Monthly Archives: September 2013

Na crise sem festa, as festas sem crise

Ao acaso Na Crise sem festa, as festas sem crise Bessa Machado Da minha passagem por Angola há décadas atrás, uma das imagens que retenho é a dos funerais dos nativos.

Reuniam a família que vinha de todos os lados e passavam o dia a cantar, a beber vinho de garrafão de “capacete”, resultando sempre em bebedeira coletiva. Seria para festejar a vida do defunto ou por ter ele ido “d’esta para melhor”? A bebedeira era para esquecer a morte ou a morte o motivo para a bebedeira? Nunca o soube.

Anos mais tarde nas minhas andanças pelo desporto automóvel, desloquei-me à Bélgica para assistir a uma prova de ralicrosse. No domingo fui a um restaurante local e, ao lado da sala onde almoçava, havia um grande salão cheio de gente em traje de cerimónia, num grande banquete fervilhando de alegria e boa disposição. Por mera curiosidade perguntei ao organizador que me acompanhava, se aquilo era um casamento. “ Não, não, é o funeral de uma pessoa importante cá da cidade”, respondeu-me ele.

Já não havia muita coisa que me surpreendesse, mas achei estranho que a vigília da morte fosse motivo de festa. A minha cultura dizia-me que era um momento de tristeza pela partida de alguém, um silêncio de respeito pelo falecido. Quem estaria errado?

Reza a lenda que em 1245 o castelo de Celorico da Beira foi cercado por D. Afonso III, cerco esse que se mantinha há muitos dias na tentativa de que se rendessem pela fome. Quando os sitiados já quase nada tinham para comer, uma águia, ao sobrevoar o castelo, deixou cair uma truta que apanhara no rio Mondego. Ao ver na truta uma dádiva do céu, o alcaide mandou cozinhá-la, prepará-la com esmero e, quando todos pensavam que a ia comer, enviou-a aos inimigos que o cercavam, com o recado de que além de bons guerreiros também tinha bons mantimentos como aquele que lhe estava a oferecer. Perante truta tão apetitosa, os soldados do rei convenceram-se que lá dentro estavam bem abastecidos e levantaram o cerco. Como é que o alcaide, com o último manjar que lhe restava, conseguiu iludir os inimigos?

No Porto não se festejou a passagem do milénio com fogo de artifício como o fez a Câmara de Lisboa e um coro de críticas levantou-se na cidade contra o presidente de então. Face a esse descontentamento popular, na noite de reis houve uma sessão de fogo que terá custado uma fortuna, passando então o presidente de besta a bestial. Esqueceram-se os portuenses de um pormenor: Ele só queimou o dinheiro dos munícipes, não o dele.

Tenho acompanhado o fulgor e brilhantismo das festas da região, sabido dos orçamentos record de algumas e assistido às prolongadas sessões de fogo de que a minha cadela não gosta nada.

As Festas de Lousada são disso exemplo e não me recordo de um programa tão arrojado, completo, mobilizador e caro como nas deste ano, pelo que são devidos elogios à Organização, cujo empenho foi excepcional, elevando a fasquia a um nível muito alto, provavelmente demasiado alto. “Mas em que é que tudo isto está relacionado”, pergunta o leitor já aborrecido? É que, por mero acaso, enquanto decorriam algumas das longas sessões de fogo, estava eu a ver na TV debates, comentários ou mesas redondas sobre a grave situação económica do país, sobre as medidas de austeridade a que estamos sujeitos e as que ainda estão para vir, e dei comigo a pensar em como reagiria um “troikano” (habitante do planeta Troika) ao assistir a uma destas romarias.

Parece que o estou a ver de boca aberta e olhos arregalados, meio zonzo como quem não acredita no que vê, interrogando-se se este é mesmo o país que está à beira da falência e que só consegue pagar pensões e salários a funcionários públicos com o dinheiro do cheque vindo do seu “planeta”, que tem de continuar a fazer cortes de milhares de milhões de euros, enviar mais gente para o desemprego, com mais austeridade e pior nível de vida.

E, saindo do torpor em que se encontra, deve perguntar-se: “Mas será que estes patuscos estão mesmo em crise”? Sem beliscar o trabalho e a vontade de ir mais longe dos festeiros, a pergunta impõe-se: Estando nós já com o estatuto de “falidos”, numa espécie de “morte económica”, as festas não serão como que uma “grande almoçarada”, como no funeral na Bélgica, num hino à vida na vigília da morte? Ou então uma “bebedeira geral” para esquecer (com muitos jovens realmente bêbados) como nos funerais em Angola? Ou a “truta cozinhada com esmero” enviada a credores e mercados, para os convencer que estamos bem de vida e, por isso, podem levantar o cerco dos juros altos e dormir descansados porque lhes vamos pagar (se não for nesta vida é noutra)? Ou ainda uma “anestesia geral”, para não termos qualquer tipo de reação ao empobrecimento diário? Ou será que é mesmo assim que o povo quer, como no caso do fogo de artifício no Porto, pois com crise ou sem crise, como é ele sempre quem paga, pelo menos que haja festa?

Devemos manter as tradições a todo o custo, porque são parte da nossa cultura, aquilo que nos distingue neste mundo fotocopiado. No entanto, percebendo o bairrismo, orgulho e vontade dos festeiros em querer ir sempre mais além e vendo a continuada generosidade do “Zé”, o bom senso exige moderação e contenção nos gastos para sermos coerentes, devendo o esforço festivo ser proporcional à situação real do país e de cada um de nós. Senão, depois da “almoçarada”, um dia destes adormecemos todos com a “bebedeira” e não acordaremos mais, nem sequer com “as sessões de fogo”, por maiores que sejam as “girândolas”…

Os meus Heróis… do nosso dia a dia

Consideramos herói alguém que tem uma dimensão semidivina, algo entre os deuses e os humanos, e que representa a transcendência da condição humana com facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir – determinação, coragem, fé, força de vontade, paciência, etc..

Desde sempre as sociedades tiveram e criaram os seus heróis, nas suas múltiplas variedades, como os “super-heróis”, os heróis bíblicos, os heróis de guerra, os heróis olímpicos, os heróis populares, os heróis do acaso e tantos outros, até os anti-heróis e os “heróis” fabricados do tipo “big-brother”.

Também tive os meus, que foram mudando com a idade. Se em criança eram os “super-heróis” que me faziam sonhar, personagens de ficção dotados de atributos físicos e poderes extraordinários, desde o Mandrake ao Zorro, do Super-Homem ao Tintim, já na adolescência passei a idolatrar o Pelé e o Elvis, já para não falar de alguns jogadores do meu clube.

Mas, à medida que os anos foram passando, os meus olhos (e o coração) foram encontrando novos heróis, pessoas anónimas do dia a dia que foram capazes de atos de heroísmo enormes, de grande dimensão humana, só alcançáveis por quem realmente era extraordinário. Esses anónimos não eram nem são dotados de superpoderes, nem de invencibilidade, não usam armaduras nem capa nem espada. Não voam, não atravessam paredes, não disparam raios nem teias de aranha. Não são estrelas de futebol ou de qualquer outro desporto, nem do mundo do entretenimento, simplesmente gente em toda a sua humanidade, invisíveis aos olhos de quem só olha para muito longe ou para muito alto sem ver quem lhe está próximo.

A senhora Emília saiu da sua aldeia com a família para acompanhar o marido que foi trabalhar na barragem de Picote, em Miranda do Douro, no início dos anos sessenta. E por ali foi ficando, ali teve mais uma filha e gerou uma outra, até ao dia em que o seu marido foi à pesca, como lhe era habitual nos dias de descanso, e não voltou, sendo encontrado mais tarde afogado, entalado entre duas rochas onde teria caído. E, de repente, a senhora Emília vê-se com seis filhos e um sétimo na barriga, longe da sua aldeia e sem emprego nem condição económica.

Uma senhora amiga ofereceu-se para lhe ficar com a filha mais nova, mas ela respondeu com convicção: “Muito obrigado, mas quero que todos os meus filhos cresçam juntos e tudo farei para que não passem fome”. Na sua humanidade fez a coisa mais corajosa que uma mãe pode fazer: Amar seus filhos e dar-se-lhes por inteiro. A camioneta que carregou os seus parcos haveres de regresso a Lousada também carregou os filhos, a dor, a incerteza do futuro e o corpo do marido, clandestinamente, por não ter dinheiro para o fazer segundo as normas legais, já que quis que fosse a enterrar no cemitério da sua aldeia, próximo de si e das flores que iria colher e levar-lhe até ao fim dos seus dias.

Cumpriu o que disse àquela senhora que queria ficar-lhe com uma filha, trabalhando duramente como criada doméstica primeiro e empregada fabril depois, abdicando de si a favor dos filhos a quem se devotou, mas a quem nunca deixou passar fome, apesar dos tempos muito difíceis que atravessou. As dificuldades que teve de enfrentar sem qualquer apoio social e sem a ajuda do marido, que partiu prematuramente, foram bem mais difíceis e bem mais longas que as de qualquer atleta olímpico num jogo ou corrida contra o tempo, nunca tendo desistido daquilo a que se propusera, perdendo só a última das suas lutas, contra um cancro, já depois de ver todos os filhos criados e “arrumados”.

E a vida tem coisas muito curiosas, aquilo a que chamamos acasos ou coincidências, como aquela que viria a acontecer com a senhora Emília. Desde que se manifestou a doença, quem não foi mais trabalhar para poder estar junto dela a tempo inteiro, prestar-lhe todos os cuidados, fazer-lhe companhia no momento da partida desta vida e fechar-lhe os olhos, foi a filha que ela se recusou a dar à guarda da outra senhora, apesar do momento terrível e difícil que estava então a viver.

Acaso? Coincidência? Com toda a certeza foi um ato de gratidão de um coração reconhecido, quiçá um toque de algo muito mais sublime. A senhora Emília foi sem dúvida uma mulher extraordinária, com as tais facetas e virtudes que o homem comum não consegue atingir, alguém que deveria servir de modelo (e não podia ter maior atualidade) para tantas jovens mães de hoje que nem sempre aceitam as responsabilidades inerentes a essa condição, mas permanecerá anónima como muitos outros e outras que se transcenderam e de que a história não falará nunca.

Uma lição de vida excepcional, de coragem, de força de vontade, de abnegação, de espírito de sacrifício e, acima de tudo, um exemplo perfeito de Amor de MÃE. Um dos meus heróis (neste caso, heroína) anónimos do nosso dia a dia…

A Loja do Tio Peixoto

O Bernardo, meu primo e amigo, todos os anos tem a amabilidade de me convidar para ir a sua casa comer cerejas, com a intenção de me satisfazer um prazer que me vem do tempo de criança: comê-las diretamente da árvore.

No telefonema que me fez este ano teve o cuidado de me avisar que “andasse depressa”, antes que os pássaros comessem a parte a que tinham direito e a parte dele, enquanto dono. Por isso, nesse dia vigiava o seu quinhão. Assim, sem ir a voar mas tentando chegar antes da passarada, fui comer a minha (pequena) parte e aproveitar para pôr a conversa em dia, sendo as cerejas o motivo. Ao estar naquele quintal vieram-me à memória recordações do meu tio Peixoto, pai do Bernardo e figura incontornável da minha infância, que ali viveu e criou um rancho de filhos com a tia Miquinhas, o sol em torno do qual girava o mundo da família.

E essas memórias levaram-me à “Loja” (mercearia e tasca, com ramo de loureiro à porta) do tio Peixoto, que ficava um pouco acima da casa dos meus pais. Parece que ainda estou a estou a ver: À entrada, um balcão tosco em madeira de pinho, com uma balança e uma broa ao lado para vender aos nacos; ainda em cima do balcão, um cartão publicitário para furar a troco de dois tostões por furo, de onde caía uma pequena bola que, em função da cor, dava direito a um chocolate da Regina; noutras ocasiões, era uma caixa de rebuçados com cromos de futebolistas e uma bola de couro no cartaz, prémio para quem completasse a caderneta, um sonho para nós crianças que jogávamos com bolas feitas com meias velhas cheias de trapos.

Era ali que eu gastava a moeda que o meu pai me dava ou a coroa (cinco tostões) que recebia por ir na “cruzada” nos funerais. Havia um bidão de petróleo para os candeeiros e carboneto em latas estanques, para os gasómetros, porque a maioria das casas não tinha eletricidade, que faltava muitas vezes; o azeite estava em vasilhas de lata e era medido sem esbordar; o arroz (que eu fiquei a detestar por ter muitas pedras), a massa e o feijão, estavam em caixas de madeira debaixo do balcão de onde eram tirados com um “corredor” para cartuchos de papel grosso; um pouco ao lado os garrafões de aguardente, vendida a copo pela manhã como “mata-bicho”, às vezes para regar um naco de broa; os “luxos” eram a bola de queijo flamengo vendido à fatia, a manteiga num pote de barro e pouco mais; para os fumadores, os cigarros Português Suave, Fortes, Provisórios e o tabaco a granel com as caixas de mortalhas para enrolar o cigarro; e de lado, duas pipas de vinho tinto assentes em vigas de madeira, para vender ao garrafão e à garrafa, ou servido ali mesmo, em canecas de porcelana ou ao copo.

À tarde e ao domingo, jogava-se à malha e ao fito, no caminho em frente à loja e, a cada jogo, os perdedores pagavam um copo de litro. E havia dias em que estavam ali a tarde inteira… Bebia-se muito vinho pelo que, semanalmente, havia troca de pipa vazia por cheia, uma cena digna registo.

A pipa era transportada em carro de bois pelo caminho de terra cheio de buracos, fazendo-se anunciar pela chiadeira do rolar da madeira contra a madeira. Para a descarregar, o carreteiro colocava o carro com a traseira virada para a porta da loja, ficando um rapaz a segurar os bois enquanto os homens colocavam duas pranchas de madeira do carro ao interior da loja, entaladas contra a pipa e seguras aos “fueiros”.

Então, colocava-se um homem de cada lado da pipa e outro por trás e, usando as trancas como alavancas e ao som ritmado de um “Ôpa, ôpa, ôpa…” entoado por um deles, faziam deslizar aquela “meia tonelada de vinho” pelas vigas abaixo até dentro da loja e para cima das vigas ao lado da outra, com toda a perícia.

O serviço ficava completo quando o meu tio metia a torneira de madeira na pipa com uma pancada seca de mascoto, depois de aparar o batoque com uma faca. Feito isto, servia broa, azeitonas e vinho num copo de litro, que rodava de mão em mão. Em frente à loja todos os anos montava uma cascata em honra de S. João, seu homónimo e santo favorito, povoada de um sem número de figuras, água e até um chafariz, em que eu colaborava carregando pedras, ramos de carvalho e musgo, e angariando “fundos”, sempre com a mesma lengalenga para quem passasse por ali: “Dê um tostãozinho para a cascata do S. João”.

Tinha o prazer da leitura e dedicava-se à escultura de santos, trabalhando a madeira com um canivete. Para autodidata, executou um número considerável de peças de belo recorte, de que guardo uma bonita imagem de S. José que me ofereceu anos mais tarde. Ao ver os supermercados de hoje e pensar naquela “Loja” do antes, só posso colocar-lhes um rótulo: O Excesso e o Essencial. A “Loja” era a antítese do supermercado, um serviço de proximidade e de confiança nos clientes (e vizinhos), com muitas vendas a “fiado” registado num livro grosso, numa relação comunitária própria desse tempo de coisas simples.

E todos eram confiáveis, por mais pobres que fossem (e como eram pobres!!!), porque existiam bens inestimáveis que queriam preservar a todo o custo: A DIGNIDADE, A HONRA E O BOM NOME. E ao relembrar a importância que se dava a esses bens, hoje só me apetece perguntar: Como é que mudamos tanto???…

Quando o céu nos cai em cima

Acabara de almoçar e estava sentado no sofá da sala a relaxar um pouco antes de voltar ao trabalho, quando tocou o meu telemóvel. Olho e vejo no mostrador o nome da minha mulher: LUISA. “Mas o que é que se passa? Porque será que me está a telefonar se ela está cá em casa?” Carrego na tecla verde e digo “Estou?” mas do outro lado ninguém me responde. Intrigado, dirijo-me apressadamente à casa de banho para onde fora e encontro-a sentada mas tombada sobre o lado direito, sem dar acordo de si. Seguro-a nos braços e chamo por ela mas não reage, não dá sinal de me reconhecer nem de perceber que estou a falar com ela.

Peço ajuda à Dita que vem logo a correr e ainda conseguimos levantá-la e vesti-la, mas continua ausente. Na emergência, chamo os Bombeiros de Lousada, que são rápidos a chegar, a transferi-la para a maca e a meterem-na na ambulância. A Teresa acompanha-a na viagem até ao Hospital Padre Américo, enquanto agarro roupas e documentos, seguindo logo atrás. Pela cabeça passa-me um mundo de pensamentos, mas empurro os negativos e construo a esperança de que não é nada de grave e que depressa a Luísa estará novamente em casa.

Já no hospital retiram-na da ambulância e empurram a maca para as portas da Urgência, por onde desaparece, enquanto acompanho um bombeiro ao guichet da recepção para fazer a ficha de admissão. Retiro do bolso os seus documentos e dou as indicações que me pedem, um tanto perdido, como se me visse no meio de um filme a que não pertenço. Dizem-me para esperar na sala de acompanhantes mas, dado o estado em que se encontra, peço e autorizam-me a ficar junto dela na zona de triagem, onde lhe colocam uma braçadeira laranja, quando eu esperava uma vermelha por me parecer que a situação era grave.

Não reclamo, até porque acho que todos consideramos que os nossos casos são sempre os mais urgentes (costumo dizer que as maiores dores são sempre as nossas, porque as nossas nós sentimo-las e as dores dos outros sentimo-las no momento mas, afastados, depressa as esquecemos). Pouco depois levam-na para dentro mas não me é permitido ir mais além e tenho de ficar cá fora, confrontando-me com uma sensação de impotência, de nada poder fazer senão esperar. Dou comigo a pensar que hoje eu faço parte “dos outros”, porque costumamos pensar que estas coisas só acontecem aos outros (mas, para os outros, nós somos os outros).

Telefono ao filho que está em viagem e que se apressa a regressar para acompanhar a mãe, e a outros familiares e amigos, informando-os do ocorrido, procurando alguém que consiga chegar até ela dentro do hospital para ter informações permanentes. Esperar sem notícias é motivo de angústia pois, mesmo que não digam o que queremos ouvir, qualquer informação sempre nos alimenta a esperança na espera.

O diagnóstico foi derrame cerebral que fez com que fosse transferida para o Hospital de S. João. Ao outro dia parecia que não tivera nada mas, quinze dias depois e ainda dentro do hospital, repetir-se-ia o derrame de uma forma mais violenta que a levou para os cuidados intensivos, a um coma induzido durante vários dias, a infeções hospitalares e não sei quantas coisas mais ao longo de três longos meses, seguidos de muitos mais em convalescença noutros hospitais, com duas pernas partidas durante a recuperação, fazendo dela uma sobrevivente.

Passei a conhecer a rotina das visitas hospitalares, os dramas de doentes e familiares, o sofrimento contido e a solidão, a incerteza da espera, alguns excelentes profissionais de saúde e a qualidade do nosso SNS, a solidariedade que é mais forte no sofrimento do que na alegria, o conforto de ter família e amigos, o valor de uma simples palavra ou de um gesto silencioso mas significativo. Moldei-me a novos ritmos de vida, novas rotinas, às certezas da incerteza, à cedência nas prioridades, a abdicar de mim tornando-me um cuidador atento às necessidades de quem tem dependência quase total e vive noutra realidade, noutro mundo.

Foi no mês de Agosto de há uns longos cinco anos e a vida da Luísa mudou completamente e com ela a minha. Devo revoltar-me? Perguntar “porque é que isto lhe aconteceu”? “Mas porquê a nós”? “Porquê, meu Deus”? “Que mal fizemos”? Não, não tenho razões para me revoltar contra quem quer que seja, muito menos contra Deus.

A doença, os acidentes, a morte, chegam todos os dias a casa de milhões de pessoas que não conhecemos, ocasionando imenso sofrimento, dor e todo o tipo de dramas que nos passam ao lado, numa roleta interminável do acaso. E esse acaso ditou agora a nossa vez e só tenho de me conformar, de aceitar com humildade colando os cacos que for possível colar, dando graças a Deus pelas preciosas ajudas que ainda tenho, pensando que há sempre quem esteja muito pior que nós, e por nos ter dado tantos anos de bónus, livres deste sofrimento. Até porque nunca me esqueço que o Sofrimento é parte integrante da vida, embora nós passássemos muito bem… sem ele.