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Haja respeito e compreensão por eles …

O senhor Joaquim está no hospital. Foi internado ontem. Quando a enfermeira lhe perguntou a idade ele retorquiu em francês: “quatre-vingts”. Como não compreendeu, perguntou à colega: “O que disse ele”? Ela respondeu que o senhor Joaquim tinha oitenta anos. Foi ao dar-lhe banho que a segunda enfermeira ouviu parte da sua história de vida num francês que foi compreendendo a espaços, mas de onde percebeu que ele esteve quarenta e cinco anos como emigrante em França e só a doença da mulher o fez regressar à terra natal onde deixara duas das seis filhas que tem. Por lá trabalhou na construção civil todo esse tempo e ficou-lhe atravessado no pensamento e no instinto a língua francesa, apesar de adotada à força da necessidade. Quando a filha o foi visitar à tarde, ao saber que falara em francês berrou com ele: “Tem de falar em português porque o pai sabe”. E, voltada para as enfermeiras, pediu para o obrigarem a falar na nossa língua. Aquela filha, que viveu tantos anos longe do pai, fruto das circunstâncias, não percebia que na sua cabeça o pensamento estava estruturado em francês por força dos quarenta e cinco anos a ter de o ouvir, falar e sentir e que, para agora encontrar as palavras certas na sua língua materna, tinha de as procurar no seu registo mental uma a uma, a conta gotas. Pior ainda, permitiu-se criticá-lo de ânimo leve, sem perceber a sua extrema dificuldade para falar em português ao fim de quatro décadas e meia de ausência, durante a qual só cá veio três ou quatro vezes. 

O João, que está em Inglaterra há mais de dez anos, explicava isso bem ao contar que até os seus sonhos já são em inglês, muito longe dos quarenta e cinco anos do senhor Joaquim como emigrante … 

É recorrente. Criticamos os emigrantes quando falam noutra língua, dizendo que “ele está-se a armar”, tal como os criticamos quando aparecem “montados num carrão”, que quase sempre mais não é do que a necessidade de afirmação do seu sucesso lá fora, uma forma de dizer “eu venci na vida”, uma manifestação de orgulho pessoal, sabe-se lá a que preço. Mas não temos noção desse preço e, ao criticarmos essa sua “afirmação”, quantas vezes não o fazemos com o sentimento de inveja por ele ter aquilo que nós gostaríamos de ter?

Ser emigrante, aquele emigrante que se muda para outro país mais ou menos distante, à procura de uma vida melhor, não é fácil, por mais letrado que seja. E, logicamente, quanto menor for a formação, mais dificuldades tende a encontrar na sua adaptação a outro país, outra língua, outra cultura. Que o digam todos aqueles que trabalham na construção civil por essa Europa fora, olhados e tratados (quase) sempre como “estrangeiros”, gente “menor” na sua escala social ou, se preferir, de grandeza. E já nem falo de tudo aquilo que passaram os nossos concidadãos nos anos sessenta e setenta nas primeiras grandes “levas” de emigração para França, em que iam praticamente às escuras para um país de que nada conheciam, nada sabiam, onde se falava uma língua estranha de que nada compreendiam, a reboque de engajadores que os exploravam e, demasiadas vezes, deixaram entregues a si mesmos em terra estranha. Na nossa estupidez, ainda tendemos a criticar aqueles que se fizeram ao caminho e deixaram tudo para trás na busca de uma vida melhor, a começar pela casa, família e amigos. Um preço demasiado alto para quem quis levantar a cabeça e sonhar com outro futuro … 

Um desses que por lá labutava dignamente na ânsia de ter um futuro mais promissor do que tivera por estas bandas, numa das suas visitas à terra natal ouviu várias dessas críticas de uma das suas irmãs mais queridas. Nessa noite, chorando convulsivamente abraçado ao pai, desabafava sentido: “Se ela soubesse o que é estar longe da família? Se sonhasse o que é sentir-se sozinho em terra que não conhecemos e onde somos vistos como intrusos? Se sentisse o que é precisar de uma mão amiga, alguém a quem recorrer sempre que precise, ainda que seja só para desabafar um pouco e não ter com quem? Não tem noção nenhuma do quanto se sofre, do quanto nos privamos, das coisas simples de que tivemos de abdicar. Não sabe o que é perder o envelhecer dos pais e amigos, o crescer dos filhos, os aniversários, casamentos e até funerais de gente de quem gostamos” …

Desengane-se quem acha que ser emigrante não tem um preço. Oh se tem e como é elevado … porque é um ato de coragem sair da zona de conforto para ir em busca de uma vida melhor, deixando para trás mulher, filhos, pais, amigos, casa, a vida que conhece e que o conhece. Porque é disso que se trata. Ir à luta, se não se tem cá como. Um salto no desconhecido, tendo de se fazer forte por mais fraco que se sinta, porque não pode olhar para trás, desistir, falhar, fracassar. E quando a vida lá não é o “paraíso” sonhado, porque se encontrou um patrão que não paga e explora, quando não um compatriota que se aproveita da sua necessidade, ao comunicar para casa, diz-se sempre que “está tudo bem”, “isto aqui é um paraíso”, porque não se quer fazer sofrer aqueles que se amam e ficaram cá, pois já basta o seu drama. E isso é tão verdade para um emigrante português como para qualquer outro.

E a prová-lo está a Marta, cabo-verdiana que reside cá. Apesar de não ter uma condição económica desafogada, sempre que quer tirar fotos para enviar à família, veste-se bem para dar um ar de sucesso. Como vai enviando com regularidade algum do pouco dinheiro que ganha e lhe sobra à família que por lá ficou, para que eles “saibam que ela está bem”. “Porque eu vim para ter cá uma vida melhor e poder ajudá-los. E é isso que eles esperam de mim”, não se inibe de afirmar.

Apesar de ter passado ao lado duma oportunidade para o ser, não sou nem nunca fui emigrante, embora tenha estado afastado da família ao longo de dois anos como militar, em Moçambique, o que não é bem a mesma coisa. Em comum, só o afastamento e ausência. Por isso, tudo o que digo baseia-se no contacto direto com alguns deles, cá e lá fora e em variadas condições, mas sem ter vivido e sentido esse “carregar do fardo”, o estar só e doente no meio da multidão e “não ter quem nos faça um chá ou dê um pouco de atenção”, como dizia uma nossa conterrânea. Quantos homens estão lá enquanto a família está aqui, a milhares de quilómetros de distância? Não é o telefonema diário (se for possível) que substitui a presença de quem se ama, de quem falta para conversar, discutir, afagar, ajudar nas pequenas coisas da vida que precisam do contributo presencial do “outro”.

Indiscutivelmente, somos um país de emigrantes. De tal forma, que (quase) todos nós temos alguém, pai, mãe, filhos, netos, primos, tios, amigos e outros mais, que por lá andam, de quem sentimos ausência, saudade, falta. Saibamos estar à altura do seu sacrifício e respeitá-los sempre. Sem preconceitos, sem invejas, sem falsas superioridades …

Não TAP os olhos. “Porque o seu dinheiro voa” …

Andamos todos muito preocupados em “passar entre a chuva sem nos molhar”, isto é, ver se escapamos ao contágio por aquilo que os especialistas chamam de “novo coronavírus” ou “covid-19” e nem nos damos conta que o mundo continua a girar e os outros problemas da sociedade precisam de ser resolvidos, sendo que muitos deles nos dizem respeito de uma forma ou de outra. Distraídos e preocupados com a pandemia, nem percebemos que alguém vai tomando decisões importantes para todos nós, usando para o efeito precisamente o “nosso dinheiro”. E foi nesta (quase) apatia geral que fomos ouvindo notícias de que a “transportadora aérea nacional”, onde o estado já enterrou muito dinheiro para ser dono de metade, e estranhamente sem poder mandar em nada, precisava de mais uma injeção de mil e duzentos milhões de euros para não se afundar, ou melhor, para não deixar de “levantar voo”. E a quem veio pedir? Ao estado, claro está que, apesar de falido e com uma dívida que colocará um pesado jugo ao pescoço dos nossos filhos e passará de geração em geração muito para além dos seus trisnetos, arranjou maneira de ficar a dever mais. Os governantes defendem que o país não a pode deixar “ir ao charco”. Terão receio de que, na sua falta, vamos ficar apeados e só podemos andar de bicicleta? Provavelmente até dava jeito para acabar com a obesidade infantil …

O ministro das infraestruturas, no seu estilo “trauliteiro” de “ou vai, ou racha”, insiste que “é uma empresa indispensável para o país” e que “Portugal não pode perder esta companhia de bandeira”. E num tom bruto com tiques radicais, ameaçou com a nacionalização da empresa se não houvesse acordo com os privados. Porque, homem que é homem, é assim mesmo e não tem medo de arriscar (e perder) “o dinheiro dos contribuintes” para comprar mais uma boa parte da companhia falida. Aliás, os “pagadores do costume” nem reclamam … Não foi necessário nacionalizar, mas a alternativa não vá ficar muito mais barata. Para já, são mil e duzentos milhões de euros “a levantar voo” e “ainda a procissão vai no adro”. E depois? Logo se verá, porque “não há quem TAP este buraco”. Não tenhamos ilusões. Em 2019, no ano em que houve mais passageiros que o habitual, os resultados foram muito … negativos. E de que maneira! Mais de 100 milhões de prejuízo. Ora, se num ano bom deu no que deu, nos anos maus que aí vêm, vai ser o bom e o bonito, não? Talvez um “buracão” maior? E o povo? Que o TAP … O argumento do ministro, do governo e políticos de quase todos os quadrantes, perfeitamente alinhados, é de que “Portugal não pode perder a TAP”. Eu diria que “a TAP é que não pode perder Portugal”, porque é o seu principal financiador, seja para pagar viagens, seja para cobrir os prejuízos.

Lá vai o tempo em que eu cuidava de voar na companhia, mas não sei há quantos anos já não assento “o rabo num dos seus aviões e não é por isso que me vou sentir menos português. A concorrência hoje é grande e as agências de viagens selecionam em função do interesse dos clientes. É por serem melhores as propostas de outras empresas que com elas tenho viajado nos últimos anos. E vivo bem com essa “traição”. Ao ver um debate sobre esta “tomada” de mais uma parte da empresa pelo estado, que passa a ser dono de 72,5%, perguntava-me: – Qual é a minha vantagem em viajar na TAP? Tenho desconto pelo facto de ser português? Não! Tenho algum tratamento especial por ser português do norte (e contribuinte da empresa)? De maneira nenhuma. E há direito a uma bebida extra, a desconto nos aperitivos ou nas vendas a bordo? Zero, nada, nicles!!! Pelo contrário. Às vezes até me sinto discriminado quando a hospedeira de bordo me fala em inglês, como se eu tivesse cara de “beef” … Já me basta o Algarve …

Mas, sejamos positivos: nem tudo é mau. Com os privados reduzidos a uns míseros 27,5%, quem passa a mandar é o estado, se é que desta vez vai mesmo mandar! Então, existirão grandes oportunidades para “gestores públicos” a nomear pelo governo, seja este ou o que vem a seguir (ou até pelo partido que lá estiver no momento). E podem ser bancários, filósofos, médicos, escriturários, sindicalistas, atores ou artistas de circo de formação que, com toda a certeza, serão bons ou excelentes “gestores públicos”, altamente capacitados para gerir esta ou outra TAP qualquer, desde que sejam filiados ou simpatizantes …

Infelizmente, o historial de gestão das empresas onde o estado está metido não é nada bom, longe de outros exemplos que merecem ser copiados. Ainda hoje vi a notícia que anunciava a saída de um gestor português de topo, no próximo ano, do Lloyds Bank, em Inglaterra. A partir de 2008, durante a crise financeira, este banco sofreu grandes perdas, levando a que o estado inglês tivesse entrado no seu capital e injetado vinte e um mil milhões de libras. Sob a boa liderança desse português, seis anos depois o Lloyds Bank devolveu o total do valor ao estado e um adicional de novecentas mil libras, voltando a ser um banco privado. Estaria a aplaudir se o estado viesse a fazer o mesmo com a TAP, pois a sua missão não é gerir empresas de aviação, como não o é com bancos. E a que assistimos em relação ao BPN e ao Banco Espírito Santo? As injeções de capital foram reforçadas várias vezes, mas esse dinheiro dos contribuintes nunca foi nem será devolvido ao estado. Por incompetência? E à custa de quem? De nós, contribuintes. 

A TAP foi um sorvedouro de dinheiro e tudo indica que continuará a ser. Dizem que os mil e duzentos milhões de euros anunciados são só o início de uma injeção continuada e perdida para sempre (o próprio primeiro ministro já nos foi avisando para lhe dizermos adeus), como no Novo Banco, um buraco negro sem fundo que engole o dinheiro todo que lá se mete, sem devolver nada. Por isso lhe digo: “Não TAP os olhos, porque vamos todos pagar e voltar a pagar … já que não há dinheiro que o TAP” … 

Recebi hoje esta sugestão: “Com o investimento que os contribuintes portugueses fazem constantemente no Novo Banco, a ideia de tomar a maioria do capital ou nacionalizar a TAP fará sentido se a fundirem com aquele. E então, sim, haverá um grande slogan publicitário para pintar nos aviões, um argumento de peso para nos confortar: 

                NOVO AIR BANK – Porque o seu dinheiro voa”!!!

Curar um mal … e arranjar outro …

Algumas das recordações de criança e jovem adolescente que tenho prendem-se com as “mezinhas caseiras” com que o cidadão comum, especialmente as mulheres, tratavam algumas “maleitas”, doenças e indisposições. Era vulgar “talhar-se as dadas”, “coser o pulso” ou até “benzer um bijego”, comer hortelã com o caldo verde para combater as lombrigas e “levantar a espinhela” como me fez a minha avó no dia em que me queixei de uma dor “na boca do estômago”. Para aqueles que “bebessem acima da conta” ou “comessem até lhe chegar com o dedo”, o que quase só acontecia em almoços de casamentos – o “dia de tirar a barriga de misérias” –  mais hora menos minuto, o mal estar do estômago tornava-se insuportável. Era preciso aliviar a pressão na barriga e a forma mais comum de tirar o incómodo que isso ocasiona era provocar o chamado “vómito induzido”. Para isso, bastava “meter os dedos na goela” e, para a maioria das pessoas, funcionava de forma imediata. Dizem os técnicos que os dedos estimulam um nervo que percorre o pescoço e este, por puro reflexo, induz o vómito. Ainda vi isso em duas ocasiões com dois homens que comeram, comeram e comeram até não poder mais. Mas, como ainda não tinham saciado o seu desejo psicológico de comida, nesse tempo de difícil acesso, num canto do quintal esvaziaram o “depósito” naturalmente e, na verdade, depois de aliviados, voltaram ao repasto … e à luta. 

Confesso que nunca o consegui fazer, apesar de o ter tentado em dois momentos quando me parou a digestão. Acho que não sou capaz de chegar com os dedos ao ponto da goela onde está o tal “botão” que despoleta o vómito. Provavelmente engoli o meu “botão” e não tenho como o fazer ….

Entre os melhores tempos da minha vida estão sem dúvida os cerca de nove meses (e não foi para ter parto nenhum) que vivi em Angola, entre Luanda, Catete, Malange e a Baixa de Cassange. E foi por pouco que não me tornei um “retornado” … Depois de passar algum tempo em Malange em trabalho de campo, regressei a Luanda para efetuar algumas diligências no Instituto do Algodão de que dependia e fiquei alojado na Pensão Lusitânia, junto ao Mercado de S. Paulo, onde se hospedava também o meu colega Zé Teixeira e o amigo e conterrâneo Zé Duarte que ali estava a cumprir serviço militar. Um trio de Zés… Apesar de se comer bastante bem na Pensão, que servia sempre sopa, dois pratos e sobremesa com tudo à descrição, no final do jantar e sistematicamente, um de nós lançava o mote: “Vamos ao cinema”. E os três rumávamos em direção à casa de espetáculos mas, ao fim de dez ou vinte metros, também era certo e sabido que outro dava novo palpite: ”Sete escudos teus, sete escudos meus e sete escudos aqui do Zé, dão para muito camarão e muita cerveja. Vamos para a Baixa…” E o cinema passava à história dando lugar a uma noitada de cerveja e camarão numa esplanada no meio do jardim, ainda com o jantar por digerir… Loucuras de gente com pouco mais de vinte anos e, talvez por isso, com pouco menos juízo.

Alguns dias antes da data prevista para o embarque, durante o jantar disse aos dois: “No regresso ao continente vou levar uma coisa que não trouxe… “E o que é que vais levar”, perguntou um deles? “Uma grande constipação”, respondi. “Nem de propósito”, disse o Zé Duarte. “Tenho um remédio que te tira a constipação num instante. Mandaram-me de casa uma garrafa de aguardente e vai ser a tua cura”. E ficou logo ali combinado efetuar o “tratamento” depois de regressarmos da habitual ronda do camarão e cerveja. Assim, quando voltamos, vestimos os pijamas e sentámo-nos na cama. O Zé Duarte tirou a garrafa da mala, abriu-a e pô-la a girar, de mão em mão, de golada em golada. A conversa, intercalada com goles de aguardente, fez com que a garrafa chegasse ao fundo. Já preparados, fácil foi entrar na cama e adormecer. Porque será que foi tão fácil???…

Quando acordei na manhã seguinte, a constipação tinha desaparecido por completo, mas, em contrapartida, parecia que tinha o estômago a arder como se tivesse engolido fogo. Tive de me agarrar à barriga e apertar, para dar algum aconchego. Foi nessa figura que apareci no Instituto, com um ar sofredor e a segurar o estômago. Um dos funcionários ao ver-me naquele estado quis saber o que se passava e tive de lhe contar a história do dia anterior. Quando acabei, disse-me que tinha uma receita para resolver o problema “enquanto o diabo esfrega um olho”: “Duas aspirinas tomadas com uma Quick gelada (a Quick era uma espécie de Seven-up angolana). Mas, atenção, precisa ter a casa de banho por perto” …

Como estava atrapalhado e com aquele fogo que não parava de me queimar, não perdi tempo. Saí do Instituto, fui à farmácia comprar as aspirinas e entrei no café mais próximo. Antes de pedir a Quick, fui ver onde ficavam as casas de banho por precaução, pois não queria “chamar pelo Gregório” ali no meio do café. Depois, mal engoli os comprimidos com uns goles da Quick, fui andando para o WC. E ainda bem, pois já tive de correr para não “lançar a carga ao mar” antes de chegar ao lavatório… Na realidade, a lavagem foi rápida e completa. De tal forma que, minutos depois, já tomava o pequeno almoço ali mesmo no café, como se nenhum mau estar me tivesse afetado… 

Nunca mais estive em situação de precisar desta “receita milagrosa” e só sei o que o funcionário do Instituto me disse e o resultado da única vez que a pus em prática sendo eu a cobaia. Pela experiência vivida, resultou muito bem e recomendo-a a quem está indisposto por falta de controle nos comes e bebes ou por “algo que lhe caiu mal” e está a precisar de “deitar a carga ao mar”. É uma receita a ter em conta por ser fácil, rápida e eficaz. E não tem de pagar consulta …  

Vivemos fora de horas …

São duas da manhã. Estou com a televisão e o computador ligados e ora deito o olho a uma como o sentido ao outro. A Luísa, hipnotizada pelas imagens que passam na televisão, não olha para o lado. Paro e penso que, em criança, neste momento, já teria dormido, pelo menos, cinco horas. Eu e a família. Depois de brincar na rua e da minha mãe conversar com os vizinhos à porta de casa, às dez da noite já estava na cama. Aliás, no inverno ainda ia mais cedo. Não havia televisão. Só no quarto dos meus pais é que “morava” um rádio grande, mas já não era hora de ouvir a Emissora Nacional nem o Rádio Clube Português. E até a eletricidade (nas casas que a tinham) àquela hora baixava de potência, dando uma luz fraca e trémula, quando não ia abaixo de vez. Em muitas ocasiões, tínhamos de recorrer às velas ou então aos candeeiros a petróleo. Dormíamos em sintonia e ao ritmo do relógio natural, noites de sono profundo e repousantes. 

Assim foi anos a fio, até o pai trazer para casa uma caixa de cartão pesada e de grande dimensão, onde vinha essa inovação tecnológica, sonhada e desejada: um aparelho de televisão. Foi um momento de euforia para toda a família porque já não tínhamos de ir ao Café Avenida, em Lousada. Só não sabia nesse momento que a “fatura” a pagar viria depois. A partir de então, deixei de ter o sono em sintonia com a natureza e o relógio interno, sendo todos os dias retardado até ao final das transmissões. Nos primeiros tempos a programação terminava relativamente cedo, por volta das onze da noite e, por isso, nem se notava muito, apesar de ficarmos “agarrados” e de olhos fixos no ecrã para ver tudo, desde o telejornal aos programas de variedades, das noites de teatro (em direto) às “Charlas Linguísticas” e mesmo às “Conversas em Família” do Marcelo Caetano. A televisão dominava a nossa atenção de forma avassaladora. “Consumíamos” tudo. Até a publicidade, com anúncios mais ou menos originais. 

Mas, pouco a pouco, os horários foram-se alterando, no princípio alongados até à meia noite e uma da manhã, para descambarem nas atuais emissões contínuas com uma vasta e variada gama de canais, programas e tentações, que incentivam constantemente a que façamos parte das audiências, (quase) não nos deixando tempo para dormir. E para isso, inventam os programas mais incríveis, usando criatividade, originalidade e talento, às vezes até, estupidez e burrice. Porque vale tudo para conquistar a atenção de todos. E nós, acomodados no sofá, alinhamos (quase) sempre, se bem que alguns programas mais não são do que uma boa forma de nos chamar “idiotas”. Se antigamente as sessões ou noites de cinema na televisão começavam e terminavam entre as 21 e as 23 horas, hoje quase nunca se iniciam antes da meia noite, normalmente até bem mais tarde, para terminar às tantas da madrugada. Para quem gosta de cinema, é uma tentação enorme que se paga com uma noitada. 

E as consequências? É claro, transformaram-nos em “corujões” e os especialistas clínicos dizem que temos chances de morrer mais cedo do que os “madrugadores”. Tantas são as noitadas que, muitas vezes, sinto que “ando a tirar o curso de vampiro” …

Os seres humanos são animais diurnos desde o tempo das cavernas: trabalham de dia e descansam de noite. Daí que, aquilo a que alguns cientistas em linguagem simples chamam de “relógio biológico”, que existe em todos nós, faz com que ao acordarmos depois de uma boa noite de sono tenhamos mais energia e, quando desaparece o sol e a noite cai, tendemos a ter sono, o que vem de encontro ao facto do sono noturno ser o mais reparador. Afirma-se ser importante esse respeito pelo “relógio biológico”, pois há uma relação direta com o sol e a importância da quantidade de tempo que se passa sob a ação da luz natural. Dizem até que o nosso “relógio” foi feito para “conversar com ele …  

No entanto, com a evolução da sociedade, a natureza foi contrariada. Ao inventar a lâmpada elétrica, Thomas Edison mudou por completo a relação da espécie humana com a noite e o sono. Ao fazer da noite dia, trocou-nos os horários de sono e passamos a andar desajustados, porque continuamos programados para descansar de noite. É o que dá os muitos milhares de anos de evolução da espécie …

Mas, pela necessidade crescente de trabalhar e viver “fora de horas”, foi necessário refazer horários, alterando muitas vezes essa ordem natural, para ajustar as coisas por forma a que o “relógio biológico” fosse ficando em sintonia com o “relógio social”. E foi acontecendo gradualmente. A noite, que era quase só para descanso do homem, foi sendo aproveitada de forma contínua e continuada para trabalho, entretenimento, estudo e outras atividades do ser humano, fazendo com que este tenha, em função das suas atividades, ajustado o seu “relógio interno” ao seu “relógio social”. Assim, muitos de nós fomos “reprogramados” e passamos a estar divididos em três grupos: os madrugadores, os notívagos e os mistos (a maioria). 

Posso dizer que, nesse aspeto, fui feliz, por ter vivido ainda de acordo com o meu “relógio biológico”, deitando-me à hora que ele dizia ser de sono e acordando quando o determinava, em regra ao nascer o dia para usufruir o mais possível da luz solar. E, não tenhamos dúvidas, que as pessoas que (ainda) podem respeitar os seus ritmos internos, dormindo ou estando acordados, são mais felizes, se bem que já não há muita gente que se possa gabar disso. É que, quem comanda e dá “corda” ao nosso “relógio”, é (quase) sempre a sociedade.

Eu disse que “fui” feliz ao viver ao ritmo da natureza … quando era jovem. Mas esse ritmo foi sendo trocado sem que o meu organismo acompanhasse totalmente essa mudança. E hoje, mais que nunca, ao deitar-me diariamente entre a uma e as três da manhã por “força das circunstâncias”, sinto o meu velho “relógio” reclamar por não estar a viver em sintonia com ele, num “atraso” que chega a ser de horas. Se eu chegasse assim atrasado quando ia trabalhar e tinha patrão, não tenho dúvidas: era despedido. Por isso, já me convenci que um dia este “relógio biológico” cansa-se dos meus “atrasos” e vai mesmo despedir-me e “pôr-me no olho da rua” …