREC de 1974 e às célebres passagens administrativas” de que alguns políticos da nossa praça beneficiaram. Bastará estar matriculado em qualquer curso para passar de ano. Em pouco tempo, elevamos os índices de “licenciados” ao top mundial e passaremos a ser motivo de inveja. Vale a pena ir por aí …

Vivemos tempo em que a escola e professores são o bode expiatório do sistema de ensino, da irresponsabilidade de alguns pais e alunos, do facilitismo e dos traumas. Curiosamente, é um problema que não é só nosso, apesar de pensarmos que lá fora tudo são maravilhas, o que não é verdade. Por mero acaso, ao debruçar-me neste tema, “caiu-me” uma informação sobre a Escola Secundária de Maroochydore, na Austrália e o teor da mensagem que foi gravada no atendedor de chamadas da escola e está agora a ser utilizada diz (quase) tudo. Esta situação decorre na sequência da implementação de políticas que obrigam os pais a responsabilizarem-se pelas faltas dos filhos e pela não entrega dos trabalhos de casa. Escola e professores foram muito pressionados por eles a quererem que os “chumbos” sejam alterados para notas positivas, mesmo que as crianças faltem de 15 a 30 vezes durante um semestre, não tenham aproveitamento escolar e que não efetuem trabalhos suficientes para passar. Se telefonarmos à escola vamos ouvir no atendedor de chamadas:

“Trriimm, trrimm, trriimm,” … Click

“Olá, chegou ao Serviço de Mensagens da sua Escola. Para melhor o ajudar a encontrar o responsável correto para o seu pedido, por favor oiça todas as opções antes de proceder à sua escolha!

– Para inventar mentiras a justificar a falta do seu filho, prima 1!

– Para desculpar o facto do seu filho não ter feito os trabalhos de

  casa, prima 2!

– Para se queixar do nosso trabalho, prima 3!

– Para insultar os membros desta Escola, prima 4!

– Para perguntar porque não recebeu informações que já foram

  dadas em diversos emails, prima 5!

– Se quiser que sejamos nós a criar a sua criança, prima 6!

– Se quiser atingir, bater ou esbofetear alguém, prima 7!

– Para solicitar outro professor pela 3ª. vez este ano, prima 8!

– Para reclamar dos transportes escolares, prima 9!

– Para reclamar das refeições escolares, prima 0!

– Se tiver percebido que este é o mundo real e o seu filho deve

  ser responsabilizado pelas suas atitudes e comportamentos, 

  trabalhos escolares e de casa e que não é culpa dos docentes a

  falta de esforço do seu filho, desligue e tenha um bom dia!

– Se quiser ouvir esta mensagem noutra língua diferente, mude-

  se para um país onde a falem!”

Heróis do meu dia a dia: “Com o sentimento do dever”…

A nossa Constituição tem uma extensa lista de direitos, liberdades e garantias, mas no que toca a deveres, muito pouco ou quase nada. É que nós estamos muito interessados nos direitos que temos e muito pouco nos deveres. Aliás, há numerosos “especialistas” nisso, porque só vivem com os primeiros. Os deveres são a parte ”chata”. Como tal, dispensáveis. Ora, como na maioria dos casos o único controle que existe do seu cumprimento é a nossa consciência, porque nos vêm do imperativo moral e do conjunto de valores que lhe estão associados, com o “evoluir da sociedade” fomos esquecendo-os e começamos a “assobiar para o lado”, fingindo que não é connosco. 

Ser cidadão implica ter direitos, mas também de fazer a nossa parte para que a sociedade seja melhor, com o contributo e disponibilidade. 

Já caíra a noite e Alfredo estava sentado no automóvel quando na rua entrou outro carro e tentou fazer inversão de marcha entre as filas de viaturas estacionadas de um e outro lado da via. Ao tentar a manobra, o condutor acertou em cheio na lateral de um dos carros ali parados, amolgando o painel. O automóvel imobilizou-se e do seu interior saiu uma mulher. Aproximou-se da viatura em que embatera, verificou os estragos e olhou em volta. Não vislumbrando ninguém, voltou para o seu e arrancou, perdendo-se na noite.

Mas o Alfredo não se demitiu nem de espectador nem de cidadão e tomou nota da matrícula desse carro em fuga e saiu para o frio da noite à procura do dono da viatura embatida sem saber quem era nem onde o poderia encontrar. Lá foi andando, de porta em porta, de pergunta em pergunta. E finalmente, quando entrou no terceiro espaço público aberto àquela hora e quis saber quem era o dono daquele Toyota verde, conseguiu encontrá-lo. Perante ele, não só relatou o que viu como se dispôs a acompanhá-lo à GNR para participar a ocorrência e testemunhar o acidente até ser levantado o respetivo auto, identificada a condutora que fugira e deixar caminho aberto à intervenção da autoridade e à salvaguarda do direito à reparação do carro atingido. Mas tudo isso só foi possível porque o “senhor Alfredo” se recusou ao comodismo do “não me quero incomodar”, assumindo o seu dever de cidadania ao ajudar a corrigir um comportamento errado.   

São inúmeras as viaturas amolgadas sem que os donos se apercebam ou vejam e muito poucos os casos em que alguma testemunha do facto se disponha a assumir o papel de “Alfredo”. Até já damos como desculpa esfarrapada um “vou-me incomodar, para quê?”. E o que se passa com estas situações, passa-se com muitos outras ocorrências onde nos demitimos do dever de cidadania, embora quando somos os lesados, “criticamos” aqueles que viram e não se preocuparam. Mas quando estamos no papel da mulher que amolgou o carro e se “pôs a milhas”, qual será a nossa atitude? Procuramos o dono do carro para lhe comunicar o acidente? Deixamos um bilhete e assumimos a total responsabilidade da reparação? Ou olhamos à volta e fazemos como ela?  

O curioso é que Alfredo já estivera numa situação semelhante, mas do lado contrário. Sendo motorista de camião de longo curso, numa das suas viagens lá fora e já depois de atravessar a fronteira portuguesa e entrar em território espanhol, ao passar em zona mais apertada ficou com a sensação de que o camião tocara numa viatura. Logo que pôde encostou à berma e voltou para trás até ao local onde lhe pareceu que algo ocorrera. Na verdade, havia um automóvel um pouco amolgado. Procurou saber quem era o dono, mas não conseguiu nada. Por isso, escreveu um bilhete ao proprietário que deixou no para-brisas, onde relatava o acontecido e fornecia todos os seus dados pessoais, para além de o informar que, quando regressasse da viagem, o procuraria para pagar os prejuízos. Não satisfeito, dirigiu-se ao posto da guarda civil espanhola e falou com o agente de serviço, a quem descreveu o sucedido e pediu ajuda para encontrar o proprietário do automóvel na passagem de regresso a Portugal. Após tudo isso, seguiu viagem para o centro da Europa. Quando regressou, voltou a parar e dirigiu-se ao posto da guarda civil onde encontrou o agente com quem falara. “E então?”, perguntou-lhe. O agente respondeu-lhe: “O dono do carro pediu-me para te entregar esta carta”, estendendo-lhe um envelope fechado. E, enquanto Alfredo ia abrindo o envelope, foi-lhe dizendo: “Não era preciso. Bastava dizer quanto lhe devo”. “Não sei”, retorquiu o guarda com um sorriso enigmático e insistindo para ler a carta. Mas ao lê-la, Alfredo apanhou uma das maiores surpresas da sua vida. O dono do carro começava a carta com um agradecimento, elogiando-o pela nobreza da atitude e dava-lhe conta que nada lhe tinha a pagar pela reparação. E, mais surpreendente ainda foi que, para além do elogio e da recusa à reparação dos danos, juntava um certo valor em dinheiro como prémio pela seriedade e dignidade do seu gesto, coisa rara do nosso tempo. 

Não há dúvida que estes dois homens foram bem dignos um do outro. Porque, se um assumiu a responsabilidade que lhe cabia, plenamente e sem hesitações nem subterfúgios, o outro, apesar de “lesado”, não só não fez o que é normal exigindo o direito à reparação (às vezes do que foi e do que não foi), como ainda foi mais longe ao reconhecer a nobreza da atitude de Alfredo e respondendo ao gesto com um gesto magnânimo, igualmente digno e nobre. 

Tanto como espectador acidental de um incidente em que o culpado se pôs em fuga, como responsável por um acidente de que suspeitou embora pudesse ignorar, Alfredo não só não se demitiu, como soube agir de acordo com a consciência e o sentimento do dever cumprido, transformando-se num modelo de referência para todos nós. Porque, não tenho dúvidas, a maioria teria feito rigorosamente o contrário …    

Desperdício. Nem a crise o eliminou…

Quando andava na escola primária, levava os poucos apetrechos e livros que tinha numa saca de pano que a minha mãe fizera em casa, aproveitando alguns restos de tecido para o efeito, pois a maioria dos meus colegas não só não tinha saca como nem sequer os livros. Uma coisa era comum a todos nós: a “lousa”, aquele retângulo de ardósia relativamente fino envolvido num caixilho de madeira com os cantos arredondados, para fazer tanto os trabalhos de casa como os da sala. Escrevia-se na lousa com um lápis também de ardósia e, para apagar, bastava aplicar-lhe uma valente cuspidela no meio do “retângulo”. E a manga da camisola fazia o resto. A professora escrevia as parcelas das contas no quadro e nós copiávamos e fazíamos a multiplicação, a soma ou outra conta na “lousa”, indo depois mostrar-lha para ver se estava certa ou errada. Já os trabalhos de escrita, como as redações, cópias ou repetição de palavras, eram normalmente efetuados num caderno de duas linhas, onde as letras eram desenhadas com uma “pena” de aparo que se molhava regularmente no tinteiro existente no tampo da carteira, cheio com tinta da marca “Pelikan”. A “lousa” era o nosso “tablet” de outrora, usada para escrever, fazer contas e trabalhos diversos que pudessem ser apagados, ficando disponível para novo uso vezes e vezes sem conta. Não tinha desgaste nem era descartável. Só quando partia acidentalmente ou no meio de uma rixa é que deixava de ter utilidade e tinha de ser descartada e substituída por outra, o que não era mau para todos, pois as gentes de Valongo que as fabricavam agradeciam.

Quando fiz o exame de admissão no final da 4ª. Classe e entrei no 1º. Ano do liceu, ou melhor, do Colégio Eça de Queirós já que não existia liceu em Lousada, desapareceu a “lousa” dos apetrechos escolares, passando a objeto de museu, substituída por cadernos e sebentas que foram evoluindo com o tempo e com as alterações do ensino, para os mais diversos tipos. Se a “lousa” era um artigo de uso constante e repetido, em que nada era descartável (a não ser a cuspidela), já o caderno era aproveitado até à última página porque, sendo material descartável e como o dinheiro era “curto”, pensava-se duas vezes até se decidir comprar um novo.

Foi assim durante todo o liceu e assim continuou a ser em Coimbra, não havendo lugar a desperdícios nem a usos indevidos do material. 

Quando comecei a trabalhar num organismo público depois de ter cumprido o serviço militar, sempre que precisava de um caderno, bloco de papel, esferográfica ou um simples lápis, era-me entregue pelo responsável do material de escritório e registado num livro como se de uma preciosidade se tratasse, sendo o seu uso controlado por forma a não haver aproveitamento para outros fins que não os do serviço. Com o passar dos anos e a (aparente?) evolução económica do país, abrandou-se no rigor do controle dos consumíveis e estes descambaram de forma acelerada, pois o descartável passou a ser descartado com o máximo das facilidades, como se não tivesse um custo e o fornecimento fosse ilimitado.

Usar papel ou outro artigo qualquer de forma displicente e descontrolada passou a ser o “pão nosso de cada dia”, sem responsabilidade e impunemente, porque a euforia da (boa?) situação económica tudo permitia. Quando a crise chegou foi necessário cortar nas despesas, a começar no desperdício porque era despesa inútil que a ninguém servia, mas isso já não foi fácil. Recordo uma conversa que tive nessa altura com o responsável de um Organismo público. Os cortes orçamentais de então levaram a que ele fosse nomeado para reorganizar e controlar os consumíveis dentro do organismo, pois estavam fora de controle. A falta de verbas e financiamentos implicavam uma redução global na despesa, para se não entrar em colapso. Mas ele deparou-se com grandes problemas quando quis disciplinar chamadas telefónicas, consumo de papel, lápis, fotocópias, esferográficas, réguas, borrachas e outros artigos, porque encontrava uma forte oposição da parte do pessoal que não aceitava tal imposição. Dizia ele que os maus hábitos de longos anos e a impunidade pelos consumos excessivos e desregrados criaram nas pessoas como que o sentimento de um direito adquirido, o “direito ao desperdício”.

Thomas Fuller resumiu tudo numa simples frase: “Enquanto o poço não seca, não sabemos dar valor à água”. E é verdade. Como ao abrir a torneira corre água, ao acionar o interruptor acende a luz, ao irmos ao supermercado há sempre muitos alimentos para comprar, na loja de vestuário nunca faltam “trapos” para nos tentar, não valorizamos nada. Mesmo, nada. Por isso, damo-nos ao luxo de ser “desregrados no consumo”, quando não consumidores obsessivos sem respeito por quem tem de pagar o que gastamos, sem respeito pelos outros que também têm direito a ter algo para consumir, sem respeito por nada nem ninguém, muito menos pela natureza de que fazemos parte, que não é infinita no manancial daquilo que nos dá. E tudo isso até ao dia em que ao abrirmos a torneira não saia nada, ao acender a lâmpada ela continue apagada ou não tenhamos bens para desperdiçar nem para consumir. 

Já Alex Periscinoto dizia que “tudo é infinito até que vire finito. Desperdiçamos tudo – água, luz, mantimentos, porque pensamos que esse tudo vai durar para sempre. Errado” …

Quando nos anos oitenta passamos pela crise do petróleo, o preço dos combustíveis subiu muito e bastantes vezes. Sempre que havia aumento, comentava o assunto com um colega bastante mais velho (e sábio) do que eu. E em todas as ocasiões em que me queixava pela subida do preço da gasolina, ouvia-o comentar: “Ainda não está cara”. Depois de ter aguentado aquela “lenga, lenga” várias vezes e já farto da “cassete”, perguntei-lhe: “Oh inteligente, diz-me lá: se ainda não está cara, qual é o dia em que tu me vais dizer que está mesmo cara”? E ele, com ar cínico, respondeu-me: “No dia em que fores a um posto de abastecimento e te digam que não há, nem haverá mais”!!!

Tudo o que consumimos em excesso, por egoísmo e com desperdício, pode ser-nos devolvido em escassez e privação. A nós ou aos nossos filhos. Porque “o desperdício de hoje, pode ser o que nos vai faltar amanhã” …

“À primeira vista”, choca. E, depois …

Depois do jantar, fico sentado junto da Luísa até às tantas, dividido entre o computador e a televisão onde passam os programas que a sua sensibilidade suporta. Na prática, a televisão está ao seu serviço, não ao meu. Assim, sempre que manifesta incómodo pelo programa que passa no momento, mudo de canal rapidamente. Tolera bem os “Got Talent”, “The Voice”, um pouco o “Telejornal” até chegar alguma notícia chocante e os programas do tipo “Somos Portugal” ao fim de semana, mais um ou outro neutro. Não gosta de ação ou violência e só vê alguns filmes dentro da mesma lógica. Quando não há programa adequado ou não tenha gravações aceitáveis, salto de canal em canal à procura de algo que a não faça reagir de desagrado. 

Numa dessas buscas fui parar ao canal onde decorria um episódio de “Casados à primeira vista”, na Austrália, mas, confesso, considerei tão absurdo e ridícula a filosofia do programa, que mudei imediatamente de canal. Já ouvira falar nele e criara-lhe alguma “aversão”, pois não compreendia como é que alguém se sujeitasse a casar sem conhecer a pessoa com quem iria viver. Achei que era mais uma das “aberrações” que a televisão cria em nome do “vale tudo” para conseguir subir nas audiências. Nos dias seguintes, por diversas vezes passei por ali, mas mudava sempre para não dar à Luísa um “produto” daqueles. Porém, sem uma razão especial, uma ocasião a televisão ficou ali sintonizada e fui vendo a espaços as incidências e consequências dos casamentos. E a curiosidade levou-me a querer perceber a mecânica do programa e, muito especialmente, as motivações das pessoas que se dispõem a participar numa exposição pública do que pode ser ou não um lado importante das suas vidas. E se a minha primeira reação foi recusar ver tal “disparate” por não achar aceitável que alguém se case com uma pessoa que não conhece, depois de ver algumas partes fiquei a pensar nas razões que terão originado o programa e que poderá não ser assim tão absurdo como “à primeira vista” parece. 

O mundo mudou e tudo mudou à nossa volta. E nesse tudo, incluído está o modelo dos “encontros” e de casamentos, o conceito de casal, a (aparente) facilidade com que as pessoas se relacionam, a pressa com que se “juntam os trapinhos” e a velocidade estonteante com que se separam. E, no essencial, a destruição da família como célula fulcral da sociedade e os “cacos” que ficam como seus falsos substitutos. O certo é que, a cada ano que passa e apesar de vivermos num tempo em que tudo parece fácil para se criar relações, os encontros e todas as facilidades (aparentes) de relacionamento não evitam que cada vez mais pessoas, que não o desejam, vivam sozinhas contra a sua vontade.  E não é isso que desejavam. Essa gente, na maioria, quer e precisa de alguém com quem partilhar o dia e a noite, os problemas, o sofá, a televisão, enfim, a vida. Mas estão sós. Muitos são os que, para enganar a ausência, afogam-se em noitadas de sexo sem companhia, de álcool, quando não de drogas. 

Mais de 40% dos portugueses são solteiros e, além destes, tem aumentado os viúvos e, mesmo muito, o número de divorciados pela facilidade com que hoje se descarta o casamento. De tal forma que alguns deles se assemelham à pescada: “antes de o ser já o era”. Isto traz-nos uma realidade nova que cresce dia a dia, sem que se imagine forma de a diminuir. Mas diminuem os “compromissos” porque, apesar das facilidades, a vulnerabilidade necessária a um relacionamento saudável é mais rara, já que subiu a desconfiança, a dúvida, o ceticismo. Provavelmente, a questão é que a maioria já nem sequer o sabe fazer.

Outrora, as fases de uma relação eram: “Conhecimento, compromisso e sexo”, enquadradas em regras tradicionais rígidas. Mas a evolução da sociedade até aos nossos dias fez com que a ordem fosse alterada para “Sexo, conhecimento, compromisso”. No entanto, a facilidade de “conseguir logo à primeira” aquilo que seria o fim último, tornou-se sério obstáculo em alcançar o “compromisso” porque a satisfação do instinto animal fora conseguida sem necessidade de o assumir.  E isto somado à ligeireza com que se desfaz o casamento e se descartam as relações, só vem acrescentar números aos inúmeros casos de solidão. Ora, a chegada de um programa deste género, onde se promete que “uma boa equipa de especialistas vai decidir por si”, com base no seu perfil psicológico e no de muitas outras pessoas, ao ser divulgado em “campo de muitas necessidades”, só pode ter enorme adesão entre gente que já tinha desistido de procurar a sua “cara-metade”. E não deixa de ser curioso que altera e estabelece o novo alinhamento das tais três fases: “Compromisso, conhecimento e sexo”, ordem essa já mais ajustada à moral cristã.  Portanto, é natural que grande parte dessa gente se questione: “Porque não? Vale a pena tentar”. Reparei que muitos concorrentes chegam a dizer “já tinha desistido de tentar encontrar a alma gêmea”. Assim, alinham no programa como outros o tentam pela internet em sites de relacionamentos. O desespero já não impõe condições. Isso passa-se em todo o mundo, sendo o problema tanto maior quanto maior é o desenvolvimento da sociedade. E o expoente máximo dessa solidão e incapacidade de assumir relações é o Japão. Hoje, na era do digital, da velocidade, parece impossível que metade dos jovens adultos japoneses sejam virgens e que tenham dificuldades enormes ou mesmo incapacidade de se relacionarem com mulheres. Estas dizem até que é difícil conhecer pessoas depois de passarem os 25 anos. Serão assim tão velhas? A situação é de tal forma grave que os municípios, instituições e empresas promovem os “Encontros às cegas” e “Festas de solteiros”, juntando milhares de pessoas para estimular “uniões”. E os casais organizam festas com pequenos grupos, para a qual convidam amigos e amigas que não se conhecem entre si, só para “fomentar ligações”.

E quantos sites de relacionamentos não existem por esse mundo fora para juntar pessoas que se não conhecem? Quantas organizações de viagens turísticas destinadas a pessoas sozinhas com esse objetivo?

Se a minha primeira reação foi de uma recusa absoluta do processo e a crítica dura a todos os que alinham no programa, ao parar e pensar acho que é de elogiar a coragem de muitos deles ao arriscar e expor publicamente, como que em tentativa desesperada para não ficar só. Será preferível sair da concha e arriscar, dizer que “preciso de ajuda” ou desistir de ir à luta, de tentar e deixar-se ficar em casa derrotado, com uma vida “preenchida pela tristeza e frustração, quando não de revolta e até ressentimento com quem está perto”?

No tal programa, os participantes fazem o caminho contrário ao de um “casamento normal”, partindo do “compromisso para o sexo”, enquanto neste partem do “sexo para o compromisso”. O conceito e os princípios não estão assim tão errados como se pode pensar.

Claro que o programa enferma de vários senãos, sendo o principal o não se conseguir saber o que é real e o que é teatro, além da pressão que há sobre os casais para “avançar na relação” em função de necessidades televisivas, como se as relações possam evoluir ao tic tac do relógio e conveniência de audiências. Não se dá tempo ao tempo que o namoro exige, nem a liberdade para que ambos se conheçam e em que esse tempo é essencial. Em suma, o programa usa um problema grave da sociedade, crescente e comum a milhões de pessoas que todos temos obrigação de conhecer e sobre ele refletir, pois a qualquer momento podemos incorporar essa legião. E se assenta em princípios básicos corretos, o processo padece dos erros próprios de um programa que, explorando uma realidade dramática, não se desvia um milímetro do objetivo principal na guerra das audiências, a qualquer preço … 

Que o tema é sério, ninguém duvida. Tal como dizia Geraldo Fontes, “viver sozinho é um problema, uma escolha ou um fracasso” …