Monthly Archives: May 2014

Um monumento com… focinho e rabo

Não sei por onde começar, se pela cabeça ou se pelo rabo, pois proponho-me defender, aqui e agora, uma homenagem pública, com estátua e tudo, ao PORCO, esse herói nacional que nunca recebeu o reconhecimento devido.

É certo que já existe um monumento com aquilo a que chamam “a porca de Murça” mas, com franqueza, não há confirmação oficial por nenhum veterinário de que se trata realmente de uma porca. Não sei se foi por vergonha, dado tratar-se de homenagear a mãe de todos os “porcos” que andam por aí, ou por falta de jeito do escultor. Por isso, esse de Murça não conta e “está na hora da matança”, que é como quem diz, de matar essa falha.

Para além do mais, está na moda fazer estátuas a porcos, como é o caso de uma recentemente inaugurada em Cincinnati, nos Estados Unidos, em homenagem a… Lady Gaga, que já se tornou local de romagem obrigatória. Ora, os americanos não são mais do que nós e por isso temos o mesmo direito a um monumento ao bicho.

Também, desde que George Clooney adoptou o porco Max como animal de estimação, várias mulheres do mundo artístico como Paris Hilton e Reese Witherspoon fizeram o mesmo. Imagine-se uma dessas atrizes que tanto admiramos pelos seus “atributos”, agarrada a um “porco”… E parece que o bicho, na sua qualidade de mascote, tem direito a dar-lhe umas “focinhadas”… Será por isso que não falta para aí gente que veste a pele de “porco”?

Mas, vamos aos argumentos credíveis que me levam a fazer esta proposta de homenagem, para angariar (financiamento? Não…) partidários e encontrar apoios a tão grande empreendimento.

O porco é a máquina de reciclagem perfeita, melhor que as centrais de tratamento de lixo e as incineradoras. Sendo o antepassado dos caixotes do lixo, com vantagens, fez com que eu me decidisse a comprar um para substituir o balde do lixo. Até já sei qual o tamanho do leitão que me cabe no armário debaixo da banca. Para assegurar que não haja maus cheiros na cozinha, vou fazer uma ligação direta das traseiras do bicho ao esgoto. Além de digerir todo o lixo orgânico, permite ainda que me dê ao luxo de fazer um “figurão” quando tiver convidados a jantar cá em casa. Perto do final, berro: “Oh Maria, traga o leitão”. E quando os convidados “afiam” o dente, a empregada entra na sala com o leitão preso a uma coleira para… apanhar as migalhas debaixo da mesa.

O porco tem contribuído fortemente para a redução do número de acidentes na A1. Como? Obrigando os automobilistas a fazerem uma paragem na Mealhada para “descansar” e “encher a mula” com “leitão à Bairrada” (o que também dá felicidade gastronómica a milhares e milhares de portugueses). E está provado que, enquanto ali estão parados, não se “estampam”, a não ser que a melhor amiga da mulher os veja ali com outra. Assim, claro, é “acidente” com toda a certeza…

O porco foi durante muito tempo a principal fonte de proteína do povo da região, pois em todas as casas, da mais rica à mais humilde, criava-se o “porquito” para matar e comer durante o ano. Mas, apesar desse contributo generoso, acabou denegrido e rejeitado por médicos e nutricionistas, excluído das dietas alimentares, como se fosse o culpado do excesso de colesterol e das nossas “banhas”, ele porco que tanto fez por nós. E agora? Deixamos de deliciar-nos com os rojões, o lombo assado, a orelheira, o presunto e os salpicões? Ou passamos a comê-lo às escondidas para não aturar tais conselheiros? É que me interrogo porque será que noutros tempos os porcos muito gordos não nos faziam mal e, agora, até os magros são carne que tais técnicos não recomendam? Está na hora de o reabilitarmos.

E quantos milhares de políticos os porcos não ajudaram a eleger, ao servirem de “isca” para atraírem e conquistarem os votantes através da “pança cheia” de porco no espeto? Não tem essa legião de gente uma dívida de gratidão para com o porco? Não têm a obrigação de lhe darem um lugar (atenção que não estou a pedir para lhe arranjarem emprego no governo ou numa autarquia qualquer…) de relevo no meio duma dessas muitas rotundas de que se encheu o país? Não seria mais original lá colocar a estátua de “um porco a coçar a barriga” do que pôr uma fonte, coisa banalizada que na maioria já nem “esguicha”? E que tal uma fêmea pois, além de homenagear o porco, simbolizava o poder como Bordalo Pinheiro o viu: Uma porca com muitas tetas onde todos querem mamar (mas que não chega para todos…!!!)

Mais, o porco serviu de “modelo” para muitos seres humanos que nós batizamos de “porcos”. Sem ele, como chamaríamos a esse tipo de gente? Elefante? Boi? E os nomes de componentes do porco que o povo usa na rotina do dia a dia como “ela manda cá um pernil…” , “que grande rabo…” e outros um pouco mais ousados?

O porco é ainda o melhor símbolo da sociedade multirracial que somos, havendo-os brancos e pretos, tendo-se mesmo criado os mestiços tal como nós o fizemos em África. No entanto, enquanto o “porco preto” vive em grandes herdades e em pocilgas de luxo rodeado de mordomias, tal é o seu valor comercial, o “branco” atravessa uma grave crise de mercado, vendido ao desbarato nos supermercados e com cotação tão baixa que, que qualquer dia, já não tem bolota para comer nem “pocilga” para se abrigar…

E poderia argumentar mais na defesa do monumento ao animal que tem feito muito por nós, mas não vou “gastar mais latim”.

Só mais uma coisa: Vamos lá pôr o porco em cima do pedestal porque, sendo porco, faz menos m… que muitos que lá estão e que se dizem não o ser…

Já´não há espaço para os velhos…

Conheço desde a escola primária a história de um filho que, não querendo cuidar mais do velho pai, levou-o ao alto de um monte para ali o deixar morrer, entregando-lhe uma manta para se abrigar nos últimos dias de vida. Quando se preparava para ir embora o pai pegou numa faca, cortou a manta ao meio, dobrou-a e entregou-lhe uma das metades. “Para que quero eu a metade dessa manta”, pergunta-lhe o filho? E o pai respondeu-lhe: “Para abrigares o corpo, quando um dia o teu filho te vier deixar aqui”.

Para além da sua carga simbólica, parece uma história ultrapassada que não faz sentido, pois nenhum filho nos dias de hoje iria deixar o seu pai no alto do monte, só e ao rigor do tempo, para morrer. Mas será assim tão absurda? Será mesmo?

A partir do momento em que nasce uma criança, os pais nunca mais se libertam dessa responsabilidade e irão ajudar o filho enquanto tiverem força, vida e meios para o fazerem, independentemente daquilo em que ele se torna, da sua conduta, da sua moral, do seu comportamento como filho. Mesmo dizendo tantas vezes, como dizem, que “se o meu filho fizesse isto… nunca mais queria saber dele”. A verdade é que, se isso acontecer, engolem tudo o que disseram e lá estão a estender a mão para o ajudar. E todos os dias vemos exemplos desses, filhos drogados, ladrões assumidos, vadios, irresponsáveis, criminosos, que têm sempre nos pais um porto de abrigo, um apoio na necessidade, uma última reserva.

Uma das imagens que retenho na memória tem a ver com aquilo que disse uma mãe quando o filho, malfeitor crónico, foi novamente preso. -“Quem me dera ser como as cadelas, ter os filhos, larga-los e nunca mais voltar a vê-los nem a preocupar-me com eles”.

Numa sociedade cada vez mais competitiva e individualista, os idosos são deixados ao abandono, negando-se-lhes a dignidade, quando não a própria vida. É a velha história da sociedade do bem-estar social, cujo interesse principal assenta na lei da selva pelo lucro, sempre acima do bem-estar social. Tudo muito bem organizado, produtivo, limpo e bem cheiroso… para quem? Quem usufruiu? Nesta selva competitiva, cada um preocupa-se consigo mesmo, desenraizado do lugar de onde veio e das suas origens.

Em Portugal a família ainda é o principal suporte dos idosos, até por falta de respostas sociais formais, fatores económicos e hábitos culturais. Mas o seu abandono já atinge proporções alarmantes, que nos deviam preocupar até porque, nos próximos anos, a população sénior vai duplicar.

O abandono na velhice é um sentimento de tristeza e solidão provocado por perdas. O que o idoso quer em vida é o acolhimento, a presença e o amor dos seus, poder compartilhar experiências e os conhecimentos que acumulou. Mas muitos, depois de tudo o que fizeram, de todo o amor e carinho que dedicaram aos filhos, recebem em troca abandono, uma vida de solidão e mesmo de maus tratos, no momento em que passam por grande fragilidade física e mental que é a velhice. É que, muitas vezes, a família está longe demais, física e afetivamente, e tende a excluir aqueles que são tidos como estando a mais, incómodos.

Para resolver este problema social, julgo ter encontrado uma solução a contento das partes. Não, não proponho que se larguem os velhos no alto do monte, ao “Deus dará”, com uma manta às costas. Isso era na Idade da Pedra. Agora tudo tem de ser mais evoluído, sofisticado e as soluções têm de ser adequadas aos tempos modernos.

A par dos “ecopontos”, “roupões” “ecocentros”, “pilhões”, “vidrões” e muitos outras coisas terminadas em “ões” que se espalham por aí “a torto e a direito”, numa batalha pela reciclagem, há que distribuir também “EcoVelhos” para recolher todos aqueles idosos de quem as famílias se querem ver livres (depois de os “aliviarem” do peso dos bens materiais como o dinheiro e as propriedades, que seriam uma carga desnecessária para a “viagem”). Para tal, poderão ser aproveitados os autocarros fora de serviço (também eles velhos), tanto pela sua dimensão como por virem já equipados com bancos, destinados aos velhos que ainda andem “de empurrão”. Para os outros, que só já lá vão em cadeiras de rodas ou de maca, o melhor é construir “EcoVelhos” enterrados com a boca ao nível do solo, para ali serem despejados como se faz com os carrinhos de mão (que também poderão ser aproveitados para transportar alguns), despejando-os “pela borda fora”. Ah, estes pontos de recolha de velhos devem localizar-se fora das localidades, tal como os canis municipais, para que os seus ocupantes não incomodem a vizinhança durante a noite, a ladrar, perdão, a gritar. Claro que só permanecerão “Ecos” o tempo indispensável para serem recolhidos e conduzidos a uma central de “reciclagem”, moderna e eficiente, onde todas as partes com algum interesse serão retiradas para utilização específica, tais como cabelo (naqueles que o têm) e qualquer tipo de próteses, em especial as de platina. Ouro já não haverá pois deixou de ser usado no fabrico de dentes. Os nazis é que fizeram esse aproveitamento nos campos de concentração. E o resto? O que se faz às “carcaças”? O mesmo que se faz aos carros velhos depois do sucateiro lhe retirar as peças que ainda possam ser úteis: Enfiam-se numa prensa e comprimem-se, para ocuparem pouco espaço.

Porque, ao que parece, os velhos ocupam o espaço que outros já estão a reivindicar… Ou talvez não seja o espaço mas sim os bens, esse malfadado deus do materialismo…

Cães e homens: Quem abandona quem

Uma senhora encontrou na berma da estrada três cachorros enfiados dentro de um saco de plástico, atirados para ali a partir de um automóvel, por um inconsciente, para não lhe chamar o que seria mais justo: Energúmeno. A sociedade, para reconhecimento da “nobreza” do seu ato, deveria premiá-lo com uma experiência semelhante: Enfiado nu dentro de um saco, bem amarrado, e atirado por uma ribanceira abaixo no alto da serra, se possível com o carro em grande velocidade para dar “lanço”. Só assim estaríamos seguros de que nunca mais voltaria a repetir tal façanha.

Os cães foram entregues a uma cuidadora residente em Pias, que os recebeu, tratou, e que está a fazer a promoção da sua adopção. Ainda há quem sonhe e faça o mundo melhor. Bem haja.

O abandono de animais continua a ser uma chaga da sociedade, algo incompreensível no século XXI, um mau indicador cultural, um problema que a educação já deveria ter resolvido ou, pelo menos, atenuado. Mas não, os sinais são de agravamento.

Se decidir ter um cão, por compra ou adopção, deve ter consciência de que ele viverá cerca de quinze anos. E que, ao fazê-lo, é como se estivesse a aumentar a família, porque passará a ter para com ele um conjunto de responsabilidades: Dar-lhe de comer, de beber, banho, tempo e carinho. Ele vai crescer, precisará de treino, de ser levado a passear, ter uma vida saudável. Mais, será sua a responsabilidade de o tratar na doença levando-o ao veterinário, e até mesmo de limpar a porcaria que ele faz. Sim, porque ele vai fazer porcaria como qualquer animal, aliás, como nós. E a limpeza dessa “coisa” é tarefa sua, goste ou não goste, não dele.

Todos sabemos o quanto as pessoas adoram “ter” um cão, muito especialmente de raça e com “pedigree”, por capricho ou para fazer inveja à família, amigos e vizinhos. Ou para fazer a vontade aos filhos que adoram cães. Mas, ter um cão é muito mais do que exibi-lo, porque implica assumir compromissos. Por isso, antes de levar um cão para casa pergunte-se se deve fazê-lo, se está preparado para aceitar tal responsabilidade. Não o faça de ânimo leve mas sim com consciência das implicações que isso acarreta, porque poderá evitar um abandono.

É que a compra ou a adopção de cães tem de ser uma manifestação de solidariedade, de responsabilidade e, mais ainda, de amor pelos animais. E não há dúvida nenhuma que por isso mesmo…. não é para todos.

Pode ter a certeza que há uma diferença importante entre o Cão e o Homem. Se recolher um Cão abandonado e lhe der de comer, ele não lhe morderá. Se o fizer a um Homem, não pode ter tanta certeza…

Adoptei uma cadela com três anos de idade, cheia de traumas, medos e carências diversas. Já fizemos um certo caminho, tendo eu recebido dela mais do que lhe tenho dado. É uma excelente companhia, boa ouvinte até porque não me faz perguntas nem me critica, o que aumente a minha autoestima e recebe-me sempre com manifestações de alegria e prazer independentemente de estar bem ou mal vestido, a pé ou de carro ou daquilo que tenho no bolso. Mais ainda, não se queixa da sorte, nunca se mostra insatisfeita e nem é dominada pela mania de possuir coisas. Que sorte a minha…

Deixa-me o jardim esburacado e espalha fezes que me queimam a relva, mas não me magoa nem me trata mal. Larga pelo por todo o lado e deixa a casa marcada com as patas sujas e molhadas, mas fica horas seguidas enrolada aos nossos pés. Suja-me a roupa quando saio bem vestido, mas está sempre disponível para me fazer companhia sem se queixar se é muito ou pouco tempo. Levo-a a passear, mas isso é tão importante para mim como para ela. E sempre que chego a casa e abro o portão, faça chuva ou faça sol, vem-me receber de rabo a abanar, “dizendo” que está feliz por me ver.

O homem é responsável pela gestão da convivência entre ele e os animais, com equilíbrio. Mas, enquanto os animais irracionais nos maravilham com atos inteligentes e enternecedores, os homens surpreendem-nos muitas vezes com atitudes irracionais e… desumanas.

É curioso que ouvimos de vez em quando algumas pessoas utilizarem a palavra “cão” para insultarem alguém. Não compreendo pois, que se saiba, somos nós, humanos e racionais, que abandonamos os cães, como os três cachorros da história, quase sempre em nome do comodismo, de não se querer assumir as responsabilidades devidas. Em contrapartida, nunca se soube, nem foi notícia, que um único cão, um só, tivesse deixado o dono de livre vontade, por mais miserável que fosse a vida que com ele partilhava. Daí que, como insulto, talvez seja mais correto chamar “homem” ao alvejado. Se ele for inteligente, entenderá…

Soube que se está a constituir em Lousada uma associação com o objetivo de criar uma infraestrutura para a recolha de animais abandonados e promoção da sua adopção. Excelente notícia para eles, “os renegados da sociedade humana”, e para todos aqueles que gostam de animais, porque têm uma oportunidade para aderirem e ajudar. Mas, desde já deixo o aviso: Salvar animais não dá estatuto, promoções, visibilidade, nem recompensas materiais. Aliás, os animais saberão respeitar a sua privacidade pois não vão espalhar a notícia de que foram salvos por si, nem nos jornais nem na televisão nem noutro meio de comunicação. Por isso, continuará anónimo para o público em geral, o que quer dizer que terá de o fazer a troco de nada, já que não vai receber aplausos, não vai ser chamado de herói nem lhe servirá de curriculum nem de trampolim para um qualquer lugar na vida política.

Eu disse “a troco de nada”? Desculpem, não é verdade, porque vai receber muito: Muitas alegrias, alegrias por salvar vidas, que farão de si um ser humano melhor e mais feliz…

Coisas que não têm preço…

Os sabores da infância e… os enganos

Comprei um frasco de “picles” para satisfazer um desejo, mas a verdade é que são duros e insípidos e não têm nada a ver com os pimentos curtidos em vinagre tinto caseiro que comia em casa dos meus pais, geralmente a acompanhar os rojões de porco, no tempo em que a carne de porco era rainha e senhora à mesa.

Os meus pais compravam sempre dois bácoros que criavam numa pequena corte na parte traseira da casa, alimentados com “batatas porqueiras” (as batatas miúdas que hoje custam três vezes mais que as outras) e a “lavagem”, os restos de couves e de todo o tipo de legumes na cozinha, deitados para um balde ao lado da banca (correspondente ao atual balde do lixo), a que se juntava farelo e água.

O porco era quase um subproduto, resultante do aproveitamento integral dos desperdícios da cozinha e da horta. Quando começavam a crescer, colocava-se-lhes um “arganel” no focinho para não “foçarem” nem fazerem estragos, algo que muitos dos políticos de hoje precisava que se lhes pusesse nas “beiças” para estarem calados, não dizerem tantas asneiras e para… “comerem” menos.

Toda a gente da aldeia criava o seu porquito, fazendo tudo para que fosse o maior e mais gordo possível, tamanho esse que era expresso em arrobas (quinze quilos). Porco bom, de fazer inveja aos vizinhos, tinha de pesar mais de dezasseis arrobas e de ter uma camada de gordura no lombo com a altura de “uma mão travessa”. É que o porco gordo, não só era mais saboroso como alimentava a gente magra de então, em contraponto com os dias de hoje, em que o porco tem de ser magro para alimentar gente gorda. Como as coisas mudam com o tempo…

O senhor Cunha era o matador, o homem que durante muitos anos foi a nossa casa “tratar da saúde” do bicho. Com a ajuda de uns vizinhos, deitava e amarrava o porco na “cabeceira” de um carro de bois, lavava-lhe a zona do golpe e espetava um facalhão no bicho. Apanhava-se o sangue num alguidar de barro vidrado, para ser usado no fabrico das chouriças e no sarrabulho. Eu gostava de ajudar a queimar o pelo com pequenos molhes de “palha centeia” a arder e de assistir à abertura da barriga por onde eram retiradas as tripas.

Ficava pendurado numa trave da loja até ao dia seguinte, em que o senhor Cunha voltava para a “desfazedura”, o dia mais ansiado pois tinha direito a uma febra que ia logo grelhar no ferro quente do fogão, antes da rejoada “à maneira”. Era um dia de grande azáfama, a desfazer o porco, fazer os rojões, preparar a salmoira para as chouriças e salpicões, guardar a maior parte da carne na salgadeira embrulhada em sal, etc., etc..

Naquele tempo quase ninguém comia carne de vaca, essa coisa rara, sem paladar… Nunca se viram “rojões de vaca”, “salpicões de vaca” nem “presunto de vaca” (se bem que há “vitelas” com excelentes “presuntos”, antes só imaginados e hoje muito bem expostos, mas que serão para outras “refeições”). Ainda hoje tenho saudades dos rojões bem entremeados de então.

Comi muita carne da “caluba”, a carne gorda com “três ou quatro dedos de altura”, em pequenas fatias sobre um naco de broa, coisa impensável nos dias de hoje. Aliás, essa era a carne usada para “adubar” o caldo, a única comida da maioria das gentes da aldeia.

Era com broa, azeitonas, vinho e salpicão caseiro, quando não com presunto, que se recebiam as visitas, na generosidade da gente simples, como se de um grande manjar se tratasse, porque era de facto um manjar.

As facilidades e o comodismo levaram-nos a abandonar, pouco a pouco, a criação do porco caseiro, os restos dos legumes e de comida passaram a aumentar as pilhas de lixo e somos aconselhados a comer outras carnes que não esta. Sinal dos tempos…

No entanto, na tradição, no paladar e nos sentidos de muita gente ainda continua a existir esse desejo de “voltar a casa”, aos sabores da infância que ficaram gravados no cérebro, quando não no coração. E isso leva-os a procurar nas feiras e mercados tudo aquilo que se diz ser “caseiro”, em “busca do fumeiro perdido”, para satisfação desse desejo. Só que, nessa procura, nem sempre encontram gente séria que venda o que apregoa, pois há quem “venda gato por lebre”, enganando os ingénuos e incautos.

O Jacob (nome fictício) costuma ir a algumas feiras com roupa de quem anda a trabalhar no campo, para ser convincente, vendendo fumeiro “caseiro”. Já o faz há alguns anos e até tem “freguesia” certa para os seus presuntos e salpicões, ditos “caseiros”. No entanto, como é que alguém que cria dois porcos em casa, consegue dar resposta à procura de várias dezenas de presuntos? Como é que dois porcos têm tantas patas? Boa pergunta… Ou são de uma raça rara, com tantas patas como as centopeias ou… “aqui há gato”.

Não é difícil, pois não falta quem forneça carcaças de porcos de pocilgas industriais para serem “pintados” de caseiros.

Só é preciso ser-se convincente e vender-se uma imagem e a ideia da satisfação de um desejo. Tal como na política. E depois? Volta-se (ou vota-se) sempre, ainda que ao engano….