Monthly Archives: November 2023

Somos a soma das nossas escolhas …

As escolhas que fazemos, definem-nos. Escolhes seguir em frente ou viver no passado? Escolhes ser feliz ou passar a vida a reclamar? Escolhes ser solidário ou egoísta? Escolhes ser gentil ou grosseiro? E escolhes virar à direita, à esquerda ou parar? Escolhas, decisões e opções. As escolhas fazem-nos seguir diferentes caminhos, diferentes histórias de vida. Permitem-nos ser quem queremos ser, mas toda a escolha gera consequências. Por isso, somos livres de escolher, mas devemos ponderar antes de escolher pois ficamos prisioneiros das consequências. É que, ao fazermos uma opção estamos a rejeitar outra. E, de opção em opção, tecemos aquilo a que chamamos vida.

Fui almoçar com dois amigos e, enquanto eles decidiram comer os tradicionais filetes de pescada, eu tentei-me e escolhi carne de porco à alentejana, que já não comia há alguns anos. Durante a tarde senti algumas cólicas intestinais, que se agravaram noite dentro. A carne de porco não se deu bem com as ameijoas e quem sofreu fui eu. Já a pescada “não andou à bulha” com ninguém e sorte tiveram os meus amigos, que não tiveram de passar a noite sentados na sanita. Quem “escolheu” mal, fui eu.

A vida é constantemente uma encruzilhada. E, a cada passo, temos de fazer escolhas e aguentar (quase) sempre com as consequências. Não podemos seguir por dois caminhos diferentes ao mesmo tempo. Por isso, em cada encruzilhada temos de decidir por um deles, vivendo muitas vezes na incerteza se essa foi a melhor opção. E se tivéssemos ido pelo outro, como seria? Quantos de nós, no momento de tomar a decisão sobre o curso que queríamos tirar, optamos por um que, anos mais tarde, se revelaria uma escolha errada? Quantos passaram uma vida profissional contrafeitos com a sua profissão, porque o caminho escolhido não foi o certo e foram incapazes de recomeçar do zero em uma outra em que sentissem bem? E muitas vezes as escolhas até são bem simples … 

Viajando pelo interior do Brasil, um homem começou a sentir fome à medida que se aproximava a hora do almoço. Como nem ele nem o seu companheiro de viagem conheciam a região, passaram a ficar atentos a algum letreiro que anunciasse algum restaurante ou local para almoçarem. Alguns quilómetros mais adiante viram um grande letreiro sobre uma casa rural, escrito em letras gordas em madeira escura, onde se lia: “COMIDA A ESCOLÊ”. Pela escrita, entenderam que o proprietário se enganara ou não era muito letrado, mas queria dizer que havia comida para escolher. Pararam, entraram e foram atendidos por uma mulher simples. Como não havia ementa à vista, perguntaram-lhe o que havia para comer. “Frango frito”, respondeu rapidamente a mulher. “E que mais”, insistiram eles? “Só frango frito e mais nada”, respondeu ela de novo. “Mas a tabuleta diz COMIDA A ESCOLHER”, argumentou o amigo. Sem pestanejar, a mulher disse: “Sim, o senhor escolhe se quer comer ou se não quer comer”. E ela tinha razão. Comer ou não comer exigia optar … 

Um casal amigo esteve recentemente em S. Tomé e Príncipe e aquilo que mais os encantou naquele país pobre e onde as pessoas vivem com muito pouco, foi a sua alegria de viver, muito especialmente nas crianças. Muito mais do que as paisagens fantásticas daquela ilha tropical, foi essa felicidade que os comoveu, apesar de terem muito pouco. E sensibilizou-os o saber que, mesmo nessa situação extrema, eles fizeram uma opção e escolheram ser felizes em vez de ficarem amargurados e revoltados, apesar de terem falta de tudo, até do mais básico para viver. Para quem ia de um mundo onde o “ter” é muito mais importante do que o “ser”, foi uma surpresa extraordinária. Nós temos (quase) sempre escolhas a fazer. Alguns escolhem viver e ser felizes com o pouco ou quase nada que têm. Enquanto muitos de nós optamos por ser infelizes apesar de desfrutar de uma abundância relativa onde até nos damos ao luxo de escolher o que queremos ou não queremos comer, vestir, usar, ser, etc., embora achemos que só conseguimos ser felizes precisamente com aquilo que não temos. Mas, na realidade, quando alcançamos aquilo que achamos que nos vai trazer a felicidade, como não a vamos encontrar, sobretudo nas coisas materiais, transferimos esse encontro com ela para outra coisa que alguém tem e nós não temos, numa busca interminável, porque nos esquecemos ou não queremos ver que a felicidade está nas nossas mãos, no nosso coração e não nos nossos desejos. É que o grande segredo está na capacidade de sermos felizes com aquilo que temos em vez de ficar à espera que a felicidade venha embrulhada no novo desejo. 

Quando a minha memória me transporta ao meu tempo de criança e revejo o que havia para comer, vestir, calçar, usar, usufruir, etc. nada, mas mesmo nada tinha a ver com aquilo que hoje está à disposição de todos nós e, tal como em S. Tomé e Príncipe, recordo como as pessoas eram pobres, mas também o quanto eram felizes. Ainda estou a ver e ouvir as mulheres a cantar enquanto lavavam a roupa numa presa ou sachavam o milho em rancho (a troco do almoço) ou espadelavam e fiavam o linho ou na desfolhada à procura do “milho-rei”. Porque a alegria de viver é um destino em função duma escolha que fazemos. E por isso se diz, que “nós somos a soma das nossas escolhas” …       

Apesar de tudo, gostamos de Portugal

 Pelo que consta nos anais da história, desde há muito tempo temos o péssimo hábito de dizer mal dos portugueses, isto é, de nós mesmos. Eça de Queirós é o exemplo acabado de como é possível, e de forma muito contundente, arrasar o portuguesinho. Fernando Pessoa dizia que, num grupo de cinco portugueses, o culpado é sempre o sexto. Somos assim, muito bons críticos de nós, mas não aceitamos que os estrangeiros o façam.                                                                              Portugal é o país do deixa andar, do deixa para amanhã o que podes fazer hoje, do desenrasca, do bota-abaixo, dos três efes. É ao mesmo tempo o Quinto Império e “os cafres da Europa”, no dizer do Padre António Vieira. Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, mas sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na ação” – a descrição é de 1938 e pertence a Salazar.                                                                     Durante os Descobrimentos os portugueses agruparam-se à volta do Estado e continua a ser assim. Adoram o Estado, à sombra do qual muitos vivem. Submissos e resignados (“O Estado vai tomar conta de nós”). Mas queixam-se de que o Estado paga as suas contas “tarde, mal ou nunca”, que presta maus serviços, é lento, burocrático. É uma relação de “amor-ódio”. E se já era assim há 600 anos, significa que não temos emenda. Não conseguimos mudar! Para mudar a maneira de vivermos é preciso implementar reformas de fundo. Mas se nem com uma maioria absoluta foram capazes de o fazer, quando é que tal vai acontecer? E até que ponto nós portugueses queremos mudar a nossa maneira de viver? É que, para sermos ricos como os alemães, suíços, holandeses e nórdicos temos de entrar ao trabalho às oito da manhã, trabalhar até às seis, jantar às sete e estar na cama às nove. É esta a vida que queremos? E é difícil ir para a cama tão cedo com este clima (quando não nos atraiçoa …), que mata tal intenção ou a torna impossível! É verdade que temos grandes qualidades, embora não achemos que sim como dizia o ex-ministro Luís Amado: “Só oiço dizer mal de Portugal em Portugal”, enquanto Boaventura S. Santos fala de uma má consciência por causa da passividade, que todos reconhecem, mas que não conseguem mudar. 

Raramente dizemos: “A culpa é minha e a responsabilidade é minha.” Por norma atiramos a culpa para o outro. E temos pouca participação democrática. Temos medo. Medo de falar de frente, de assinar a petição, de dar a cara quando é preciso enfrentar e confrontar. Medo de ser mal vistos, de fazer figura de parvo, de levantar a voz e ser ridicularizados, ser castigados, como se o poder esteja lá em cima e nós estejamos cá em baixo (“é melhor ficar calado, está mal, mas ainda pode ficar pior, recebo pouco, mas é melhor que nada”). É o medo de tentar ir mais além. [Miguel] Torga. Descreve os portugueses assim: Um “pacífico coletivo de pessoas revoltadas”. Mas estes portugueses foram para França nos anos 60 e foi precisa uma coragem de gigante para quem nunca tinha saído de cá e nem falava francês.  Quiseram acreditar e conseguiram.                                                                                                     Mas sabemos que a produtividade em Portugal é um problema, mas ninguém se esforça muito para a mudar. Alguns esforçam-se, têm sucesso, como a Jerónimo Martins. Mas o grosso das empresas, em especial as do Estado, vivem de fazer o suficiente para sobreviver. Assim, como é que podemos queixar-nos? E de quem?                                                                                                    Somos maus a gerir os dinheiros públicos. Vejamos os milhares de milhões de euros que vieram dos Fundos a União Europeia, de que uma boa parte foi desperdiçada em obras para nada. António Barreto disse que foi um convite ao esbanjamento e à corrupção. E depois?                                                                                                          Ainda somos um país de “chico-espertos” que conseguem contornar o sistema. Quem foge aos impostos é o grande herói! O que consegue dar a volta ao Estado e evitar pagar impostos é o campeão. Andar no limite de velocidade nas estradas ou conseguir estacionar sem pagar são pequenas vitórias do dia-a-dia. Além do tráfico de influências e a corrupção, que começa pelo “jeitinho” e nunca se sabe onde acaba.                                                                                               Quando a Coca-cola quis entrar em Portugal, Salazar escreveu-lhes uma carta a recusar, dizendo que Portugal era um sítio pacato, que queria que ficasse assim, que tinha medo do progresso e que não queria que os camiões da Coca-Cola mudassem o ritmo de vida dos portugueses. Alguém dizia: “Percebo Salazar. O que estava a dizer tem a ver com os valores, com a maneira como queremos viver.” Os portugueses não querem viver como os americanos, gostam da maneira de viver em Portugal.

Queixam-se muito, mas gostam. Se os portugueses não gostassem da vida em Portugal, já tinham mudado. Gostam de ir almoçar durante uma hora e meia, duas horas, à sexta-feira (e todos os dias é sexta-feira …), de chegar tarde ao trabalho e depois ficar lá mais tempo a falar… E no fim do mês, queixam-se que recebem pouco, que lá fora é melhor! Mas não são grandes adeptos da mudança. Porque a temem.                                                                        Os portugueses dizem que são invejosos – que o outro é invejoso, mas nunca o próprio, bem entendido. “Se não posso ter, não quero que os outros tenham. Fico com as minhas coisinhas e fico contentinho.” O “inho” vem também de uma frustração na vida, de sentir que não consegue ter. Os portugueses não pensam que se trabalharem muito, se se esforçarem, pouparem, investirem bem, arriscarem, conseguem chegar lá. Olham para a pessoa que tem [com desconfiança]: “Deve ter conseguido o que tem com malandragem ou teve uma cunha.”         Nós dizemos mal de Portugal e mal uns dos outros, mas adoramos Portugal. Como alguém da nossa família que não suportamos, mas que é da nossa família. Porque gostamos mesmo de Portugal. E não tenhamos dúvidas: Os que tiveram de imigrar, se pudessem ficar cá, também ficavam … 

A felicidade no “cordão d’oiro” …

Ainda era adolescente quando integrei um grupo de conterrâneos numa ida à festa de S. Simão, em Guilhufe-Urrô, Penafiel, conhecida por ser o santo apóstolo de Cristo padroeiro dos cravos onde muitos fiéis iam “pagar as suas promessas” e a primeira onde se bebia “vinho doce”. Duas das moçoilas que integravam o grupo, mais velhas do que eu, apresentavam-se vestidas com um traje tradicional, de lenço na cabeça, faces coradas, um cordão de ouro que dava três ou quatro voltas ao pescoço para depois cair sobre o peito e, pendentes de cada orelha, duas grandes “arrecadas” também em ouro. Como de costume nas festas de então, passeava-se de um lado para o outro, elas para se mostrarem à espera de um possível candidato enquanto eu, o mais novo do grupo, apreciava todo o movimento. 

Às tantas, uma delas deu um grito e, quando olhei, vi-a deitar a mão ao pescoço e ainda conseguir segurar a ponta do cordão de ouro que já se lhe escapava, em resultado da tentativa de roubo por algum “artista” que, com subtileza, conseguira cortar o cordão e que deveria seguir de perto à espera que caísse naturalmente. Imagino que tenha sido auxiliado por alguns colaboradores, pois isto deu-se num momento em que passamos por um aglomerado de pessoas onde era grande o aperto, julgo que intencional para a distrair e não se dar conta do golpe. E foi por pouco que não conseguiram os seus intentos. 

Para a moça seria um duro golpe se os ladrões tivessem concretizado o roubo, porque o “cordão d’oiro” tinha um enorme significado para ela, como o teria para todas as jovens daquele tempo: era um sonho de criança concretizado, era o seu mealheiro e também o fruto de anos de trabalho.

A Miquinhas Mota tinha a sua casa cinquenta metros abaixo da casa dos meus pais. Morava no andar e a parte de baixo era dedicada ao negócio do “folhelho”. Para quem não conhece o termo, o “folhelho” corresponde à “camisa” das espigas de milho, isto é, a parte que cobre toda a espiga. Ela comprava aos lavradores essas “camisas” tal como eram separadas da espiga nas tradicionais desfolhadas e usava-as para enchimento de colchões no tempo em que não havia a gama de materiais para o fabrico colchões de hoje. Para além do “folhelho”, só as penas, mas essas eram muito caras. No entanto, antes de ser usado no enchimento dos colchões, tinha de ser “ripado”, isto é, passado por um “ripo” que rasgava as folhas em tiras finas para o produto final se tornar mais fofo e confortável. Maria era uma das jovens “ripadeiras” da aldeia que “ripava folhelho”. Mas desde que começou a trabalhar na “ripagem”, pediu à Miquinhas Mota que lhe guardasse uma parte daquilo que tinha de lhe pagar por cada saco de produto ripado até ela conseguir “juntar dinheiro” suficiente para comprar um cordão. E na verdade, quando anos mais tarde ela atingiu um certo montante de dinheiro poupado, suficiente para comprar o cordão d’oiro com que tanto sonhou, “meteu pés ao caminho” na companhia da mãe e foi à vila satisfazer o desejo de longa data. Porque esse era o desígnio de qualquer jovem de então e a sorte dos ourives da época.

Não havendo praticamente empregos para as mulheres, muitas mães procuravam pôr as suas filhas “a servir”, se possível numa casa rica onde sabiam que seria bem tratada e educada (e isso começava por querer dizer que comeria e vestiria bem, o que em casa dos pais não seria assim). Ora, também aí a moça costumava pedir à patroa que lhe guardasse o dinheiro com que ficava (a outra parte muitas vezes era entregue à mãe para ajudar lé em casa) para comprar o tal cordão d’oiro e se possível um dos maiores e mais pesados, que já custavam dois ou três contos. E, tal e qual como a Maria, também elas tinham de trabalhar alguns anos para conseguir amealhar dinheiro suficiente para o sonhado cordão.

Para aquelas que não conseguiam juntar o dinheiro suficiente para um cordão d’oiro, muitas vezes acabavam por comprar um trancelim, também em ouro, mas mais leve e, consequentemente, muito mais barato. 

Olhando para trás nesse tempo distante, recordo com respeito e um certo sentimento de saudade esse desejo fascinante das moçoilas de então, de possuírem um “cordão d’oiro”, angariado à custa de muito suor, de anos e anos de trabalho duro, sacrifício porque “tiravam-no da boca” para poder juntar algum dinheirito e uma confiança cega na sua “patroa” que funcionava como o “banco” em quem confiavam as poupanças com mais tranquilidade do que nós hoje podemos confiar. E era bonito ver o quanto se sentiam orgulhosas e vaidosas sempre que tinham a oportunidade de o colocar à volta do pescoço num dia especial, fosse dia de feira ou romaria ou até num simples domingo, numa manifestação feliz de que tinham alcançado o seu sonho. E esse sonho, apesar de simples, era a sua felicidade … 

Ser ou não ser extraordinário. Eis a questão …

Em miúdos, e não só, todos nós sonhamos ser extraordinários, vestir a capa de super-herói, ser bestiais em todas as áreas da vida. Mas, na realidade, somos quase todos medianos, bastante medianos mesmo. E até quando somos bons em alguma coisa, o mais provável é que sejamos médios ou abaixo da média na maioria das outras. É assim a vida. Para que alguém se torne verdadeiramente excelente nalguma coisa tem de lhe dedicar muito tempo e energia. E como estes nos são limitados, muito poucos se tornam verdadeiramente excecionais em mais do que uma coisa, se tanto. Pode-se dizer que é improvável que alguém seja extraordinário em todas as áreas da vida ou mesmo em muitas áreas. 

É por isso que os empresários brilhantes têm muitas vezes uma vida pessoal lixada. Atletas extraordinários são muitas vezes frívolos e brutos como calhaus. Celebridades que admiramos estão tantas vezes perdidas quanto as olhamos embasbacados. Gente que conseguiu ganhar fama e muito dinheiro acaba morta por suicídio.  Em geral somos medianos, mas são os extremos que têm toda a publicidade. Por isso, todos os dias somos bombardeados com o verdadeiramente extraordinário. O melhor do melhor ou o pior do pior. As maiores proezas físicas, as piadas mais engraçadas, as façanhas mais incríveis. E também as notícias mais perturbadoras e chocantes, as coisas mais exóticas, aberrantes e imbecis. Porque no negócio da comunicação social é isso que faz arregalar os olhos e os olhos arregalados trazem dinheiro. Ora é isso que interessa. Contudo, a grande maioria da vida é até bastante mediana.                                                                                                                                        Esta onda de informação do extremamente fantástico, excecional e aberrante nos meios de comunicação e redes sociais até nos leva a acreditar que o extraordinário é o “novo normal”. E, porque somos quase todos medianos, ao sermos encharcados com a informação do excecional, pode fazer-nos acreditar que não somos suficientemente bons e que se passa algo de errado connosco. E isso traz problemas sérios à sociedade porque muita gente acha que “também tem esse direito de ser excecional”. Assim, a inundação do excecional faz com que as pessoas, sobretudo jovens, possam ficar mal consigo e fá-las sentir que precisam de ser mais extremas e mais radicais para que reparem nelas ou para ter alguma importância face a esses padrões irrealistas que não conseguem atingir.

Na cultura ocidental tornou-se comum acreditar que estamos todos destinados a fazer algo extraordinário. É isso que dizem os políticos. Também é o que dizem as celebridades, além dos magnatas e gurus. Que todos merecemos a grandeza. E é a pensar nisso que muitos pais levam os filhos para as escolas de futebol e alguns, na ânsia do “tem que ser”, fazem cenas ridículas ao querer a todo o custo que o filho tenha sucesso, talvez para que ele consiga dar-lhe aquilo que ele não conseguiu ter na vida: ser extraordinário. Se pensarmos bem vemos que, se fôssemos todos extraordinários, isso seria a “normalidade” e assim passaríamos a ser “normais”. Em função dessa exaltação do ser “extraordinário”, ser “médio” tornou-se o padrão do fracasso, pois o pior sítio para se estar é no meio do rebanho. Quando o padrão de sucesso é o extraordinário, é preferível estar no extremo mais baixo do que no meio. Pois lá em baixo e pelos piores motivos, continua-se a ser muito especial e a poder merecer atenção, quanto mais não seja da comunicação social. Alguns escolhem a estratégia de provar a toda a gente que são os mais infelizes, os mais oprimidos ou as maiores vítimas. Ou então ser os piores dos piores porque lá estarão os meios de comunicação social para lhes dar tempo de antena como se fossem especiais. E a verdade é que são, mas pelas piores razões …                                                                                                 As raríssimas pessoas que se tornam verdadeiramente excecionais nalguma coisa não o fazem por acreditarem que são excecionais. Pelo contrário, elas tornam-se fantásticas porque estão obcecadas pelo aperfeiçoamento e essa obsessão vem da crença de que ainda não o são, o que os leva a esforçar-se mais e mais, pois sabem que só com o trabalho, esforço e sacrifício é possível ambicionar tal desígnio. Toda esta história de que “toda a gente pode ser extraordinária e atingir grandeza” não é mais do que uma mentira piedosa para fazer cócegas ao ego de cada um, a nova miragem do mundo ocidental.

A receita para a nossa saúde emocional é aceitar verdades correntes como “As tuas ações, na verdade, não contam assim tanto no grande esquema das coisas” ou “A maior parte da tua vida será monótona, de rotina, anónima e sem nada digno de nota e isso não é um problema”. Vai saber muito mal reconhecer que não seremos extraordinários, mas depois seguimos em frente já sem essa pressão constante de ter de ser fantástico. E vem a consciência e aceitação da nossa existência neste mundo, livres para fazer o que desejamos, sem críticas nem as expectativas altas. E pode-se apreciar melhor os prazeres da amizade simples, de criar alguma coisa inclusive os filhos e uma família, de rir com alguém que se ama, de dar tempo aos outros.

Parece chato para quem se farta de ouvir falar constantemente nos excecionais e fantásticos, mas já há muito que se confirma a teoria de que a felicidade está nas coisas simples, nas coisas vulgares da vida. Porque, vendo bem, são aquilo que na verdade importa …

Mas não esqueçamos que, a qualquer momento da vida, podemos ser chamados a ser simplesmente extraordinários, se o acaso nos tornar em “cuidador informal” de um filho, esposa, marido, outro familiar ou até amigo. Tal como o são hoje centenas de milhares de portugueses. Quando confrontados com o drama de uma doença incapacitante, de acidente ou deficiência de alguém que lhes é próximo, arregaçaram as mangas e sacrificaram a sua vida pessoal e profissional por amor incondicional ao colocarem os interesses do “outro” à frente dos seus, já que foram esquecidos por quem de direito. Tem um custo? Se tem! Mas vai sentir-se recompensado se o fizer de alma e coração. E então, quem o conhecer vai achá-lo verdadeiramente “extraordinário”.                                                   Faço-lhe um aviso prévio: Não fique à espera de que a comunicação e as redes sociais promovam o seu desempenho porque o consideram extraordinário. Esqueça. Não o vão fazer. Porque para eles isso não vende, não é negócio, não dá dinheiro …